Edição n° 08 - outubro/2015
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nº 8 /2015
Qual a lei aplicável na execução de um pedido de cooperação?
A aplicação da lei adequada em cada fase da execução de uma medida de cooperação
Foto: Flickr.com
Por Carolina Yumi de Souza*
Um dos fenômenos mais interessantes advindos da teoria e da prática da cooperação jurídica internacional consiste na necessária interação entre sistemas jurídicos diversos. Esse fenômeno nasce da própria natureza da cooperação (aplicação de regras processuais de sistemas jurídicos diversos em um mesmo processo ou até mesmo em uma mesma fase processual), que traz em si a necessidade de equilíbrio entre três vetores: cooperação eficaz, reconhecimento da diversidade de sistemas e direitos dos concernidos (CERVINI, p.104).
Neste contexto, e partindo-se da premissa de que estamos a tratar de típico instituto de direito processual (ainda que com diversas características internacionalizantes que lhe são fundamentais), a definição da lei aplicável à cooperação jurídica internacional é basilar para que se possa verificar a legalidade e a validade das medidas produzidas.
Isto porque será aplicada a lei do país onde irá se produzir a medida e, assim, será introduzida e analisada em um processo que se desenvolve em território nacional medida executada de acordo com as leis estrangeiras; também será produzida medida em um determinado país embasada na legislação do Estado requerente.
Desta forma, será necessária uma conciliação entre normas e procedimentos, inclusive sob o ponto de vista de sua interpretação.
Necessário advertir, aqui, que essa conciliação, no entanto, não implica afirmar que não seja necessário verificar o respeito aos direitos fundamentais e a outras normas nos dois ordenamentos envolvidos, pois não importa onde seja produzida a violação: ela não pode ser tolerada.
Retornando ao cerne da discussão, é consagrado o entendimento de que a lei de execução de um pedido de cooperação é a Lex diligentiae (como terminologia substitutiva ao brocardo locus regit actum), isto é, a lei do território de desenvolvimento da medida.
E para entender corretamente a aplicação da Lex diligentiae, exercício salutar é dividir o processo de Cooperação Jurídica Internacional em fases e de acordo com a perspectiva enfocada, do Estado requerido ou do requerente. Desta forma dividida, verifica-se a incidência da lei do Estado em que a medida deva se produzir.
Assim, sob a perspectiva do Estado requerido devem ser analisados os princípios e normas que devem ser respeitados e que formas de flexibilização podem ser feitas em sua própria legislação processual para atender a determinados requisitos do Estado requerente e, ainda, quando e por qual motivo deve se recusar a prestar cooperação.
Sob a perspectiva do Estado requerente, analisam-se os critérios a se respeitar na elaboração do pedido e no momento de análise do pedido executado. Além disso, analisar-se-á quando uma medida produzida em outro Estado não deve ser incorporada ao seu procedimento interno.
E a incorporação das medidas no processo ainda deve ser vista sob dois prismas: I - quando suas próprias normas são violadas, mas respeitadas as normas do Estado requerido; II - quando são violadas as normas do Estado requerido.
Os aspectos elencados, no entanto, não são uniformemente entendidos pela jurisprudência. Pode-se identificar tendência a analisar a violação de normas somente quando haja graves e claras violações a direitos humanos (a ofensa à dignidade da pessoa humana foi inserida como causa de recusa à cooperação no artigo 216-P do Regimento Interno do STJ, ao lado da ordem pública e da soberania nacional).
A utilização de tortura durante um interrogatório é um exemplo claro de recusa, tanto para cumprir uma medida de cooperação como para introduzi-la em um processo nacional. Porém, como agir em zonas aparentemente cinzentas, ainda mais na ausência de regras? Quando é realizada no Estado requerido oitiva de testemunha sem a presença de uma autoridade judicial e trata-se de medida a ser incorporada no processo penal em desenvolvimento no Estado requerente, como agir? Ou no caso de execução de medidas que, no Estado requerente, obrigatoriamente, são submetidas à reserva de jurisdição, mas que podem ser executadas administrativamente no Estado requerido (ex.: bloqueio de bens e valores)?
Não existe resposta simples a estas perguntas, mas, hoje, parece ser a interpretação dos Tribunais Nacionais sempre a mais favorável à validade da cooperação. Isto explica-se principalmente porque nenhum Estado deseja ter seu sistema questionado ou um pedido seu negado por outra jurisdição. Além disso, o combate ao crime é política prioritária da maior parte dos Estados, que se empenham em auxiliar-se mutuamente nesta seara.
Prosseguindo, sendo a lei aplicável aquela do Estado requerido (onde será executada a medida), é necessário identificar a qual lei se está referindo: será a lei de cooperação do Estado requerido, sendo as demais leis processuais internas a ela subsidiárias. No caso brasileiro, tendo em vista a ausência quase completa de regulamentação acerca do cumprimento de pedidos de cooperação passivos, imperiosa a aplicação do Código de Processo Penal na execução de todos os pedidos de cooperação que não possuam procedimento definido, especialmente nos casos de auxílio direto.
Ainda dentro da estrutura proposta, a aplicação das normas ocorrerá de acordo com o momento e o lugar em que a fase da Cooperação Jurídica Internacional irá se desenvolver. Quanto à solicitação da medida, são aplicáveis as regras do Estado requerente (no tocante à legitimidade para solicitar a medida e às hipóteses de cabimento), em conjunto com as do tratado, se houver.
Encaminhado o pedido ao Estado requerido, haverá três momentos que ele deve verificar: 1. possibilidade de cumprimento do pedido de acordo com o tratado e com suas leis; 2. se o procedimento no país requerente violou algum direito fundamental (nos dois ordenamentos); 3. no momento da execução, o Estado requerido aplicará as regras do tratado (se houver) e, subsidiariamente, suas leis.
Após, o país requerente analisará o pedido cumprido de acordo com os requisitos do tratado e os procedimentos no Estado requerido para verificar sua legalidade e admissibilidade. Deve-se frisar que esta análise será realizada no Estado requerente, mas com base no ordenamento jurídico do requerido.
É importante notar que o Estado requerente não verificará a exata correspondência dos procedimentos adotados, mas somente se esses obedeceram aos ditames da lei do Estado requerido e se garantem os direitos fundamentais.
Se as normas do país onde se executou a medida tiverem sido violadas, ela não será válida (no caso de pedido que envolva a produção de prova, não será admitida1). Mas se suas próprias normas não tiverem sido seguidas, a medida produzida será válida e admissível, a menos que direitos fundamentais tenham sido vulnerado, sendo ilícita.
Outro ponto importante relativo à lei aplicável é a possibilidade de o Estado requerente solicitar que a execução da medida no Estado requerido siga procedimento diferente daquele previsto em seu ordenamento, para que, no caso de produção de prova, a medida produzida no Estado requerido seja admissível no Estado requerente.
Sob o ponto de vista brasileiro, o art. 1º do CPP é que trata da questão da lei processual penal no espaço, dispondo que: “O processo penal reger-se-á, em todo território brasileiro, por este Código”. Há, porém, exceção quando assim previrem os tratados, as convenções e as regras de direito internacional (artigo 1°, I), possibilitando a mistura de leis processuais penais, que podem dar origem a um outro procedimento.
Por fim, além dos dispositivos citados, alguns acordos preveem que poderá ser executada medida não proibida pelas leis do Estado requerido (caso do MLAT Brasil-Estados Unidos).
Aqui haveria total inovação. O STJ, no entanto, já se manifestou sobre este dispositivo (STJ, AgRg no ARESP 16998, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe de 25.09.2013), assentando a possibilidade de sua aplicação.
Como se vê, compartimentalizando as fases de um pedido de cooperação, é possível aferir a lei que se aplica corretamente e aferir sua validade.
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CERVINI, Raúl. Principio de Confidencialidad y Magisterio de la Defensa en la Cooperación Judicial Penal Internacional. Revista de la Facultad de Derecho, nº 31, Montevideo, julio-diciembre 2011, págs. 103-115.
1 Prova ilegítima, que será nula.
* Carolina Yumi de Souza é Mestre e Doutora em Direito Proessual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Advogada da União e Assessora na Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça
Pedidos de Quebra de Sigilo Bancário de Contas no Exterior
Foto: Flickr.com
O Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), designado como Autoridade Central para a grande maioria dos acordos internacionais sobre assistência jurídica em matéria penal dos quais o Brasil é signatário, é responsável não apenas pelo recebimento, análise e transmissão dos pedidos de cooperação jurídica internacional, mas possui também importante papel no aprimoramento e otimização de seus procedimentos, a fim de tornar os trâmites de documentos e o cumprimento de pedidos de cooperação cada vez mais céleres, eficazes e eficientes.
Nesse diapasão, visando apresentar alternativas para acelerar o prazo de cumprimento dos pedidos, o DRCI, por meio da Coordenação-Geral de Recuperação de Ativos (CGRA), realizou um levantamento com criteriosa análise dos casos restituídos, constatando que cooperações envolvendo solicitações de quebra de sigilo bancário exigem uma atenção especial na elaboração do respectivo pedido, a fim de que possam ser cumpridos pela autoridade estrangeira.
Frequentemente, a autoridade requerente brasileira, respondendo à solicitação de adequação, precisa prover dados e informações complementares que possibilitem a execução do pedido de quebra de sigilo bancário. Essa solicitação de adequação pode acontecer de duas formas: a primeira delas acontece “internamente”, quando o DRCI, na condição de Autoridade Central brasileira, ao analisar o pedido recebido, constata alguma irregularidade e o devolve à autoridade requerente para as adequações necessárias. A outra forma ocorre “externamente”, quando a Autoridade Central do Estado Requerido solicita alguma adequação específica ou requer informações adicionais sobre o caso.
Destaca-se que esse procedimento atrasa o cumprimento das diligências, uma vez que, para a adequação de um pedido ou o fornecimento de informações adicionais, as autoridades requerentes brasileiras gastam, em média, 4,5 meses, o que resulta em considerável parte do tempo total do trâmite, compreendido desde o envio do pedido às autoridades estrangeiras até a sua restituição ao DRCI. Esse tempo já chegou a casos extremos, quando o pedido passou mais de 50% do tempo total de trâmite aguardando as adequações exigidas pelas autoridades estrangeiras, levando mais tempo em território nacional, com essas adequações, do que em território estrangeiro para a realização da diligência em si.
É comum que, assim como no Brasil, as autoridades estrangeiras responsáveis pela execução dos pedidos tenham que ajuizar ações penais perante os tribunais competentes dos seus países para obter regularmente a quebra de sigilo bancário. Nesses casos, o tribunal local, decidirá pelo cumprimento ou não da decisão estrangeira de quebra do sigilo bancário. Assim, para o deferimento da medida, é essencial que o pedido esteja devidamente instruído com elementos exigidos pela lei interna do país e pelos acordos de cooperação jurídica internacional.
Em razão dessa necessidade de judicialização dos pedidos para fins de afastamento de sigilo bancário e visando propiciar a total compreensão da utilidade da medida, o principal fator apontado pelas Autoridades Centrais estrangeiras para o não cumprimento desse tipo de diligência no exterior está na falta ou insuficiência de demonstração do nexo causal entre o investigado ou réu, a conta bancária alvo da medida, a atividade criminosa e o período da quebra bancária solicitada.
Assim, com base na experiência adquirida pelo DRCI, bem como nos tratados internacionais que regem a cooperação jurídica internacional, aconselha-se que as autoridades requerentes sigam as orientações indicadas no Portal do Ministério da Justiça e entrem em contato com a CGRA previamente pelo e-mail cooperacaopenal@mj.gov.br, a fim de que sejam feitas possíveis recomendações antes mesmo da tradução definitiva do pedido de cooperação. Dessa forma, as solicitações de quebra de sigilo bancário no exterior tenderão a um maior índice de cumprimento e em menor tempo, sempre preservando a legalidade dos trâmites e providências adotados.
Pensões Alimentícias no Exterior: Propostas da Rede Iberoamericana
Foto: Arquivo/MJ
Recentemente, a Rede de Cooperação Jurídica Internacional Ibero-americana – IberRede (www.iberred.org) criou a figura do Enlace para a Prestação Internacional de Alimentos, ou seja, para pedidos internacionais de pensões alimentícias. Cada um dos 22 países latino-americanos e ibéricos membros da Rede indicou, então, um ou mais responsáveis por desenvolver o assunto e por responder a eventuais demandas internas ou dos outros países.
Como parte das iniciativas para o avanço do tema, de 28 a 30 de setembro de 2015, o DRCI/SNJ participou do Primeiro Encontro sobre Cooperação Jurídica Internacional em Matéria de Obrigações Alimentares da IberRede, ocorrido em Cartagena das Índias, Colômbia.
Participaram também representante da Procuradoria-Geral da República e delegados da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Espanha, México, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, República Dominicana e Uruguai, além do Representante Regional da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
Entre os resultados da Reunião, merecem destaque o diagnóstico da necessidade da adesão a convenções multilaterais e o compromisso de buscar avançar na utilização da via eletrônica para a cooperação jurídica com vistas à obtenção de pensões alimentícias entre os países da Rede.
Entre outros, concluiu-se pela necessidade de que os países ibero-americanos adiram à nova Convenção da Haia de Alimentos (2007) e à respectiva Convenção Interamericana. Foi também incentivada a negociação de tratado que confira validade jurídica aos pedidos feitos por meio do Sistema Iber@, ferramenta eletrônica disponibilizada pela Rede.
Paralelamente, foi aprovada a proposta do DRCI/SNJ de que cada país informe à IberRede as suas ofertas quanto a tipos de demandas que já podem ser cursadas pelo Iber@, desde meras solicitações de informação à tramitação em si dos pedidos, para os países em que isso já seja possível.
Brasil negocia acordo com o Cazaquistão
Foto: Arquivo/MJ
O Ministério da Justiça participou da negociação de acordo de cooperação jurídica internacional em matéria penal com o Cazaquistão. As tratativas tiveram início em 2011, quando o Ministério das Relações Exteriores enviou proposta brasileira de acordo às autoridades cazaques. Desde então, foram trocadas impressões sobre o texto, com o objetivo de encontrar convergências entre os sistemas jurídicos e, assim, estabelecer canais efetivos de cooperação. O processo exigiu estudo aprofundado sobre o sistema jurídico de ambos os países, sobre as fontes de direito utilizadas e sobre os tratados internacionais a que se obrigam perante as demais nações. Essas variáveis balizaram a sucessão do intercâmbio de contrapropostas, até que o texto foi considerado maduro para ser debatido presencialmente. Na reunião, o êxito do processo de negociação ficou expresso no consenso atingido para a adoção de texto conveniente para ambas as partes.
Sem esse acordo, a cooperação internacional com o Cazaquistão era prestada mediante promessa de reciprocidade ou por meio de convenções multilaterais. A celebração do acordo bilateral permite que as solicitações de auxílio jurídico tramitadas com o Cazaquistão se orientem por normas específicas, que conferem previsibilidade à execução de pedidos concretos de cooperação, o que contribui para a segurança das relações com aquele país. A negociação do acordo esteve alinhada com as estratégias de cooperação mais atuais da comunidade internacional. A versão final conta com dispositivos que avançam em temas como a recuperação e a divisão de ativos de origem ilícita, e lança mão de ferramentas tecnológicas ao prever a possibilidade de realização de audiências por videoconferência e a tramitação eletrônica de pedidos de auxílio entre os nossos países.
Os crimes que possuem natureza transnacional se caracterizam pela complexidade e agilidade de procedimentos, o que requer uma ação estatal também rápida e eficaz. Os acordos bilaterais possuem a prerrogativa de adequar as solicitações de cooperação às especificidades próprias dos sistemas jurídicos dos países envolvidos, o que possibilita o sucesso do cumprimento desses pedidos. Esse é o principal mérito desse acordo, cujas disposições poderão encaminhar de forma mais célere solicitações de auxílio de forma geral e, inclusive, pedidos de quebra de sigilo bancário e solicitações de constrição de bens, para fins de recuperação de ativos.