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O dever de rememorar o Holocausto (Folha de S. Paulo, 26/1/2018)
Celebraremos neste sábado (27) o dia internacional em memória das vítimas do Holocausto, que marca o aniversário da liberação do campo de concentração de Auschwitz. A rememoração desse passado trágico constitui, mais do que uma homenagem às vítimas, um dever moral e uma responsabilidade de todos e de cada um de nós. O genocídio de seis milhões de judeus e de milhões de ciganos, homossexuais, prisioneiros de guerra e pessoas com deficiência, com uso dos meios só disponíveis na moderna sociedade industrial, foi um dos momentos mais tristes da história da humanidade. Ao rememorar as vítimas, o primeiro sentimento é o de repulsa pelo horror produzido pela ideologia antissemita.
Mas o ato de rememorar evoca também compaixão e esperança. Compaixão pelas vítimas, cuja perda privou o mundo de tantos talentos. Compaixão pelos pais,mães, filhos e amigos que perderam entes queridos, alvos da covardia criminosa do nazismo. E esperança de que o exemplo das vítimas e sobreviventes continue animando novas gerações a lutar contra todas as formas de discriminação; a esperança de que a história dos que enfrentaram o pior dos tormentos e seguiram acreditando na vida não nos deixe esmorecer ante desumanidades de nosso próprio tempo. É impressionante a força das vítimas do Holocausto, que, mesmo nos momentos de maior desespero, deixaram exemplos de solidariedade e superação. Não menos impressionante foi o apego à esperança dos sobreviventes, alguns do quais adotaram o Brasil como seu novo lar, dando contribuição inestimável à formação do nosso povo e ao desenvolvimento do país.
Como chefe da diplomacia brasileira, não poderia deixar de lembrar os dois “justos entre as nações” brasileiros, ambos do Itamaraty, Luiz Martins de Souza Dantas (1876- 1954) e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa (1908-2011), que descumpriram instruções superiores para salvar judeus das garras do nazismo. Houve outros como eles, que, ante o colapso moral à sua volta, colocaram o dever para com a humanidade acima de considerações burocráticas e de conveniências, assumindo riscos para poupar vidas. O drama do Holocausto levou à adoção,na Organização das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Os crimes do nazismo impuseram a clara necessidade de elevar o indivíduo à condição de sujeito de direitos na cena internacional.
Infelizmente, esse esforço, embora necessário e louvável, ainda não foi suficiente para superar as violações sistemáticas de direitos humanos em diversos quadrantes do mundo. Atos hediondos voltaram a acontecer desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E o antissemitismo continua presente hoje em formas recicladas, porém não menos odiosas, inclusive, em alguns casos, encoberto pelo antissionismo. Também por essa razão, é fundamental rememorar o Holocausto para que essa encarnação do mal absoluto jamais volte a ocorrer e para que outras atrocidades sejam prevenidas com as armas da tolerância, do diálogo e da justiça.
A memória do Holocausto nos impele a agir e a seguir lutando sem trégua por um mundo mais justo e solidário, em que os seres humanos estejam livres de abusos e arbitrariedades e sejam respeitados sem distinção de qualquer natureza — origem social, cor da pele, etnia, crenças religiosas e posições políticas. Ao fortalecer a memória coletiva de rechaço ao horror indizível do Holocausto, homenageamos as vítimas e recordamos a necessidade de combater, aqui e agora, as ideologias nefastas que desumanizam o outro. O ato de rememorar é, pois, um imperativo político e moral que nos vacina contra a condescendência diante da exclusão e da injustiça, reavivando a chama da esperança em nossa humanidade comum.
ALOYSIO NUNES (PSDB-SP), senador licenciado, é ministro das Relações Exteriores