Edição n° 14 - abril/2016
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nº 14 /2016
Validade dos acordos privados em disputas
familiares transnacionais
A questão do reconhecimento e execução de acordos privados no âmbito das Convenções da Haia
sobre Proteção de Crianças
Foto: Flickr.com
Por Lalisa Froeder Dittrich*
Em janeiro de 2016, foi publicado pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) o primeiro relatório do grupo de especialistas designado para estudar o reconhecimento e a execução de acordos privados em disputas internacionais envolvendo crianças. Tal iniciativa foi precedida pela publicação do Guia da Haia sobre Mediação, de 2012, que trata de um tema que vem ganhando relevância no contexto dos conflitos transacionais na área de família: a resolução de disputas por meio de acordos privados.
De fato, chama a atenção, nas últimas Convenções da Haia na área de proteção da criança, o maior destaque dado à promoção de soluções amigáveis, inclusive com menção expressa ao papel das autoridades centrais na mediação de disputas transnacionais. Enquanto, por exemplo, a Convenção sobre os Aspetos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, de 1980, menciona, em seu artigo 7, c), que, entre os deveres da autoridade central está o de “assegurar a entrega voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável”, a Convenção sobre Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, de 2007, é enfática ao determinar, no artigo 6º, que cabe às autoridades centrais “incentivar soluções amigáveis tendo em vista a obtenção do pagamento voluntário de alimentos, se oportuno através da mediação, da conciliação ou de processos análogos”.
Assim como aconteceu nos países europeus e nos Estados Unidos, nos anos 1970, e, mais recentemente, nos países da América Latina, onde o incentivo ao uso dos métodos alternativos de resolução de disputas surgiu como resposta ao excesso de judicialização, a promoção dos métodos consensuais pela HCCH coincide com o aumento, ano a ano, no número de pedidos de cooperação jurídica internacional (Duncan, 2000, p. 113). O interesse pelo uso da mediação nas disputas internacionais familiares, em especial, inspira-se nas experiências bem-sucedidas de outros países e nos estudos que demonstram que este método resulta em soluções mais favoráveis às crianças.
A mediação, então, surge não apenas como alternativa à lentidão da justiça, mas como processo que valoriza a autonomia das partes e que tem como principal vantagem a possibilidade de melhorar a comunicação entre os pais, que, devido ao vínculo com os filhos, serão obrigados a manter uma relação continuada, que não se encerra com o fim do processo judicial (Mnookin & Kornhauser, 1979, p. 957). Outras vantagens da mediação em casos de família são: a) diminuição da animosidade entre as partes; b) sentimento de maior controle das partes sobre o processo; c) maior aderência e respeito ao acordado (Roberts & Palmer, 2008, p. 176); d) maior possibilidade de que o acordo atenda ao melhor interesse da criança; e) possibilidade de se abordarem, no acordo, diversos aspectos do conflito, mesmo aqueles que não são objeto da ação ou do pedido de cooperação jurídica internacional; f) melhor relação custo-benefício, pois a mediação tende a durar menos tempo e a envolver menos recursos financeiros; ou nas palavras de Waltjen (2000, p. 81), a mediação poupa “tempo, dinheiro e muito desgosto”.
Nos casos de sequestro internacional, a possibilidade de ampliação dos aspectos a serem discutidos na mediação pode significar a diferença entre um retorno voluntário rápido e um processo judicial custoso e demorado, com prejuízos ao bem-estar da criança. Além disso, um acordo entre as partes tende a evitar futuros sequestros (Mosten, 1993, pp. 44) e conflitos sobre alimentos, guarda e visitação, ainda mais complexos quando há um elemento de estraneidade.
Por outro lado, embora os acordos apresentem vantagens à judicialização, no plano internacional eles representam um desafio no que se refere ao seu reconhecimento e execução, elementos essenciais para a segurança jurídica das partes. Por esta razão, e em vista da diversidade de regras nas legislações internas, a HCCH considerou que a discussão sobre a elaboração de um novo instrumento vinculante sobre o tema se fazia necessária, o que levou à criação do grupo de especialistas anteriormente mencionado.
No Brasil, onde os métodos alternativos de resolução de disputas surgiram como solução para os problemas do Judiciário, na década de 1990, o tema ganhou relevância com as mudanças introduzidas pelo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) e pela Lei de Mediação (Lei 13.140/15). Esses dispositivos estabeleceram regras para o uso da mediação e deram aos acordos privados o status de títulos executivos extrajudiciais, resguardados os interesses dos menores, já que nos casos envolvendo crianças o acordo deverá ser homologado judicialmente. Assim, caso as partes venham a estabelecer um acordo no âmbito de um pedido de cooperação jurídica internacional envolvendo menores, o judiciário brasileiro poderá homologar o que foi objeto do consenso. Porém, caso haja descumprimento do acordado, a decisão só poderá ser executada no Brasil, a não ser que o acordo seja validado em outro país, que pode aceitar ou não seus termos.
A solução para a questão não é simples, pois envolve o conflito de jurisdições e a limitação de cada Estado para reconhecer e executar determinados acordos. Tomando-se como exemplo um caso de subtração internacional de crianças, a negociação de um retorno voluntário, como já explicado, dificilmente é possível sem que sejam acordados outros aspectos da relação familiar, como o direito de visitas, a guarda e os alimentos, e sem que ao acordo possa ser dada validade em ambas as jurisdições envolvidas. A maior dificuldade, nesse caso, reside no fato de a Convenção de 1980 expressamente delimitar a jurisdição do juiz do país para o qual a criança foi levada ou no qual a criança está sendo retida à verificação da ocorrência ou não da subtração ou retenção ilícita da criança, vedando decisões sobre custódia, que deverão ser tomadas no país de residência habitual do menor. Assim, embora a prática mostre que um retorno voluntário é preferível a uma ordem judicial de retorno, ainda há dúvidas sobre a validade de um acordo que possa ferir a competência da outra jurisdição.
Conclusão
O objetivo do trabalho desenvolvido hoje pela HCCH em relação ao tema é o de encontrar soluções que garantam a validade de acordos privados em disputas familiares. Com base nas respostas ao questionário enviado em 2015 aos membros das diferentes Convenções de proteção às crianças da Haia, o grupo pretende analisar a existência de regras em comum que possam servir na construção de um instrumento que permita o reconhecimento e execução de acordos envolvendo os diversos temas cobertos pelos tratados existentes. Assim, possibilitar-se-ia a escolha, pelas partes, de uma jurisdição para homologação de um acordo sobre guarda, alimentos e residência da criança – o que se chamou de “pacote de acordos” (HCCH, 2016, p. 3) – que seria válido nas demais jurisdições, sem necessidade de homologação por meio de cartas rogatórias.
Enquanto não se chega a um consenso sobre um novo tratado, o relatório ressalta a necessidade de que se promova a adesão à Convenção sobre Jurisdição, Lei Aplicável, Reconhecimento, Execução e Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção às Crianças, de 1996, pelos estados que dela ainda não fazem parte, como é o caso do Brasil. Na região das Américas, a Convenção de 1996 só está vigente no Equador, no Uruguai e na República Dominicana.
Ao Brasil, portanto, impõe-se o desafio de estudar a conveniência da adesão à Convenção de 1996, que completaria a participação do país no conjunto de Convenções da Haia que visam à proteção das crianças – o Brasil é parte, atualmente, das Convenções de Adoção e Sequestro, estando em análise pelo Congresso Nacional a Convenção de Alimentos, de 2007. A eventual adesão do Brasil não só garantiria a proteção das crianças brasileiras como, ao facilitar a análise de conflitos de competência em matéria de família, incentivaria os acordos privados, em consonância com as diretrizes atuais de diminuição de processos judiciais no país.
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* Lalisa Froeder Dittrich é Mestre em Direito (London School of Economics and Political Science, LSE) e Bacharel em Direito (UFRGS) e em Jornalismo (PUC-RS). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, atua no DRCI. Ajudou a elaborar a Lei de Mediação e trabalhou por 8 anos com sequestro internacional de crianças. Capacitada em mediação internacional pela MiKK, Berlim, é mediadora voluntária do TJDFT e da rede Cross-Border Mediators.
Cooperação Jurídica Internacional relacionada
à Operação Lava Jato
Foto: Flickr.com
Afora todas as repercussões e desdobramentos que as investigações criminais relacionadas à Operação Lava Jato têm causado junto à sociedade e às instituições brasileiras, existe um aspecto muito revelador, que vem demonstrando, na prática, de forma concreta, o aperfeiçoamento dos órgãos nacionais no combate ao crime em seu viés internacional.
Essa constatação pode ser demonstrada com um rápido panorama sobre os números e o desempenho obtido até o presente momento em relação aos pedidos de cooperação jurídica internacional relacionados ao tema, os quais reforçam os bons resultados que podem ser alcançados quando há conscientização das autoridades nacionais sobre a necessidade de enfrentamento do aspecto internacional do crime, aliado à existência de instituições preparadas e coordenadas para atuar com essa matéria.
Dentro da função de autoridade central exercida no Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça (DRCI/SNJ), cumpre à Coordenação-Geral de Recuperação de Ativos (CGRA) realizar a análise e a tramitação dos pedidos de assistência jurídica internacional em matéria penal, incluindo aqueles que versam sobre recuperação de ativos no exterior.
Atualmente, segundo levantamentos realizados na CGRA, há cerca de 3.000 pedidos de cooperação jurídica em andamento, em matéria penal e em recuperação de ativos. Para se ter uma ideia da dimensão anual desses números, apenas no ano de 2015, foram recebidos 1.490 pedidos novos de cooperação jurídica internacional, sendo 1.156 ativos e 334 passivos.
Dentre eles, encontram-se os pedidos de assistência jurídica internacional relacionados à Operação Lava Jato. Desde o início das investigações, que recentemente completaram dois anos, foram recebidos 86 pedidos de cooperação jurídica internacional, sendo 74 ativos e 12 passivos1.
Em alguns desses pedidos, existem diversas solicitações sequenciais e complementares. Assim, se considerássemos cada uma dessas solicitações individualmente, a quantidade de pedidos tramitados passaria de cem. Entretanto, por razões de melhor administração e monitoramento dos casos, alguns deles foram cadastrados e considerados como se fossem integrantes de um mesmo pedido de cooperação.
Em relação as 74 solicitações ativas de assistência jurídica recebida na CGRA até o momento, a grande maioria foi elaborada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), acompanhados de outros pedidos oriundos da Justiça Federal e também do Departamento de Polícia Federal (DPF). Em geral, os pedidos elaborados pela PGR e pelo DPF têm por finalidade a obtenção de provas diversas, quebras de sigilo bancário, buscas e apreensões e oitivas de testemunhas, bem como medidas assecuratórias e de repatriação sobre ativos localizados no exterior. Já os pedidos provenientes da Justiça Federal, em geral, têm como objetivos a realização de citações de réus, intimações e oitivas de testemunhas de defesa, que se encontram em território estrangeiro. Tal fato demonstra a diversidade de demandas e necessidades que podem surgir no âmbito de uma mesma investigação de grande porte.
Outro dado interessante encontra-se no fato de que os pedidos ativos de cooperação jurídica – tramitados até este momento – foram endereçados a 31 países diferentes, quais sejam: Alemanha, Andorra, Antígua e Barbuda, Áustria, Bahamas, China, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos da América, Gibraltar, Holanda, Hong Kong, Ilhas de Man, Ilhas Cayman, Itália, Israel, Japão, Liechteinstein, Luxemburgo, Macau, Mônaco, Noruega, Holanda, Panamá, Peru, Reino Unido, República Dominicana, Singapura, Suécia, Suíça e Uruguai. Tal fato revela que a Operação Lava Jato representa o caso criminal que gerou demandas para a maior quantidade de países na história do DRCI.
Cumpre-se destacar aqui que a investigação criminal brasileira que mais gerou quantidade de pedidos de cooperação tramitados pelo DRCI foi a Operação Banestado e seus desmembramentos, havendo registros de 185 solicitações de assistência jurídica até o momento. Entretanto, no caso Banestado quase todos pedidos de cooperação foram destinados apenas a um país, Estados Unidos da América, ao passo que na Operação Lava Jato, a vasta quantidade de países envolvidos é sua característica mais marcante no âmbito da cooperação jurídica internacional, acompanhada também da diversidade de medidas solicitadas.
Outro indicador que demonstra o aumento da efetividade e celeridade na obtenção de medidas processuais e provas no exterior refere-se aos resultados obtidos até o momento. Dentre todos os pedidos ativos e passivos de cooperação envolvendo a referida investigação, em 43 deles já foi possível receber algum tipo de restituição ou informações conclusivas. Desses, 34 pedidos de cooperação foram integral ou parcialmente cumpridos, quatro foram restituídos independentemente de seu cumprimento por solicitação da própria autoridade requerente e apenas cinco não foram cumpridos pelas autoridades requeridas.
Desta forma, os casos de cooperação jurídica formalizados no âmbito da Operação Lava Jato vêm obtendo resultados satisfatórios, até mesmo acima da média, se comparados ao parâmetro geral dos demais pedidos. Isso não só pela quantidade de restituições cumpridas já obtidas, mas também pelos prazos de obtenção dessas respostas, as quais, em sua grande maioria, encontram-se abaixo da média geral.
Tais resultados revelam, na prática, o amadurecimento das instituições e o aperfeiçoamento das autoridades nacionais que atuam com processos no âmbito criminal sobre a cooperação jurídica internacional, compreendida como ferramenta acessível e cada vez mais eficiente para o combate internacional ao crime e para a realização da justiça.
Ademais, essa conscientização dos órgãos nacionais é reforçada também pela atuação proativa do DRCI, que atuando na qualidade de autoridade central para os pedidos de cooperação jurídica, vem acompanhando e monitorando esses casos por setor especializado, realizando contatos próximos com as autoridades centrais dos países estrangeiros e coordenando-se internamente com os órgãos nacionais requerentes.
1 Os números descritos neste artigo não compreendem os pedidos de cooperação jurídica tramitados com base nos acordos bilaterais de assistência jurídica em matéria penal entre Brasil e Portugal e entre Brasil e Canadá, cuja Autoridade Central é a Procuradoria-Geral da República.
A rede de cooperação jurídica da CPLP
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A Rede de Cooperação Jurídica e Judiciária Internacional dos Países de Língua Portuguesa (Rede de Cooperação Jurídica da CPLP) foi criada em 2005, durante a X Conferência de Ministros da Justiça dos Países de Língua Portuguesa (CMJPLOP), sendo composta por: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. A Rede tem duas unidades distintas: uma dedicada à área penal; outra, à área civil e comercial.
A Rede é integrada por Pontos de Contato sediados em cada país e, de acordo com o artigo 6º do seu Instrumento de criação, é assistida por um Secretário-Geral nomeado pela CMJPLOP. A Rede conta ainda com um Secretário-Geral, nomeado pela CMJPLOP e instalado no Secretariado Permanente daquela Conferência.
Realizou-se em Lisboa, de 19 a 21 de abril deste ano, a 2ª Reunião dos Pontos de Contato da Rede, desta feita com foco na área da cooperação em matéria civil. A abertura do evento contou com a presença do Presidente da República de Portugal, do Presidente do Conselho Superior da Magistratura e da Ministra da Justiça de Portugal, bem como do Ministro da Justiça do Timor-Leste, este no papel de Presidente da CMJPLOP.
Os trabalhos seguiram-se com palestras e intervenções dos Pontos de Contato da área civil em cada país, de representantes do Ministério da Justiça Português e da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH), entre outras autoridades locais. O representante do DRCI/SNJ, enquanto Ponto de Contato brasileiro para a cooperação em matéria civil no âmbito da Rede, proferiu palestra sobre “o iSupport e a experiência brasileira no uso e transmissão eletrônica de pedidos de cooperação jurídica”. O iSupport é a ferramenta em desenvolvimento para a gestão e a transmissão eletrônica de pedidos de alimentos entre os Estados Contratantes da Convenção da Haia sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, atualmente em apreciação pelo Congresso Nacional. A aprovação da Convenção é o objetivo principal do Grupo de Trabalho Interministerial – GT Alimentos, composto pelo DRCI/SNJ e pelo Itamaraty, que o coordenam, e que conta com a participação da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Advocacia-Geral da União de outros atores governamentais, além de representantes oriundos do Judiciário e da Academia. Uma vez aprovado o texto da Convenção, será necessária a sua ratificação e a indicação de autoridade central, para que então o texto seja promulgado e entre em vigor para o Brasil.
Ponto Focal designado pelo Itamaraty para o desenvolvimento do iSupport, o DRCI/SNJ, com a participação eventual de alguns membros do GT Alimentos, já realizou 61 reuniões sobre o assunto com os demais países e o Escritório Permanente da Conferência da Haia, todas por videoconferência. O sistema já está em testes da Fase Piloto e deverá ser finalizado em breve.
Além do iSupport, o representante brasileiro na Reunião da Rede relatou outras iniciativas do DRCI/SNJ no sentido da tramitação eletrônica de pedidos de cooperação jurídica internacional, mencionando as iniciativas bilaterais, bem como os esforços no âmbito da Rede Ibero-Americana de Cooperação Jurídica Internacional - IberRede e junto a outras autoridades centrais para convenções da HCCH. Mereceu destaque também a tramitação eletrônica no âmbito doméstico, com a utilização do Sistema Eletrônico de Informações (SEI) no Poder Executivo e da recém-criada Rede Privada Virtual para o intercâmbio eletrônico de pedidos de cooperação jurídica entre o DRCI e a PGR.
Relatadas as experiências em curso, os demais Pontos de Contato da Rede de Cooperação Jurídica da CPLP foram convidados a trabalharem conjuntamente na direção da tramitação eletrônica de pedidos no âmbito da Rede.
A reciprocidade e a cooperação internacional nas matérias de extradição e transferência de pessoas condenadas
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A reciprocidade constitui um dos princípios basilares da ideia de cooperação entre os povos e alguns tratados já previam em seu texto, nos séculos XII e XIII. É um instituto que possui natureza ao mesmo tempo política, jurídica e negocial, suficiente para levar um Estado a atender ou não ao requerimento de outro ente internacional.
A aplicação do princípio da reciprocidade merece destaque em um mundo globalizado, cada vez mais integrado por tratados multinacionais e que levam à criação de um sistema legal supranacional. Novos instrumentos de cooperação jurídica internacional, tanto em matéria penal como em matéria civil, possibilitam o dinamismo e a eficácia da prestação da tutela jurisdicional estatal. Isso se deve ao fato de as transformações ocorridas nas sociedades refletirem-se nos ordenamentos jurídicos, forçando-os a amoldarem-se às novas realidades.
Esse princípio implica o direito de igualdade e de respeito mútuo entre os Estados e tem especial destaque nos pedidos de extradição oriundos de países com os quais o Brasil não mantém tratado para esses fins. Nos termos do artigo 86 da Lei Nº 6.815/80, a “extradição poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em tratado ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade”.
Assim, diante da necessidade de aumentar a cooperação entre os países, mesmo na ausência de tratados negociados e vigentes, a promessa de reciprocidade, que é um ato de soberania do Estado, sempre se mostrou um mecanismo versátil e compatível com essa nova era, tratando-se de um dever que se impõe a todos os Estados por igual, quando a ocasião se apresenta. Da mesma forma, cabe destacar que a regra de reciprocidade só é válida quando não existe um tratado vigente, pois, se existe, não faz sentido utilizá-lo com base na reciprocidade.
Por outro lado, o instituto da Transferência de Pessoas Condenadas, apesar de novo, é também um mecanismo de cooperação jurídica de natureza humanista que contribui para a reintegração social do apenado junto ao seu ambiente familiar.
Não obstante ser a reciprocidade o princípio basilar das relações entre os Estados soberanos, no Brasil inexiste qualquer regulamentação legal sobre a possibilidade de utilização desse princípio da cooperação para a tramitação dos presentes casos, que quando tramitados, efetua-se somente com base em tratados bilaterais ou multilaterais dos quais o Estado brasileiro seja parte.
Em que pese ser o instituto um instrumento de cooperação internacional, este encontra também base na padronização da execução penal pretendida pela ONU, na proteção à dignidade da pessoa humana e no direito subjetivo da pessoa condenada à transferência internacional.
Na esteira do exposto, acreditamos que a reciprocidade, apesar de não prevista para tal fim, mantém-se como alternativa factível para interação entre Estados e assegura ao ente internacional o direito de solicitar ou atender, não somente pedidos de extradição, como também pedidos de transferência de pessoas condenadas, haja vista o caráter humanista da medida.
Cooperação internacional com a Hungria
Foto: Divulgação/DRCI/SNJ
Em 2012, o Brasil propôs à Hungria a celebração de acordo de cooperação jurídica internacional em matéria de extradição. Ao texto inicialmente apresentado, somaram-se sucessivas contribuições para que o acordo contemplasse o sistema jurídico de ambos os países e princípios de direito internacional. Foi assim que, em abril de 2016, recebemos visita de delegação húngara, com o objetivo de, finalmente, celebrar o acordo em negociação.
A delegação brasileira foi chefiada pelo Embaixador Rubens Gama, Diretor do Departamento de Imigração e Assuntos Jurídicos do Ministério das Relações Exteriores. Tratou-se da primeira rodada de negociação presencial sobre extradição que contou com a presença do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça. A estreia se deu por força do Decreto n. 8.668, de 11 de fevereiro de 2016, que atribuiu ao Departamento a competência de “negociar acordos de cooperação jurídica internacional, inclusive em assuntos de extradição, de transferência de pessoas condenadas e de transferência da execução da pena” (art. 10, inc. IV, anexo I). A delegação húngara foi chefiada pela Dra. Tünde Forman, Chefe do Departamento de Direito Penal Internacional e Direitos Humanos do Ministério da Justiça da Hungria.
Em suma, o acordo fundamenta pedidos de cooperação que visam a extradição de indivíduos que se encontrem no Brasil ou na Hungria e que sejam procurados pelas autoridades judiciais desses países, tendo em vista processo criminal em curso ou execução de sentença condenatória a pena privativa de liberdade, imposta por decisão judicial final. Contudo, nem todos os crimes são passíveis de extradição. Nos termos do acordo, somente os crimes puníveis com pena privativa de liberdade superior a um ano incluem-se, no rol da extradição. O pedido deve ser encaminhado antes que se completem seis meses para o fim do cumprimento da sentença condenatória. Em que pese a incidência do princípio da dupla tipicidade para a concessão do pedido, não é imprescindível que a lei de ambos os países classifiquem o crime na mesma categoria ou que se valha da mesma terminologia para denominá-los.
Dentre as hipóteses de recusa em atender ao pedido, estão (i) a ameaça à soberania, à segurança nacional, à ordem pública ou à Constituição do país; (ii) a prescrição do crime; (iii) a existência de sentença penal transitada em julgado pela qual o Estado requerido condene o extraditando pelo crime que fundamenta o pedido de extradição; (iv) a previsão do delito exclusivamente como crime militar; (v) a inimputabilidade do extraditando; (vi) a natureza política do crime pelo qual se requer a extradição. O respeito aos direitos fundamentais - que inclui a proteção contra tratamento cruel, desumano ou degradante - é condição indispensável à concessão da extradição. Assim, pode-se recusar o pedido de extradição caso haja indícios razoáveis de que a pessoa esteja sendo processada por motivo de raça, gênero, religião, nacionalidade ou opinião política. Tampouco serão extraditados aqueles que tenham recebido asilo, perdão ou anistia.
O acordo de extradição com a Hungria privilegiou o sistema já consagrado pelo direito internacional de prover cooperação jurídica internacional por meio de autoridades centrais. É comum às autoridades centrais a preocupação de realizar a cooperação de maneira célere e efetiva. Nesse sentido, cabe à autoridade central, por exemplo, evitar falhas na comunicação internacional e o seguimento de pedidos em desacordo com os pressupostos processuais gerais e específicos aplicáveis ao caso, bem como a eventual adoção de mecanismo de cooperação inadequado à situação específica.
Este modelo originou-se já na Convenção da Haia de Comunicação de Atos Processuais, de 1965. Segundo McClean, J.D., em “International Cooperation in Civil and Criminal Matters”, “The main innovation of the 1965 Convention was the creation of a system of Central Authorities. Each Contracting State must designate such a Central Authority to receive requests for service from other Contracting States. The expectation borne out of practice, was that this would involve not the creation of some new agency but the designation as Central Authority of one of some existing office or Ministry”. Desde então, o sistema se consagrou na comunidade internacional, com bons resultados. O Ministério da Justiça é a autoridade central brasileira para o acordo de extradição com a Hungria.