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De Pequim, Rafael Henrique Zerbetto recorda a primeira violação de direitos humanos da ditadura militar brasileira com repercussão internacional: a prisão de nove cidadãos chineses que nunca receberam desculpas do Brasil
O “Caso dos nove chineses”: 59 anos à espera de justiça
No dia 3 de abril de 1964, três dias após o golpe de Estado que deu início à ditadura militar brasileira (1964-1985), a polícia invadiu dois apartamentos no Rio de Janeiro e prendeu nove chineses sob a acusação de que seriam agentes estrangeiros trazidos ao Brasil para fazer uma revolução comunista. Este caso, embora pouco lembrado, foi a primeira violação de direitos humanos daquele regime a ter repercussão internacional.
As provas para incriminar os chineses foram inventadas: “Eles não acharam nada contra nós, então disseram, que nossos remédios chineses contra gripe e nossas agulhas de acupuntura seriam para assassinar pessoas” - recordou-se Ju Qingdong, a única vítima ainda viva, em entrevista ao jornalista Marcelo Ninio, publicada na Folha de S. Paulo em 2014.
Uma notícia publicada no Diário de Notícias no dia 4 de abril de 1964 confirma as palavras do sr. Ju: a versão que circulou na imprensa brasileira naquela época afirmava que os chineses tinham a missão de envenenar o governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, e os generais Amauri Kruel e Castelo Branco - três homens ligados ao regime recém instaurado. A notícia também aponta a existência de uma lista com contatos de políticos e de um jornalista de Última Hora , o único jornal que se opôs ao golpe.
Para entender melhor o caso, precisamos voltar a agosto de 1961, quando o vice-presidente João Goulart, após a visita de uma missão chinesa ao Brasil, foi incumbido de dar continuidade às negociações sobre um acordo comercial com a China, consequência natural da Política Externa Independente, formulada e defendida pelo ministro de relações exteriores, Santiago Dantas.
O entendimento do Itamaraty era de que os interesses nacionais do Brasil seriam melhor atendidos por uma política de não-alinhamento, que nos permitiria fortalecer as relações comerciais, sem necessariamente assumir compromissos políticos, com todos os países interessados, inclusive os do bloco socialista. A pauta de exportações do Brasil para a China incluiria principalmente matérias-primas, produtos agrícolas, óleos vegetais e bens de consumo, enquanto a da China para o Brasil consistiria de máquinas e ferramentas, minérios, bens de consumo e artesanato.
Em visita a Pequim, o vice-presidente João Goulart permitiu à China estabelecer um escritório comercial permanente e uma exposição comercial e industrial no Brasil. Baseado no princípio da reciprocidade, o acordo permitia ao Brasil organizar uma representação comercial e uma exposição de produtos brasileiros em solo chinês. A renúncia do presidente Jânio Quadros obrigou Jango a retornar imediatamente ao Brasil para assumir a presidência da república, cargo que ocuparia até ser derrubado em 64.
Em dezembro de 1961, a China enviou seus primeiros representantes ao Brasil, os jornalistas Ju Qingdong e Wang Weizheng, da agência de notícias Xinhua . Outros quatro chineses, Su Ziping, Hou Fazeng, Wang Zhi kaj Zhang Baosheng, chegaram ao Brasil em 1963 para organizar a exposição comercial.
Em fevereiro de 1964, chegaram os outros três: Wang Yaoting, vice diretor da Companhia Chinesa de Importação e Exportação de Têxteis; Ma Yaozeng, classificador de algodão; e Song Gueibao, intérprete, para comprar algodão brasileiro. Opositores do governo viam a missão chinesa com desconfiança, alegando que o presidente estaria planejando uma revolução comunista no Brasil com ajuda de agentes estrangeiros, e essa narrativa, embora fantasiosa, endossou o golpe de 64.
“Tínhamos apoio da comunidade internacional, estava claro que éramos vítimas de perseguição política. Até mesmo a imprensa brasileira nos apoiou. O Brasil ficou em uma posição desconfortável internacionalmente. Por isso, imediatamente após a sentença, o presidente [Castelo Branco] nos expulsou” - recorda Ju.
Os chineses foram condenados a dez anos de reclusão, sendo que já haviam cumprido um, mas o embaraço diplomático causado pela injustiça evidente de tal condenação levou o presidente Castelo Branco a decretar a expulsão imediata dos nove chineses, proibindo-os de retornar.
Além do apoio de diversos jornalistas brasileiros, entre eles Carlos Heitor Cony, cujos artigos sobre o caso podem ser lidos em seu libro O Ato e o Fato , os chineses também contaram com a valiosa ajuda do criminalista Heráclito Sobral Pinto, conhecido por sua dedicação à defesa dos direitos dos presos políticos.
Além de visitar regularmente os prisioneiros chineses, Sobral Pinto os defendeu no tribunal sem cobrar honorários. Quando os chineses foram expulsos do Brasil, Sobral Pinto os acompanhou ao aeroporto do Galeão e foi a última pessoa a se despedir deles, que, segundo relatos, o abraçaram com lágrimas nos olhos. Na China, os nove homens foram recebidos como heróis.
Somente em 2014, 50 anos após o episódio, foi publicado o primeiro livro dedicado a esse caso intrigante. Escrito pelos jornalistas Ciça Guedes kaj Murilo Fiuza de Melo, O Caso dos Nove Chineses reconstrói essa história com base em documentos, muitos deles inéditos, artigos de jornal, entrevistas e depoimentos.
Eis um exemplo: em 1997, o sr Ju tentou visitar o Brasil como turista e teve o visto negado, uma vez que o decreto presidencial que o impedia de entrar no país permanecia válido. Foi somente em dezembro de 2014 que o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, anulou o decreto e também as sentenças. Arquivado em 1965, o processo contra os chineses permaneceu no esquecimento até o ano passado, quando João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, solicitou ao STF sua anulação.
Em 2015, a então presidenta da república Dilma Rousseff, como forma de reparação pelo dado causado aos chineses, os admitiu, no grau de oficial, na Ordem do Cruzeiro do Sul, gesto muito apreciado pela China. A embaixada do Brasil em Pequim ficou incumbida de organizar uma cerimônia para a entrega das medalhas, mas o golpe de 2016 fez o assunto cair no “esquecimento”.
Dentre os nove chineses, cinco ainda eram vivos em 2014, quando a sociedade e o governo brasileiro começaram a se mexer para colocar um ponto final neste triste episódio. Agora, só resta o sr. Ju, que ainda tem esperança de receber em vida um pedido de desculpas pelos abusos sofridos e a honraria que lhe foi concedida em 2015 pelas autoridades brasileiras. É a última oportunidade que temos de reparar esta injustiça com a devida dignidade que cabe à nós, brasileiros.
* Rafael Henrique Zerbetto é bacharel em estudos literários pela Unicamp, pós-graduado em Interlinguística e Esperantologia pela Universidade “Adam Mickiewicz” da Polônia. Trabalha desde 2015 para a imprensa chinesa, com artigos e entrevistas publicados em diferentes revistas e websites.
Fonte: Revista Fórum, 11/05/2023
Disponível em: https://revistaforum.com.br/global/chinaemfoco/2023/5/11/caso-dos-nove-chineses-59-anos-espera-de-justia-135715.html