Notícias
Ao se encontrar com a mulher do governador de São Paulo, o dramaturgo francês soltou os cachorros e exigiu que quatro crianças fossem liberadas. Os militares cederam
Jean Genet visitou guerrilheira num presídio do Brasil e ajudou a libertar netos de aliada de Lamarca
09 julho 2023 às 00h00
O livro “A Torre — O Cotidiano de Mulheres Encarceradas pela Ditadura” (Companhia das Letras, 290 páginas), da jornalista Luiza Villaméa, conta a história de várias mulheres que foram presas pelo regime que geriu o Brasil entre 1964 e 1985. “Com armas nas mãos ou no apoio logístico, pelo menos 434 mulheres participaram de organizações clandestinas nos chamados anos de chumbo, 43 morreram durante a resistência ao regime, a maioria na tortura”, relata a mestre em História pela Universidade de São Paulo.
O combate ao sistema discricionário criado por militares e civis, vivandeiras ou não, não resultou tão-somente de articulações masculinas, como às vezes parece, ao menos em alguns livros. Várias mulheres chegaram a pegar em armas, revela a obra da repórter e pesquisadora, para fustigar a ditadura.
A “Torre” do título ficava no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Lá estiveram, entre outras, Ana Gomes, Dilma Rousseff (tinha o hábito de apelidar as companheiras, então ganhou o apelido de “Mineirão”), Dulce Maia, Dulce Pandolfi, Ilda Martins da Silva, Laís Tapajós, Leslie Denise Beloque, Lúcia Novaes, Margarida do Amaral Lopes (Guida), Maria Aparecida dos Santos (Cidinha), Maria do Carmo Campello de Souza, Maria Luiza Beloque, Maurina Borges da Silva (Madre Maurina), Neide Regina Cousin, Rose Nogueira, Tercina Dias de Oliveira e Therezinha Zerbini.
Este texto contém a história que envolve o dramaturgo francês Jean Genet (1910-1986), Tercina Dias de Oliveira (ligada ao capitão Carlos Lamarca), as atrizes Nilda Maria e Ruth Escobar e a primeira-dama Maria do Carmo, mulher de um governador.
Jean Genet: o drama da realidade
Jean Genet chegou ao Brasil, no dia 26 de maio de 1970, com o objetivo de ver a encenação de sua peça “O Balcão”, que estava sendo apresentada em São Paulo. O autor de “Nossa Senhora das Flores” atendera convite da atriz e produtora Ruth Escobar (1935-2017).
Ao lado de Ruth Escobar, uma mulher de fibra, dirigiu-se ao Presídio Tiradentes para visitar a atriz Nilda Maria Toniolo, “que”, registra Luiz Villaméa, “atuava em ousada montagem de ‘O Balcão’ e havia sido presa quando se preparava para sair de casa, rumo a mais um espetáculo”.
Na peça, Nilda Maria era a guerrilheira Chantal. No Presídio Tiradentes, no drama da vida, era companheira de cela da artista Maria Barreto Leite.
Na primeira visita, Jean Genet, ao lado de Ruth Escobar, foi barrado na penitenciária. Solidário, e conhecedor das agruras de um presídio, deu comida às presas. “Era um caixote enorme, com vários assados.”
Mais tarde, a direção do presídio permitiu a entrada de Jean Genet — apresentado como marido de uma tia de Nilda Maria. Num espaço da carceragem, a atriz e o dramaturgo se encontraram. “Eles estavam me esperando. Jean Genet, Ruth Escobar e Raul Cortez. Não sei como a Ruth conseguiu. Ela era muito louca. Muito contestadora. Conseguia coisas incríveis”, conta a atriz.
Luiza Villaméa diz que “o encontro aconteceu através de um portão com grade”. “Na verdade, não falamos muito. Foi um encontro emocional, muito forte. Eram olhares. Abraços através de uma grade. Ele ficou muito comovido. Parecia entender o que eu estava sentindo. Tínhamos uma cumplicidade. E a mesma experiência”, assinala Nilda Maria.
A atriz Nilda Maria e o marido foram acusados por agentes da ditadura de “integrar a rede de apoio da organização liderada pelo capitão Lamarca”. O ex-militar liderava a VPR.
Em “O Balcão”, a presença e a fala de Nilda Maria, a Chantal, eram imprescindíveis. Como não pôde participar, Ruth Escolar pegou o microfone e anunciou que a atriz havia sido presa. A produtora comunicou que, apesar disso, não seria substituída na apresentação da peça. “A cena com Chantal estava suspensa da peça até Nilda Maria ser libertada pela polícia política.”
“Soube mais tarde que isso levantou um burburinho ainda maior, porque as pessoas iam ao espetáculo para ver a cena cortada. Então a repressão ficou mais irada”, diz Nilda Maria. Dirigida pelo argentino Victor Garcia, e apresentada no Teatro Ruth Escobar, a peça contou com os atores Raul Cortez, Ruth Escolar, Sérgio Mamberti e Paulo César Pereio.
Jean Genet e a primeira-dama
Ante o sucesso da peça e o nome globalizado de Jean Genet, a primeira-dama de São Paulo, Maria do Carmo — mulher do governador Roberto de Abreu Sodré, da Arena —, convidou-o para uma visita ao Palácio dos Bandeirantes.
Ao receber o telegrama, Jean Genet, que estava hospedado na casa de Ruth Escobar, “desfiou uma coleção de impropérios”. Porém, a atriz o convenceu a aceitar o convite.
Ruth Escobar queria que Jean Genet pedisse ajuda a Maria do Carmo, pois os netos da costureira Tercina Dias de Oliveira — presa no Presídio Tiradentes — estavam desaparecidos.
O filho de Tercina Dias de Oliveira, Manoel Dias do Nascimento, era ligado à VPR de Lamarca. Por ter liderado uma greve, em São Paulo, ele teve de ir para a clandestinidade.
A VPR despachou Tercina Dias de Oliveira “para uma área de mata fechada, no Vale do Ribeira”, na companhia de três netos menores e do sapateiro José Lavecchia. Lá funcionava o centro de treinamento guerrilheiro organizado por Lamarca. Conhecida como Tia, fazia parte da rede de apoio a guerrilha. O neto Samuel, de 8 anos, era o encarregado de avisar se algum estranho aparecesse no local.
Como o campo de treinamento foi descoberto pelos militares, Lamarca enviou Tercina Dias de Oliveira para Peruíbe. Lá, em sua casa, dirigentes da VPR chegaram a se reunir. Torturada, a guerrilheira Maria do Carmo Brito, do comando da VPR, levou uma equipe do COI-Codi à casa do litoral sul paulista.
Presa, Tercina Dias de Oliveira perdeu contato com os três netos. Um quarto neto, Ernesto Carlos, também havia desaparecido. Ele era filho único de Jovelina Tonello Nascimento e Manoel Dias do Nascimento.
Ao ficar sabendo da história, Jean Genet, comovido, decidiu aceitar o convite da primeira-dama Maria do Carmo.
Diante da primeira-dama, “o dramaturgo perdeu as estribeiras assim que começou a falar sobre o sumiço dos meninos. Atacou a ditadura como se estivesse em um palanque da oposição”.
A veemência de Jean Genet mobilizou Maria do Carmo. Ela pediu providências ao marido (um moderado que apoiava a ditadura), que tinha força política, e “dois dias depois, os meninos estavam localizados e reunidos”.
Luiza Villaméa escreve que, “por meio de uma rede informal de comunicação, Ruth Escobar conseguiu avisar Tercina, que improvisou uma procuração, colocando as crianças sob a guarda da atriz”. Porém, considerando que a atriz era desquitada, o Juizado de Menores não aceitou o documento.
O sequestro do embaixador alemão
No dia 11 de junho de 1970, o embaixador alemão no Brasil, Ehrenfried von Holleben, foi sequestrado pela guerrilha, no Rio de Janeiro. Anunciou-se que 40 presos políticos seriam trocados pelo diplomata.
Presos do Presídio Tiradentes seriam libertados — entre eles Tercina Dias de Oliveira. “A antiga moradora do Vale do Ribeira desceu as escadarias da Torre ao som de ‘Suíte do pescador’, de Dorival Caymmi. Depois, as prisioneiras entoaram “A Internacional”, o hino dos movimentos revolucionários.
Tercina Dias de Oliveira tomou uma decisão: só sairia do Brasil com os quatro netos — que haviam sido localizadas graças à pressão de Jean Genet. Sem os meninos, voltaria para a Torre.
A ditadura havia informado que Tercina Dias de Oliveira só poderia levar três netos, aqueles que estavam com ela quando foi presa. Decidida, disse: “Entrei com três, mas só saio se for com quatro”. Até a esquerda se irritou com a amiga de Lamarca.
“Quando o Douglas C-47 da Força Aérea Brasileira decolou para o Rio, Tercina leva a bordo os quatro netos”, anota Luiz Villaméa. As crianças, assim como a avó, “tinham sido fichadas como subversivas”. Os cinco foram viver em Cuba.
Na rota de Trombas e Formoso
Na década de 1950, José Porfírio, que recebeu o apoio do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, comandou uma rebelião de camponeses contra grileiros de terras no Norte de Goiás, em Trombas e Formoso. Patrocínio dos Santos participou da resistência.
Em fevereiro de 1968, Patrocínio dos Santos e a filha Maria Aparecida dos Santos, a Cidinha, romperam com o Partidão e aderiram ao grupo de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, os fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Depois de fazer treinamento guerrilheiro em Cuba, Cidinha voltou para o Brasil. Ligada a Aton Fon Filho e Virgílio Gomes da Silva, da ALN, acabou presa. Depois de torturada por militares e policiais civis, foi levada para o Presídio Tiradentes, onde ficou na mesma cela de Ilda Martins da Silva, mulher de Virgílio (assassinado sob tortura, de maneira brutal). O guerrilheiro havia participado do sequestro de Charles Burke Elbrick.
Fonte: Jornal Opção, 09/07/2023