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MILAGRE DOS PEIXES 50 ANOS
Ruy Guerra fala de sua canção com Milton Nascimento mutilada pela censura
Cadê' sofreu tantos cortes que Bituca decidiu gravá-la sem a letra no disco 'Milagre dos peixes', desafiando a ditadura só com a sua voz
Publicado em
07/06/2023 08h56
Ruy Guerra falou de violência e desesperança em 'Cadê'
'Os censores liam as propostas e canções já com preconceito, censuravam tudo o que não compreendiam, até palavras inocentes ou metáforas suspeitas'
Ruy Guerra, cineasta e compositor
Gabriel de Sá
Especial para o EM
“Não me chame de senhor, por favor”, pede Ruy Guerra, ao telefone, do alto de seus 91 anos. O cineasta moçambicano é um personagem importante não apenas do disco “Milagre dos peixes”, mas da trajetória de Milton Nascimento. Ele é o autor da letra de “Cadê”, canção censurada pela ditadura militar e gravada em versão instrumental no álbum de 1973.
“Vetada. Ironia política. Contestação”, escreveu ela, à mão, em abril de 1973, ao lado da letra criada por Ruy Guerra para a melodia de Milton Nascimento.
O álbum “Milagre dos peixes” teve outras duas composições proibidas pela censura: “Hoje é dia de El-Rey”, de Milton e Márcio Borges, e “Os escravos de Jó”, parceria de Milton com Fernando Brant. O artista não se intimidou com as proibições e resolveu gravar as canções sem as letras, fazendo do disco de 1973 um trabalho essencialmente instrumental.
A composição de Milton Nascimento e Ruy Guerra evoca personagens do universo infantil, como Peter Pan, Branca de Neve, Alice e Bela Adormecida, em atmosfera de flagrante desesperança.
No documento, localizado no acervo digital do Arquivo Nacional, estão sublinhados pela oficial trechos como “E a tua esperança, Branca de Neve/ Cadê, quem levou?” e “Meu príncipe assustado/ Meu príncipe queimado/ Corta a noite escura dessa floresta/ Mata o fogo do dragão”. Estas passagens justificam o veto, na visão de Brum Duarte, por conterem “ironia política” e “contestação”.
Mas os versos de “Cadê” se esvaíram da memória de Ruy Guerra. “Nunca fui muito organizado, há coisas de que eu realmente não me lembro. Estive doente e minha memória foi bastante afetada”, detalha o cineasta.
O compositor recebe a letra para analisar o conteúdo e responde, por mensagem de texto: “Pode ser minha, acho mesmo que é, mas não posso jurar”.
“Cadê” foi gravada com a letra original apenas em 1978, por Gal Costa, no disco “Água viva”. “Meu príncipe encantado/ Meu príncipe cansado/ Cadê tuas botas de sete léguas/ E a Tilin de Peter Pan?”. Antes disso, Bituca registrou a canção com letra em inglês criada por Matthew Moore no LP “Milton”, lançado em 1976, com o nome de “Fairy tale song” (“Canção de conto de fadas”, em tradução literal).
A primeira parceria com Ruy Guerra, “Canto latino”, Milton registrou no álbum de 1970. Da colaboração musical dos dois se destacam também “E daí? (A queda)”, faixa no LP “Clube da Esquina 2” (1978), e “Bodas”, da trilha sonora de “Os deuses e os mortos”, gravada ao vivo no álbum “Milagres dos peixes” de 1974. Desta, Ruy Guerra lembra-se bem, e a cantarola ao telefone: “Chegou no porto um canhão/ Dentro de uma canhoneira, neira, neira…”.
Meu príncipe cansado
Radicado no Brasil desde os anos 1950, Ruy Guerra rodou alguns dos clássicos do cinema brasileiro, como “Os cafajestes”, “Os fuzis” e “Os deuses e os mortos”. Milton compôs a trilha sonora deste último, lançado em 1970, mas ele e Guerra já se conheciam desde o Festival Internacional da Canção de 1967.
“Milton apareceu com aquela voz brilhante, e um talento de compositor igualmente extraordinário. Foi uma distribuição de talentos desigual para ele”, brinca o cineasta e compositor.
Ruy Guerra consagrou-se também na música popular, para a qual gerou composições com Edu Lobo, Marcos Valle, Francis Hime, Carlos Lyra e, sobretudo, Chico Buarque.
São da lavra dele e de Chico pérolas como “Bárbara”, “Tatuagem” e “Não existe pecado ao sul do Equador”, feitas para a peça de teatro “Calabar: O elogio da traição”, de autoria dos dois e proibida pela ditadura militar em 1974.
“A gente tinha que fazer um grande esforço”, diz Ruy Guerra. “Os censores liam as propostas e canções já com preconceito, censuravam tudo o que não compreendiam, até palavras inocentes ou metáforas suspeitas”. Chico Buarque estava na lista de artistas perseguidos pelo regime militar, e Ruy acredita que a fama subversiva do amigo acabou respingando nele.
Mas e Milton, cujas canções tinham teor político radicalmente mais sutil que as dos outros compositores? “Milton nunca foi de falar muito, nem de dar declarações políticas. É um cara de frases curtas, não verborrágico como eu. Mesmo assim, foi censurado”, opina Guerra.
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O apoteótico adeus aos palcos de Milton Nascimento
'Milagre dos peixes': erros grosseiros no Spotify
O álbum “Milagre dos peixes” está disponível no serviço de streaming Spotify, porém há canções creditadas de maneira incorreta, causando confusão nos ouvintes desavisados. A faixa citada como “Cadê”, por exemplo, é “Pablo nº2”; enquanto a verdadeira “Cadê” aparece como “A última sessão de música”. Esta inconsistência nas informações ocorre em cinco das 11 faixas do disco.
SÉRIE DE REPORTAGENS
O Estado de Minas publica desde domingo a série de reportagens O milagre de Milton”, sobre os 50 anos de lançamento do LP “Milagre dos peixes”. Lançado em 1973, o álbum tornou-se o grito de Milton Nascimento contra a censura vigente na ditadura militar. O sucessor do aclamado “Clube da Esquina” foi mutilado pelos censores, que vetaram os versos de três parcerias do cantor: “Os escravos de Jó” (com Fernando Brant), “Hoje é dia de El-Rey” (com Márcio Borges) e “Cadê” (com o cineasta Ruy Guerra). Milton, então, preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que expressavam o que havia sido proibido. As reportagens já publicadas podem ser lidas no em.com.br
LEIA NESTA QUINTA (8/6)
Em 1974, Milton Nascimento enfrentou mais uma vez os militares e gravou “Milagre dos peixes” ao vivo no Theatro Municipal de São Paulo.
Fonte: Estado de Minas, 07/06/2023