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Intervenção do Secretário de Comunicação e Cultura do Ministério das Relações Exteriores, Embaixador Paulino Franco de Carvalho Neto, no Âmbito do Ciclo de Debates “Promoção e Difusão da Língua Portuguesa: Estratégias Globais e Políticas Nacionais”, realizado por ocasião das Celebrações do Dia da Língua Portuguesa na CPLP - Brasília, 29/04/2021
Senhoras e senhores,
Começo minhas palavras com uma breve reflexão sobre um conceito central, razão de ser de nossa presença neste evento no dia de hoje: o de comunidade. Trata-se do princípio e desígnio do projeto da CPLP. A comunidade não se constitui a partir de valores abstratos, mas a partir de tradições, costumes e experiências históricas compartilhadas. Na nossa CPLP, o que confere concretude e inteligibilidade à nossa comunidade é sua experiência histórica compartilhada em língua portuguesa.
Na raiz da nossa Comunidade, está a língua. Embora a língua portuguesa possa transportar valores intrínsecos de cada falante, de cada local em que é falada, ela constitui nossa experiência compartilhada comum; o fundamento dos laços que nos unem; a herança cultural enraizada simultaneamente nos oito países-membros da CPLP: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guine Equatorial, Moçambique, Portugal e Timor Leste.
De acordo com diversos indicadores que buscam mensurar a importância relativa das línguas, nosso idioma detém peso e potencial de crescimento expressivos, figurando entre os dez principais do planeta. Trata-se de uma das línguas mais faladas no mundo, com cerca de 287 milhões de falantes, o que coloca o português entre a 6ª e a 8ª colocação, de acordo com os critérios de mensuração. A língua portuguesa está também plenamente integrada ao mundo digital, ocupando o quinto posto com mais usuários na internet. É a língua oficial de nove países espalhados por quatro continentes, detendo o oitavo posto entre os PIBs linguísticos. No contexto da lusofonia, o Brasil responde por cerca de 80% do total de falantes no mundo.
A partir de uma perspectiva pluricêntrica, devemos considerar que a língua portuguesa não é apenas europeizante e transatlântica, mas também possui função para uma multiplicidade de outros Estados ou agentes. É a que confere a identidade e a unidade brasileiras, que estrutura a independência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs), que alicerça a unidade independente de Timor-Leste.
A defesa desse patrimônio imaterial compartilhado, a língua portuguesa, depende justamente da saúde e robustez das nações e do reconhecimento de suas diferenças, inclusive linguísticas. Nesse contexto, é importante entendermos a ideia de comunidade, ou mesmo de lusofonia, num prisma dissociado de qualquer projeto político-hegemônico dos países que a compõem.
Para tanto, cumpre consolidar os instrumentos que construímos conjuntamente ao longo dos anos, tais como o terceiro Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Firmado em 1990, o Acordo foi o primeiro que contemplou em pé de igualdade as variantes do idioma faladas no Brasil, em Portugal e nos PALOPs, sendo ratificado, até o presente momento, pelos parlamentos nacionais de Brasil, Portugal, Timor-Leste, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde.
Embora os ritmos de implantação do Acordo Ortográfico sejam variáveis entre os países que já o ratificaram, cabe recordar que, no Brasil, cumpriu-se tudo o que foi pactuado em 1990. A imprensa, em sua totalidade e sem que houvesse qualquer tipo de pressão, adotou as disposições do Acordo já em janeiro de 2009. A indústria do livro, que chega a publicar aproximadamente 20 mil títulos novos por ano (50 mil, se se levar em conta as reimpressões), introduziu as mudanças, aplicando-as progressivamente a cada nova edição. E, no sistema escolar, a introdução das novas regras acompanhou o calendário do Programa Nacional do Livro Didático, que renova os livros de cada ciclo escolar de três em três anos.
Nestes 31 anos de vigência do Acordo no Brasil, não houve registro de eventuais dificuldades, problemas técnicos ou constrangimentos na sua aplicação. Pode-se afirmar, portanto, que as medidas adotadas pelo Governo brasileiro foram plenamente exitosas, contribuindo para o fortalecimento do português como língua internacional e pluricêntrica.
O Acordo de 1990 constitui instrumento fundamental para definir os marcos da cooperação do domínio da língua. Claro, a língua é um instrumento dinâmico. Atualizações no acordo certamente se farão necessárias. Mas, para retificá-lo, é necessário, antes, ratificá-lo.
Outro instrumento fundamental, na visão brasileira, é o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP). Criado em 1989 e alma mater da própria CPLP, o Instituto alcança nova dinâmica a partir de 2010, com a organização pelo Brasil da I Conferência sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial. Dela resultou o Plano de Ação de Brasília, que estabeleceu mandatos específicos para o IILP, como a coordenação de projetos estratégicos para a gestão comum da língua; o Vocabulário Ortográfico Comum (VOC); a harmonização das Terminologias Técnicas e Científicas (TCTCs, liderado pela Universidade Federal de São Carlos, no Brasil); o lançamento da revista científica “Platô” e do Portal do Professor de Português Língua Estrangeira (que fornece material didático para o ensino da língua portuguesa em suas diversas variantes). Dada a importância atribuída pelo Brasil ao Instituto, nosso país alocou, em 2020, recursos extraordinários a três projetos do IILP: as já mencionadas TCTC`s; o Curso de Português como Língua Pluricêntrica; e o projeto Estudo sobre o uso da Língua Portuguesa na Internet.
No que tange à consolidação do IILP, é preciso ter clareza sobre o papel a ser desempenhado pelo Instituto, entendido como um fórum para a gestão compartilhada do idioma. O IILP não precisa, necessariamente, ter caráter executivo, mas deve ser um núcleo de planejamento de ações e de identificação e articulação das instituições que estão encarregadas da realização dos projetos. Somente assim o esforço de difusão da língua portuguesa será realizado pela via multilateral, razão de ser da CPLP. Somente assim seremos capazes de fazer frente aos desafios enfrentados pela língua portuguesa no século XXI.
A IV Conferência sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, a ser realizada este ano em Cabo Verde, país-sede do IILP, em modalidade virtual, poderá constituir espaço privilegiado para tal debate. Na visão do Brasil, o direcionamento da conferência a temas relacionados ao Instituto certamente resultaria em arejamento nas discussões a seu respeito e de seu papel para a gestão comum da língua. Propomos, ainda, que a Conferência possa ter uma componente avaliativa com relação às suas predecessoras, de maneira a permitir observar avanços e desafios na implantação dos Planos de Ação de Brasília, Lisboa e Díli.
Ainda no contexto do IILP, aproveito a ocasião deste debate para fazer um agradecimento público a figuras que muito têm contribuído para a multilateralização de projetos na área do português pluricêntrico. Tal é o caso do Sr. Incanha Imtumbo, atual Diretor Executivo, sob cuja gestão ganharam importância temas como fortalecimento do Conselho Científico do IILP como foro de debates e o papel do Instituto como ponto focal de articulação de projetos junto aos observadores associados.
Sempre tendo presente o caráter plural do idioma e assumindo desde cedo suas responsabilidades como um polo para a salvaguarda e difusão da língua portuguesa, o Brasil tem cumprido esse papel em três dimensões: a multilateral, como nesta CPLP; em ações bilaterais junto a países parceiros; e unilateralmente, por meio de uma rede de ensino no exterior que remonta à década de 1930.
A rede de ensino do Itamaraty conta hoje com 24 Centros Culturais Brasileiros, 5 Núcleos de Ensino de Português e 32 Leitorados nos cinco continentes. Em período pré-pandemia, a rede chegou a atender mais de 20 mil alunos por semestre. Atualmente conta com 12 mil estudantes, a maior parte em ensino remoto. Estão sendo desenvolvidos projetos de ampliação para o ensino à distância, que permitirão à rede atender a um público mais amplo e diversificado.
Da mesma forma, em estreito diálogo com a sociedade civil, o Departamento Cultural e Educacional do Itamaraty elaborou Diretrizes para a difusão internacional da Língua Portuguesa, com vistas a harmonizar a ação das centenas de professores que compõem a rede atualmente. O processo de concepção dessas Diretrizes buscou valorizar as características locais de cada unidade da rede, ao mesmo tempo que propôs sistematizar as ações dessas unidades, conferindo-lhes maior identidade e organicidade. Sua redação foi resultado da observação e experimentação de décadas de ensino de português. Após ser elaborada uma versão preliminar, o documento foi amplamente discutido com professores de português atuantes na América Latina e na África. Finalmente, no início de 2019, foi enviado às representações diplomáticas, instruindo-as a observar as mencionadas diretrizes em suas ações de difusão do idioma.
As Diretrizes para a Difusão da Língua Portuguesa pelo Brasil no Exterior estão estruturadas em cinco seções: princípios, vertentes, dimensões, programas e currículos. O documento possui um caráter normativo, sintético e programático, aspirando a ser um guia de ação unificado para que as representações diplomáticas brasileiras no exterior possam atuar de maneira harmonizada, orgânica e sistemática na difusão da língua portuguesa.
As vertentes elencadas no documento (Português como Língua Estrangeira; como Língua de Herança; para Propósitos Específicos; e como Língua Intercultural) são, por si só, evidência da riqueza e multiplicidade do idioma. E também demonstram que os desafios lançados pelo ensino do português em contextos multilingues estão na raiz da política externa brasileira para a área cultural/educacional.
Dentre as vertentes, merece destaque o Português como Língua de Herança, entendido como a língua que os emigrantes brasileiros levam consigo e que, no novo espaço social em que se fala majoritariamente outra língua, fica restrita ao uso familiar. Sua manutenção como língua familiar, além de reforçar vínculos identitários de brasileiros ou descendentes de brasileiros que vivem em outros países, torna-os vetores de promoção do idioma e da cultura do Brasil e da lusofonia. No ano passado, mesmo com as severas restrições decorrentes do cenário de pandemia, verificou-se número recorde de apoio a iniciativas de língua de herança pelo Itamaraty
Outra vertente que merece ser recordada como de particular interesse para o Brasil é a do Português como Língua Pluricêntrica: o estímulo ao fortalecimento do português em contextos em que o idioma existe como língua oficial, mas é escassamente utilizada, bem como naqueles em que o idioma sobrevive em determinados substratos da sociedade. São casos como Guiné-Equatorial e Timor-Leste, de regiões da Índia, China e Senegal, por exemplo, em que a própria sobrevivência do idioma é um desafio para as sociedades. Nesses casos, sempre que instado, o Brasil busca contribuir para o fortalecimento do idioma, reconhecendo e valorizando as variantes locais.
Da mesma forma, na visão do Brasil, o bilinguismo nas regiões de fronteira constitui importante vetor de internacionalização do português. O Brasil partilha mais de 15.000 km de fronteiras com 10 países, sete dos quais falantes de espanhol. Mais do que uma divisa, esses espaços são encontros de mundos, como na brasileira Santana do Livramento em frente à uruguaia Rivera, separadas apenas por uma avenida e onde é comum ouvir-se que “quem vive na fronteira sabe que a fronteira não existe”. As políticas de internacionalização da língua portuguesa devem, assim, passar também pelo aprofundamento da aliança estratégica com o espanhol, em vista do potencial de intercompreensão e do “parentesco” extremamente próximo entre as duas línguas.
Nesse contexto, muitas das Embaixadas e Consulados brasileiros na região iberoamericana mantêm centros culturais - 13 ao todo - que oferecem cursos de português e atividades culturais complementares, em diversos níveis de aprendizado, com currículos e materiais desenvolvidos especialmente para o público hispanófono. Em diversos casos o ensino da língua também se estende, a pedido dos governos locais, a grupos de funcionários públicos, como diplomatas, policiais ou autoridades aduaneiras, cujas tarefas se beneficiam do melhor conhecimento do português.
Tal como a língua, que não é una, mas múltipla, os vetores de sua difusão a partir do Brasil (seja em seu território, seja por meio de sua diáspora no exterior) ramificam-se em várias instituições de nossa sociedade. Mais do que um executor de políticas, o Itamaraty é hoje um articulador de iniciativas surgidas em diversos campos, como as universidades; a rica indústria audiovisual do Brasil; a Agência Brasileira de Cooperação (ABC); as centenas de associações comunitárias de brasileiros no exterior; nossa música popular; esportes como a capoeira; e instituições como a Câmara Brasileira do Livro, o Museu da Língua Portuguesa, a Fundação Biblioteca Nacional, entre muitas outras.
Ao longo de 500 anos, desde que os primeiros portugueses aportaram na costa da Bahia, ensaiaram as primeiras palavras junto aos habitantes locais e iniciaram a rica história da variante brasileira do idioma, nosso país tem contribuído, assim, para que que esse tecido siga cada vez mais múltiplo e complexo. Que o dia de hoje, em que celebramos essa trama, essa bela e multifacetada urdidura chamada língua portuguesa, represente mais uma chance para que reflitamos, como comunidade, a respeito dos fios que a ela adicionaremos. Sigamos tecendo, juntos, a várias mãos, para torna-la sempre mais densa e forte.