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NOTA À IMPRENSA Nº 304
Discurso do Ministro Mauro Vieira na sessão solene da Academia Brasileira de Letras pelo lançamento da Coleção Hélio Jaguaribe – Rio de Janeiro, 20 de julho de 2023
É com grande satisfação que venho a esta Academia participar do lançamento da Coleção Hélio Jaguaribe. Celebramos hoje a memória de um pensador cujo legado é um patrimônio comum de nossas duas casas, a de Machado de Assis e a de Rio Branco. Hélio Jaguaribe deixou-nos uma obra de abrangência única, como homem de letras e também de Estado, estudioso do mundo das ideias e das ideias sobre o mundo, na dualidade que costumava empregar.
Sua contribuição de intelectual público se fez sentir desde lugares muito diferentes, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o famoso ISEB, à Universidade de Harvard, e desta à Nacional Autônoma do México, entre tantos outros. Representou um notável exemplo de pensamento crítico que, versando múltiplos temas, teve sempre como sentido de direção — cito aqui as palavras do Professor Celso Lafer — “promover e incrementar a racionalidade pública para ampliar democraticamente, com liberdade e igualdade, o poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu destino”.
Diria até que essa preocupação poderia ser estendida para o conjunto das sociedades da América Latina, pois uma indagação constante da obra de Hélio Jaguaribe foi quanto à permissividade da política mundial a uma atuação mais autônoma dos países de toda a nossa região.
Não está nos meus propósitos, aqui, passar em revista o legado desse que é um dos nomes tutelares de nossa inteligência acadêmica, e em especial daquela voltada às relações internacionais. Nem me aventuraria a tanto, na presença de grandes especialistas como os que falarão hoje. Vou me limitar a destacar, nestas palavras introdutórias, um aspecto da atualidade de Hélio Jaguaribe desde a perspectiva da política externa brasileira.
Gostaria de retornar ao grande clássico de Jaguaribe nessa área, que é o seu livro de 1958, O nacionalismo na atualidade brasileira. Digo que é um clássico porque, na definição muito lembrada de Ítalo Calvino, este é um daqueles livros que não acabam de dizer o que têm a dizer. Como não poderia deixar de ser, e em particular tratando-se de uma obra até certo ponto programática, alguns aspectos deste livro foram superados com o tempo.
Mas uma ideia-força de Hélio Jaguaribe em 1958, com a qual buscava alterar fundamentalmente os termos do debate público sobre política externa daquele momento, continua retendo grande vitalidade até os dias de hoje: refiro-me à sua reflexão sobre a centralidade da América do Sul e da América Latina e o Caribe para a inserção internacional do Brasil.
Não é demais lembrar, como sabem os especialistas em sua obra, que, escrevendo por aquela época, Hélio Jaguaribe enfrentava toda uma literatura contrária à aproximação entre o Brasil e seus vizinhos. Com grande descortino, fez em 1958 a afirmação de que a política externa brasileira devia ter sua pedra de toque no que chamava o “sistema sul-americano”.
A aliança com a Argentina e a proximidade com os demais vizinhos constituíam, em seu entendimento, um “imperativo estratégico”. Sem articulação sul-americana, Jaguaribe via um futuro de “satelitização” (a palavra é sua) dos países de nossa região. Por outro lado, com a integração sul-americana, gradualmente complementada pela solidariedade latino-americana, o autor de O nacionalismo na atualidade brasileira vislumbrava a ampliação daquelas margens de autonomia internacional que sempre buscou para nossa região.
É inevitável traçar um paralelo entre esse raciocínio e a política externa que o Brasil vem perseguindo, com uma única e melancólica recente fase de exceção, em toda a Nova República. Como é bem sabido, foi a própria Constituição Cidadã de 1988 que fixou a integração da América Latina como princípio orientador de nossas relações internacionais. A trajetória do Grupo do Rio, criado no governo José Sarney, até a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a CELAC, de que o Presidente Lula foi um dos fundadores, é bem conhecida.
A integração da América do Sul, em particular, também é uma obra que mobilizou distintos governos do período democrático. Um arco histórico já longo associa o ano de 2000, quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu em Brasília a primeira cúpula de líderes sul-americanos, ao último mês de maio, quando o Presidente Lula recebeu, também em Brasília, dez chefes de Estado e um chefe de governo para retomar a agenda integracionista entre os doze países da América do Sul após um hiato de nove anos.
O resultado dessa reunião em maio de 2023 foi o Consenso de Brasília, documento em que os doze líderes de nossa região imediata afirmam a retomada da construção de um destino comum para a América do Sul, entendida como um ator — e não como um mero campo de disputa — da política mundial: um polo próprio no mundo multipolar que se anuncia, livre de interferências externas de quem quer que seja e atuando em favor da paz, da prosperidade e da justiça no mundo.
Já em janeiro deste ano o Brasil havia anunciado seu retorno à CELAC, recuperando esse espaço para o diálogo com o conjunto de nossa região. Depois, ao completar cem dias de governo, em abril, o Presidente Lula anunciou o retorno do Brasil à Unasul, entidade que materializa aquele empenho de concertação política e de projeção da América do Sul como uma força própria no mundo.
E posso acrescentar que acabo de regressar de Bruxelas, onde realizamos, no início desta semana, a terceira cúpula CELAC-União Europeia, mecanismo que não era ativado desde 2015. Realizamos também, à margem desse encontro em Bruxelas, uma reunião do Grupo de Contato de chanceleres da América do Sul, encarregado de implementar o Consenso de Brasília.
Vamos reconstruir com obstinação as instituições regionais essenciais para a estabilidade, a segurança e a boa convivência no entorno regional do Brasil. Já disse, e repito, que a integração – latino-americana em geral, sul-americana em particular – é a nossa única ideologia.
Hélio Jaguaribe teve a visão extraordinária de identificar, naquele livro da fase “isebiana”, essa circunstância inescapável. É ao imperativo geoestratégico da América do Sul, somado ao ideal da solidariedade com a América Latina e o Caribe, que a diplomacia do governo Lula deseja fazer frente.
Temos, como é evidente, linhas prioritárias de ação nos quatro quadrantes do globo. Para o Brasil, país de vocação universalista, o elemento regional se complementa naturalmente com a projeção global. Mas não é este o momento de discutir essas outras vertentes de nossa ação externa.
Hoje, neste lançamento, recordar a corajosa reflexão integracionista de Hélio Jaguaribe equivale a reafirmar o objetivo do governo Lula de reconstruir as pontes com toda a vizinhança do Brasil.
Se com o Barão do Rio Branco o Brasil reconheceu seu destino sul-americano, Hélio Jaguaribe, junto a tantos outros, trabalhou para que esse destino fosse de cooperação cada vez mais estreita em benefício de todos os povos de nossa região. Sua obra ensina que a grandeza brasileira só tem a ganhar quando construímos, em nosso entorno, uma ordem regional colaborativa.
Fiéis a esse espírito, refletido na Constituição Cidadã, é que estamos renovando a política externa a partir da reafirmação destas que são coordenadas básicas do Brasil no mundo: a América do Sul e, mais amplamente, a América Latina e o Caribe.