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Discurso da paraninfa da Turma Marielle Franco (2016-2018), Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella, por ocasião do dia do diplomata – Palácio Itamaraty, 20 de abril de 2018
Excelentíssimo Senhor Michel Temer, Presidente da República
Excelentíssimo Senhor Aloysio Nunes Ferreira, Ministro de Estado das Relações Exteriores
Excelentíssimos Senhores Ministros de Estado presentes a este ato
Excelentíssimos Senhores Chefes de Missão Diplomática acreditados junto ao Governo brasileiro
Excelentíssimo Senhor Embaixador Marcos Galvão, Secretário-Geral das Relações Exteriores
Excelentíssimo Senhor Embaixador José Estanislau do Amaral, Diretor-Geral do Instituto Rio Branco
Senhora Marinete da Silva e Senhor Antônio Francisco da Silva Neto, pais da Vereadora Marielle Franco para Patrona desta turma
Senhoras e Senhores
Meus queridos formandos,
É com muita emoção que regresso hoje a esta Casa, no Dia do Diplomata, para um reencontro com meus novos amigos, os formandos da turma Marielle Franco, feliz ocasião que me permite também rever antigos amigos e colegas.
Aposentada há quase dez anos, não sonhava com o convite que me fizeram os jovens diplomatas que ora iniciam suas carreiras profissionais, um convite que me deixou feliz e orgulhosa.
Muito lhes agradeço, queridos formandos, a generosidade de vincular-me a suas carreiras iniciantes.
Seu convite, revigorante e rejuvenescedor, ao mesmo tempo me fez lembrar as emoções de minha própria formatura, no Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro, em 1960, e da formatura, neste mesmo auditório, do Palácio Itamaraty em Brasília, em 1993, da turma Ulysses Guimarães, da qual tive também o privilégio de ser paraninfa.
Orgulho-me, particularmente, de que vocês se tenham lembrado de mim em associação com o nome de sua patrona, a vereadora Marielle Franco, jovem liderança parlamentar ceifada violentamente na força da mocidade.
Como mãe que também sofreu a perda de um filho na força da mocidade, mais jovem do que Marielle, que era para mim uma grande esperança, presto aos pais da vereadora, aqui presentes, toda a minha solidariedade.
Queridos formandos,
Louvo-lhes a iniciativa de prestarem homenagem às mulheres que, desafiando discriminações e preconceitos, têm emprestado seu talento, sua coragem, sua força de trabalho, à vida pública e à diplomacia do nosso país.
Vejo na formatura de hoje significado e importância muito especiais, porque, como mencionou o orador que me precedeu, a escolha do nome da vereadora Marielle Franco, e do meu próprio, só terá sido possível por haver contado, democraticamente, com o apoio dos formandos do sexo masculino, uma vez que eles constituem ampla maioria da turma: 70%. A cooperação de homens sem preconceitos, como os formandos de hoje demonstraram ser, permite agilizar e multiplicar as ações promotoras de mudanças, bem como avançar na eliminação das discriminações e do machismo.
Proposital ou coincidentemente são também dirigidas a mulheres as outras duas homenagens que a turma presta hoje: à professora Sarah Walker, amiga querida cujo excelente e duradouro trabalho pude admirar quando dirigi o Instituto Rio Branco, e a Francisca Guedes de Souza, funcionária do Instituto Rio Branco. A elas, minhas felicitações.
Queridos formandos,
Sua homenagem às mulheres diplomatas, de quem acredito estar em representação hoje aqui, coincide com o centenário do ingresso no Itamaraty da primeira diplomata, a baiana Maria José de Castro Rebello Mendes, que foi também a primeira funcionária pública do Brasil. Esse aniversário convida a uma rápida reflexão sobre a condição das mulheres no Itamaraty.
Fui aprovada no concurso de 1958, portanto há exatos sessenta anos. Fui a primeira aluna do Instituto a alcançar o topo da Carreira, em 1987. Por quase cinco anos, permaneci sendo a única. Sentia-me como um troféu que o Itamaraty exibia quando precisava defender-se de acusações de machismo.
Com o passar dos anos, a situação da mulher foi evoluindo nesta nossa Casa, acompanhando as transformações da sociedade brasileira.
Só no início, na abertura [ao ingresso] das mulheres [no] serviço público, ele realmente foi pioneiro.
Persiste, porém, uma grande diferença numérica nos nossos dias. Nos quinze anos transcorridos entre 2002 e 2017, o período para o qual disponho de estatísticas fidedignas, a participação das mulheres no conjunto do pessoal diplomático brasileiro avançou apenas de 18% para 24,7%.
Passou a haver, alguns anos atrás, melhora significativa na distribuição das mulheres pelos vários escalões da Carreira. A chefia desta Casa, tomando consciência da relativa marginalidade e invisibilidade a que as diplomatas estavam relegadas, passou a dirigir um olhar mais atento às candidaturas femininas por ocasião das promoções, sobretudo aos níveis mais altos da Carreira, sem por isso abandonar o princípio basilar do mérito.
Como resultado dessa nova sensibilidade, no mesmo período de quinze anos a que me referi, entre 2002 e 2017, o número de mulheres no escalão mais alto da Carreira, o de Ministros de Primeira Classe, avançou rapidamente de apenas 8 para 33.
O que mais preocupa atualmente é a sub-representação das mulheres na estrutura de comando do Itamaraty, seja na Secretaria de Estado seja na chefia dos postos mais importantes. Só espero que isso seja conjuntural e não sinal de retrocesso.
Ao contrário do que acontece em tantos outros países, inclusive na nossa própria região, nunca tivemos uma Ministra de Estado das Relações Exteriores. Nunca tivemos tampouco uma Secretária-Geral. E das nove Subsecretarias Gerais, apenas uma é atualmente dirigida por uma mulher. É pouco, muito pouco.
Para avaliar a presença das diplomatas na chefia dos postos mais relevantes para a política externa do Brasil, tive antes de buscar identificar quais seriam esses postos. Para isso, pedi a dez diplomatas brasileiros, de embaixadores aposentados a formandos, que fizessem uma escolha de dez postos que, a seu juízo, atendiam àquele requisito, não importava a ordem. Da soma dessas listas resultou uma relação de 20 postos apontados como mais relevantes. Classifiquei-os então pela ordem do número de votos recebidos e constatei que, dos doze postos mais votados, seis já foram chefiados por Embaixadoras , não faz não faz tanto tempo assim - eu mesma fui chefe de um deles.
Mas qual a situação hoje? Entre os doze postos mais votados, que seriam os mais relevantes, tive o desapontamento de constatar que nenhum deles é chefiado hoje por uma diplomata.
Esse levantamento da presença feminina nas chefias do Itamaraty mostra que as diplomatas permanecem afastadas das funções de maior importância política, o que me leva à obra mais recente da historiadora inglesa Mary Beard, intitulada Mulheres e Poder. Um Manifesto. Fazendo uso da sua erudição clássica, ela discorre sobre as conhecidas dificuldades que enfrentam as mulheres para alcançar o poder e procura demonstrar que, ao longo da história, mesmo quando sua presença é tolerada, sua voz é ignorada ou calada. O exemplo mais antigo que dá Mary Beard é a passagem na Odisséia em que o jovem Telêmaco ordena a sua mãe Penélope: “Mãe, volte para seus aposentos e retome seu próprio trabalho, o tear e a roca. Discursos são coisas de homens, de todos os homens”. E diz Mary Beard: “E lá se vai Penélope, de volta ao andar de cima”.
Queridos formandos,
Recentemente, uma voz feminina forte, corajosa e vibrante que se levantava entre nós contra as discriminações, a violência e as injustiças foi brutalmente calada com quatro tiros na cabeça.
Não conheci a sua patrona, mas sou carioca e fui eleitora dela, por sugestão de minha neta Antonia, que me fez ver que Marielle Franco preenchia plenamente o perfil que eu buscava para representar-me: mulher jovem, que com dedicação e esforço conseguira superar todos os obstáculos, idealista, guerreira, sem histórico de corrupção, firme na defesa dos direitos humanos e do fim das discriminações, inimiga da violência de qualquer origem.
As mortes criminosas dessa jovem tão valente, que trazia uma esperança de renovação na política brasileira e de mudanças na nossa sociedade, e do seu motorista Anderson Pedro Gomes, chocaram-me profundamente. Igual horror me causaram as calúnias e os ataques que em seguida surgiram nas redes sociais contra Marielle, inspirados por preconceitos e intolerâncias que são inaceitáveis.
Queridos formandos,
Que vocês tenham escolhido Marielle como patrona - e, portanto, como guia e inspiração - mostra que têm consciência da importância da questão da justiça social e dos direitos humanos na sociedade brasileira e no mundo. Mostra que reúnem as qualidades de inteligência, sensibilidade e caráter necessárias para trabalhar pelo bem do Brasil e contribuir para fazer dele um país mais justo, desenvolvido e respeitado, e para defender internacionalmente as causas brasileiras.
No exercício da profissão de diplomata, pensem sempre no interesse nacional, na beleza que há em poder contribuir diariamente, de alguma maneira, para o desenvolvimento do Brasil e do povo brasileiro. Tenham sempre a coragem de suas convicções e a certeza de que, se o que estão fazendo é para o bem do Brasil, então isso é importante e deve ser bem feito.
Sejam corajosos. Não permitam que seus ideais fiquem submergidos na rotina, no desânimo, na pequenez ocasional do cotidiano. Faço minhas as palavras do Secretário Geral, Embaixador Marcos Galvão, quem, em 2003, paraninfo da turma Sergio Vieira de Mello, declarou em seu discurso: “Não caiam nunca na tentação do automatismo burocrático.”
Sobretudo – e isto não vale apenas para as mulheres – não se deixem calar, como fez Penélope diante de Telêmaco. Respeitem a hierarquia e a experiência dos mais graduados, sim, mas declarem suas certezas, emitam suas opiniões, apontem os riscos e os acertos das decisões a serem tomadas. Se seus chefes tiverem, como terão, a mesma vontade de servir ao Brasil, o mesmo gosto de trabalhar pelos interesses do povo brasileiro, darão valor a seu espírito de iniciativa e às suas opiniões, mesmo que possam não estar inteiramente de acordo com elas.
Nunca me arrependi de haver escolhido a Carreira de Diplomata. Graças ao Itamaraty, tive uma vida profissional desafiadora e interessante. Conheci o mundo e grandes personalidades; fiz muitos amigos, que me confortaram nas horas difíceis - pois elas surgem necessariamente em toda existência humana. Tive chefes que me deram firme apoio nas etapas determinantes do sucesso na Carreira. Espero que assim seja também para vocês, queridos formandos.
Renovo-lhes a expressão da minha gratidão e da minha amizade, as minhas felicitações pela realização do ideal de ingresso na Carreira, os meus votos de felicidade pessoal e de sucesso profissional. Este será tanto maior quanto mais determinados, responsáveis, diligentes e éticos forem no cumprimento de suas tarefas e obrigações como servidores públicos.
Ao terminar, homenageio suas famílias, com as quais compartilho a alegria e o orgulho de vê-los iniciarem uma carreira tão bela.
A vocês e a seus familiares, meus parabéns.
Muito obrigada.