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Algo acontece do outro lado do Atlântico (Valor Econômico, 16/03/21)
Nasce a maior zona de livre comércio do mundo
Por Sérgio Danese (Embaixador na África do Sul) e Bruno Arruda (Secretário da Embaixada em Pretória)
Uma importante novidade internacional precisa ser mais conhecida no Brasil: a Zona de Livre Comércio do Continente Africano, ou ZLCCA. O nome do maior bloco comercial do mundo em número de membros é autoexplicativo, mas suscita várias questões.
A ZLCCA nasceu no âmbito da União Africana (UA), em março de 2018, após três anos de negociações. Reúne 54 países - todos os da organização, à exceção da Eritreia -, com o objetivo de criar um mercado único para bens e serviços, facilitar a circulação de pessoas e promover o desenvolvimento industrial e o crescimento socioeconômico sustentável e inclusivo, de acordo com a “Agenda 2063” da UA. É o primeiro passo para o estabelecimento de um Mercado Comum Continental, que terá cerca de 1,2 bilhão de pessoas - uma demografia em rápida expansão - e um PIB de US$ 2,5 trilhões.
É inegável que a ZLCCA tem grande potencial de alterar o perfil do comércio africano, com oportunidades também para parceiros de outras regiões. O acordo de comércio preferencial entre o Mercosul e a Sacu, liderado pela África do Sul, deve ser ampliado
O tratado da ZLCCA entrou em vigor em 30 de maio de 2019. A partir de então, os signatários dedicaram-se a preparar suas propostas de cronograma de adequação - o compromisso é zerar impostos de importação, para o comércio no interior do bloco, em pelo menos 97% das linhas tarifárias. Para as economias mais avançadas, o prazo máximo de cumprimento do cronograma é de 10 anos; para as de menor desenvolvimento relativo, 13 anos. Os membros poderão manter 3% das linhas tarifárias fora da liberalização.
Em 1º de janeiro de 2021, foram oficialmente iniciadas operações ao abrigo da ZLCCA, com base em “concessões recíprocas e legalmente implementáveis” nas agendas de desgravação tarifária, regras de origem e outros aspectos. Na prática, o livre comércio será gradualmente instituído entre os países africanos em condições de fazê-lo. Até o momento, 35 países ratificaram o acordo. Para começarem a beneficiar-se da ZLCCA, os países precisam apresentar seu cronograma de ofertas para redução tarifária e adotar as medidas administrativas eventualmente necessárias.
Hoje, a maior parte do comércio interafricano ocorre de forma segmentada, com marcada intensidade em sub-regiões definidas por maior conectividade e acordos comerciais. Por isso, um aspecto importante da ZLCCA será o de “amarrar” os espaços já consolidados, estabelecendo o livre fluxo de bens entre eles. A África do Sul, por exemplo, já se abriu ao livre comércio com seu entorno: é parte de uma união aduaneira, a Sacu (“Southern African Customs Union”, que reúne Namíbia, Botsuana, Lesoto e Eswatini, com a qual o Mercosul tem um acordo ainda modesto de preferências tarifárias. Também participa da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês), que inclui, além dos membros da Sacu, outros 11 países.
Segundo relatório do Banco Africano de Exportação e Importação, o comércio interafricano caiu, em 2019, para 14,5% do total praticado pelo continente, ante 15% em 2018. O Banco estimou que a ZLCCA pode elevar essa proporção para 22%, o correspondente a mais de US$ 231 bilhões. O incremento seria o bastante para tirar milhões de pessoas da extrema pobreza, segundo o Banco Mundial. Ademais, o acordo deve estimular a industrialização: as regras de origem - que estabelecem as condições necessárias para que os bens circulem livres de imposto no interior da ZLCCA - exigem que os produtos tenham considerável valor agregado local para beneficiar-se do mercado comum.
Há empecilhos para a plena constituição da ZLCCA. Um deles é a deficiência de infraestrutura. Boas conexões viárias e ferroviárias, boas instalações portuárias, maior cobertura de internet e acesso a eletricidade são fatores indispensáveis para impulsionar o comércio entre os países africanos. A expectativa é a de que a ZLCCA funcione como catalisador: a abolição das barreiras no interior do continente tornaria atrativos investimentos públicos e privados que poderiam reverter-se na melhoria da infraestrutura e da conectividade.
Apesar dos desafios, é inegável que a ZLCCA tem grande potencial de alterar o perfil do comércio africano, com oportunidades também para parceiros de outras regiões. Parte do trabalho do Itamaraty e das embaixadas brasileiras no continente será identificar tais oportunidades, com o fim maior de robustecer e consolidar nossas relações com a região. O ministro Ernesto Araújo tem enfatizado a prioridade que o Brasil atribui à aproximação com a União Africana, não somente pela via do comércio e dos investimentos, mas também por identidades e valores compartilhados. A ZLCAA pode contribuir com esse objetivo.
Em um primeiro momento, no qual os membros devem preparar-se para melhor participar da ZLCCA, antecipa-se demanda por serviços nas áreas de tecnologias da informação e telecomunicações, energia, construção de infraestrutura e transportes. A tecnologia brasileira em áreas de excelência pode, por meio de investimentos, venda de serviços e acordos de cooperação, estimular o crescimento sustentável na África e estabelecer bases para iniciativas futuras.
Tradicional parceiro brasileiro, a África do Sul prepara-se para ampliar sua atuação como “hub” regional. O país - que já conta com vantagens comparativas, como um avançado sistema financeiro, boa infraestrutura rodoferroviária e portuária e outros - tem a intenção de consolidar-se como fornecedor de produtos de maior valor agregado para o mercado africano ampliado. Investimentos brasileiros no país poderiam alcançar imediatamente os espaços econômicos da Sacu e da SADC, com a perspectiva de ampliar-se no futuro. O acordo de comércio preferencial entre o Mercosul e a Sacu, ademais, deve ser ampliado para oferecer a moldura institucional adequada para a intensificação das relações bilaterais econômico-comerciais, de grande potencial.
Os laços culturais e históricos que unem o Brasil e a África são inquebrantáveis. Mas um salto qualitativo nas suas relações exigirá atenção e esforço. Mudanças como a ZLCCA beneficiarão aqueles que, com visão empreendedora, souberem posicionar-se no presente com o olhar no horizonte mais amplo. A ZLCCA pode, assim, ser vista como um convite àqueles que se dispuserem a escrever o próximo capítulo da rica história da relação Brasil-África.