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Aloysio Nunes Ferreira: Um atentado à democracia (Folha de S. Paulo, 27/03/2018)
É gravíssimo que um teste de personalidade tenha sido aplicado em rede social para rastrear ilegitimamente potenciais eleitores
Diminuiu consideravelmente o temor da proliferação desenfreada das "fake news" a acachapante revelação feita pela repórter Carole Cadwalladr no "The Observer" (versão dominical do "Guardian"), segundo a qual a empresa britânica Cambridge Analytica (CA) acessou dados de 50 milhões de usuários do Facebook sem autorização.
Não se pode negar que as "fake news" são danosas —apesar de ainda a contenção desse método de desinformação ser praticamente nula—, mas é gravíssima a descoberta de que um teste de personalidade criado pelo professor russo-americano Aleksandr Kogan, da Universidade Cambridge (Reino Unido), tenha sido aplicado na rede social para rastrear ilegitimamente potenciais eleitores com o interesse de aplicar estratégias de microtarget na campanha presidencial de 2016 nos Estados Unidos.
Nem George Orwell, no clássico "1984", previu tamanha precisão.
Os 270 mil usuários do Facebook que aceitaram fazer o teste não foram informados que o aplicativo recolhia dados de seus amigos. Estes nem sequer tinham conhecimento de estarem sendo perfilados.
Com um modelo psicológico assim, é possível elaborar ações específicas a diferentes grupos, entre os cerca de dois bilhões que fazem parte dele. O resultado é certeiro.
Embora a vigilância não seja novidade na ficção —o cineasta francês Jean-Luc Godard a retratou em "Alphaville" em uma época pré-internet, portanto, sem mecanismos tecnológicos exatos, e o franco-canadense Denis Villeneuve a aproximou da realidade em "Blade Runner 2049"—, é assustador pensar que uma rede social reflita atualmente uma sociedade distópica, absolutamente manipulável e sem possibilidade imediata de reversão.
Trata-se de um atentado à democracia o condicionamento da vontade do eleitor —cidadão— a partir de seus dados pessoais captados sem o consentimento informado.
A evidência do acesso irrestrito a milhões de dados levou Mark Zuckerberg a admitir erros, banir a CA de sua rede, limitar (e não bloquear) acesso a informações de seus usuários e anunciar medidas, como uma ação na plataforma que divulga na página de políticos anúncios que a campanha impulsionar, Brasil incluído. Mas não é suficiente. É preciso ir além da retórica. Como esta Folha noticiou, ele não garante a viabilidade dessa norma até as eleições de outubro.
O resultado prático até agora levou ao aumento da desconfiança em relação a políticas de privacidade da empresa e à perda de seu valor no mercado: US$ 45 bilhões nos três dias seguintes à denúncia feita pelo canadense Christopher Wylie. O ex-funcionário da CA contou ao "Observer" no último dia 17 que foi dele a ideia de ligar o estudo de personalidade ao voto político.
Considerando o alcance da acusação, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios instaurou um inquérito civil para investigar se houve vazamento de dados no Brasil, porque a CA tem atuado no país desde o fim de 2017.
O Brasil não tem legislação própria para tratar da proteção de dados pessoais, embora haja respaldo jurídico (mínimo) no Marco Civil da Internet e no Código de Defesa do Consumidor.
Está no Senado proposta minha (https://goo.gl/vinrke) que, se aprovada e convertida em lei, daria ao Estado e à sociedade instrumentos para responsabilizar empresas controladoras de dados, como o Facebook, ainda que tivessem sido a CA ou o professor Kogan os únicos a agir de má-fé. As sanções poderiam ser desde pesadas multas de 5% do faturamento anual, suspensão ou interrupção das atividades digitais no Brasil até intervenção judicial.
Outro alerta surgiu desse escândalo: não consta na reforma política aprovada no Congresso Nacional punição à empresa que faz uso de aplicativo lícito para cometer ilícito, desvirtuando a finalidade da coleta, como revelado no caso da CA. O que fará o Tribunal Superior Eleitoral?
Aloysio Nunes Ferreira
É ministro das Relações Exteriores e senador licenciado (PSDB-SP)