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Brasil busca ‘3ª via’ para impasse sobre quebra de patentes (Valor Econômico, 17/03/21)
Por Daniel Rittner
Entre o chamado nacionalismo das vacinas e a ampla permissão para quebra de patentes no combate à covid-19, conforme proposta encabeçada por Índia e África do Sul, o Brasil se engajará na defesa de uma “terceira via” como forma de contornar o impasse instalado na Organização Mundial do Comércio (OMC).
O debate gira em torno de uma moratória generalizada ao acordo que regula os direitos de propriedade intelectual (conhecido pela sigla Trips). Organizações como Oxfam, Human Rights Watch e Médicos Sem Fronteiras pressionam o governo Jair Bolsonaro a juntar-se ao grupo coordenado por indianos e sul-africanos, que conta com o apoio de outros 55 países - entre eles Paquistão, Bolívia, Venezuela e nações de menor desenvolvimento.
Diante da resistência, o Brasil tem sido acusado de trair seus princípios históricos. Em 2001, sob a liderança da dupla José Serra (à época ministro da Saúde) e Celso Amorim (então embaixador em Genebra), o país exerceu protagonismo nas negociações que culminaram em uma flexibilização do acordo de Trips para suspender patentes de medicamentos. A brecha foi usada para a licença compulsória de um antirretroviral no tratamento do HIV.
Em entrevista ao Valor, o secretário de Comércio Exterior e Assuntos Econômicos do Itamaraty, embaixador Sarquis Buainain Sarquis, explicou as motivações da resistência brasileira e disse que é errado enxergar o impasse na OMC como duelo de países ricos contra emergentes. “É uma narrativa que não corresponde à realidade dos fatos”, argumenta.
Outras nações em desenvolvimento - Chile, Colômbia, México, Turquia - também foram identificadas pelo Itamaraty como críticos à proposta de moratória generalizada do acordo de Trips para combater a pandemia.
Uma das ressalvas feitas pelo Brasil é quanto ao tempo e ao escopo da proposta. Primeiro, porque a moratória duraria todo o período de pandemia (que ainda poderá levar meses ou anos). Segundo, porque não cobriria somente patentes ou vacinas. Qualquer patente, direito autoral, desenho industrial, marca ou segredo do negócio atrelado supostamente à covid-19 poderia ter proteção suspensa. Isso poderia envolver itens tão diversos como o design de uma máscara PFF2 ou de uma válvula utilizada em equipamentos de ventilação.
Outra frente de objeção do Brasil diz respeito à potencial eficácia da medida. Na avaliação do Itamaraty, em caso de mera quebra de patentes, o mundo não verá subitamente um aumento expressivo na fabricação de imunizantes.
Para o governo Bolsonaro, há gargalos mais importantes que têm freado ou impedido a vacinação em massa: falta de provisão de insumos farmacêuticos, limitações do parque produtivo, necessidade de capacitação técnica de número maior de países para propiciar escala à produção de vacinas.
No entendimento do embaixador Sarquis, enquanto não resolve esses pontos, a quebra de patentes pode desestimular os laboratórios em um processo natural: pesquisas em torno de atualizações sazonais das vacinas ou de uma segunda geração dos imunizantes - por exemplo, capazes de proteger contra novas cepas ou reduzindo algum efeito adverso.
“Temos a nossa convicção sobre o que deve ser o sistema de propriedade intelectual. Ele não é perfeito, precisa de constante evolução, mas confiamos no sistema e moratória introduz um elemento de instabilidade”, diz Sarquis.
Segundo ele, há necessidade de conciliar incentivos à inovação com inclusão e desenvolvimento. Em outras palavras, usadas pelo próprio embaixador, quando existe um risco, tem de haver recompensa, mas andando junto com a “finalidade última” da propriedade intelectual: o progresso e a incorporação do conhecimento como bem público. “No caso da pandemia, é falso o debate que trata o sistema de patentes como obstáculo ao acesso às vacinas.”
Por fim, explica o embaixador, a oposição brasileira vê os aspectos jurídicos da proposta de moratória. De um lado, essa suspensão temporária de Trips poderia requerer aval legislativo dos países envolvidos, internalizandodo essas mudanças - mesmo provisórias - em suas próprias legislações. De outro, a quebra de patentes por países individualmente pode ser feita mediante o mecanismo da licença compulsória.
Por esse instrumento, um país específico pode quebrar patentes à revelia de seu dono. Porém, deve arcar com os custos reputacionais de descumprir o sistema de propriedade intelectual. Mesmo assim, isso não assegura acesso imediato a vacinas ou remédios. Vacinas são drogas biológicas, desenvolvidas a partir de material vivo, e com processos muito difíceis de copiar. No limite, pode levar anos.
A solução, considera Sarquis, é apostar em uma espécie de caminho do meio. Na linguagem adotada pelo Itamaraty e encampada na semana passada pela nova diretora-geral da OMC, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, trata-se de uma “terceira via” na questão.
Isso poderia envolver mobilização internacional para uso de capacidade instalada ociosa em qualquer país do mundo para a produção de vacinas ou de insumos, licenciamento voluntário (decorrente de acordo entre as partes) e aceleração dos acordos de transferência de tecnologia, identificação de obstáculos comerciais para viabilizar esse aumento da produção e rápida resolução de eventuais conflitos.
O Brasil avalia adesão a uma iniciativa co-patrocinada por Austrália, Canadá, Noruega, Nova Zelândia, Chile, Colômbia e Turquia que pede o engajamento da diretora-geral da OMC em discussões sobre esses pontos com autoridades dos países e representantes das empresas farmacêuticas desenvolvedoras de tecnologias.
Em Genebra, não há sinais de um consenso proximamente sobre a ideia de “‘terceira via” feita por Okonjo-Iweala. Uma fonte diplomática resume o que significa “terceira via’’ nesse caso: “É se as empresas farmacêuticas quiserem abrir mão voluntariamente da patente’’, para permitir mais produção local. Outra fonte estima que, diante da pressão, a indústria poderá aceitar licenciamento voluntário, mas vai querer controlar tudo e só vai licenciar quem os laboratórios quiserem.