“ Jornalista não faz discurso, acompanha a história. É sujeito e objeto dela”. A afirmativa do jornalista e militante político brasileiro Rubens Lemos (1941 – 1999) anuncia a maneira como seremos apresentados à dissertação de mestrado de Cecil Vinicius Olivar Oliveira Guerra. O trabalho se debruça sobre a vida e trajetória do potiguar Rubens Manoel Lemos, cujo nome ficou marcado na luta contra a ditadura militar no Brasil.
Rubens Lemos viveu em uma época conturbada, onde grandes eventos políticos e sociais marcaram a história do Brasil. Para ele, as injustiças e a busca por um mundo mais justo eram inerentes à sua personalidade.
Desde cedo, Rubens não se conformava com as desigualdades e a falta de significado para muitas pessoas que viviam à margem da sociedade.
“Ele não deixava o injusto prevalecer sem lutar. Fosse no jornalismo, na militância e na vida. Esse é um aspecto que a dissertação ressalta para mim e que eu queria que fosse lembrada por todo mundo”, afirmou um dos seus sete filhos, o também jornalista e professor do departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Daniel Dantas Lemos.
Isso se refletiu tanto na atuação de Rubens Lemos no jornalismo quanto em sua militância política, explicou Daniel ao compartilhar, de forma emocionada, a importância desse trabalho acadêmico e a relevância de conhecer mais sobre a vida do pai que influenciou tantas esferas da sociedade brasileira.
A dissertação acadêmica apresenta diversos aspectos da vida de Rubens Lemos, revelando elementos pouco conhecidos sobre sua história. Seu envolvimento com a imprensa e a política são destacados como pilares fundamentais de sua atuação. Rubens era um homem de opiniões fortes, que usava seu talento jornalístico para criticar o governo e denunciar as injustiças sociais, o que muitas vezes o colocou em rota de colisão com o regime ditatorial vigente na época.
Além disso, a pesquisa revelou momentos emocionantes e impactantes da vida de Rubens Lemos, como sua passagem pelo DOI-CODI, onde enfrentou torturas por sua luta política. Suas escolhas, sua clandestinidade e o exílio cobraram um preço, e a família de Rubens muitas vezes teve que enfrentar a dor da separação e da falta de contato com ele.
Para Daniel, a dissertação não apenas homenageia a história do pai, mas também reafirma a importância de entender e viver o presente, olhando para as lições aprendidas com o passado. Rubens Lemos foi uma figura marcante em sua luta contra a ditadura militar e suas opiniões críticas, influenciando também a política do Rio Grande do Norte e do Brasil.
Além da entrevista com o filho de Rubens, a Agência Saiba Mais conversou também com Cecil Vinicius Olivar Oliveira Guerra, mestre em História Social pela UFRGS. O papo começa nos apresentando como a escolha desse personagem se deu.
“ Ouvi pela primeira vez o nome de Rubens quando eu ainda era criança ”, afirmou Cecil ao tratar de uma série de fatores pessoais e políticos que intrigaram o pesquisador.
A pesquisa sobre Rubens Lemos surgiu de uma proximidade afetiva que o autor sentia com o personagem. O nome de Rubens era frequentemente lembrado nas reuniões familiares, onde era exaltado como um comentarista esportivo implacável e respeitado. A partir de anotações em documentos pertencentes ao acervo de Mércia Albuquerque, o pesquisador se questionou sobre o motivo pelo qual um comentarista esportivo teria sido perseguido durante a ditadura militar no Brasil.
Esse questionamento levou a uma investigação mais profunda sobre a vida pessoal e política de Rubens Lemos. O objetivo era compreender como ele se tornou um militante revolucionário e jornalista em veículos da grande mídia, buscando compreender sua formação escolar, relações familiares, atividades políticas e redes profissionais e de amizade. A pesquisa não tinha a intenção de revelar segredos ou preferências desconhecidas sobre o personagem, mas sim compreender a construção de sua identidade como militante e jornalista.
Rubens Lemos é descrito como um ser humano do seu próprio tempo, que viveu seus sonhos, projetos, alegrias e decepções intensamente, em meio a uma rede de interdependências que o vinculavam a diversos grupos dos quais fazia parte. Sua história é um exemplo de como as trajetórias individuais podem se entrelaçar com os acontecimentos históricos mais amplos, revelando singularidades e idiossincrasias que enriquecem o estudo biográfico.
Acompanhe as entrevistas na íntegra.
SAIBA MAIS – Como é para você, como filho do jornalista e militante político Rubens Lemos, ver a trajetória e história de vida do seu pai se tornar o tema de uma dissertação acadêmica?
DANIEL DANTAS – Eu fui entrevistado pelo Cecil, autor da pesquisa. Mas dei informações de contexto, orientações sobre possíveis entrevistados. Ele mesmo destaca que eu sou o mais jovem dos entrevistados então eu não vivi a história do meu pai no período que ele recorta. Nasci seis anos depois. Claro que me sinto muito orgulhoso de ver o nome do meu pai figurar como objeto de uma pesquisa acadêmica como essa, ainda que eu consiga entender que a história de meu pai não é alvo de uma pesquisa por ela mesma, mas uma vez que sua memória nos ajuda a entender o tempo histórico e a vida social do período, em Natal, no Brasil, no mundo – ele tendo fugido para o Chile a partir do Uruguai e depois retornando via Andes e Argentina. No Chile, a convivência com a comunidade de exilados. Fiquei tão emocionado por entender que muitas fotos de meu pai no Chile foram tiradas por alguém como Silvio Tendler.
Meu pai é o catalisador de uma história sobre as lutas políticas e sociais contra a ditadura militar e na defesa da revolução.
SAIBA MAIS – Ao acompanhar a escrita da dissertação, quais foram os momentos mais emocionantes ou impactantes para você, considerando a história de vida de seu pai?
DANIEL DANTAS – Mesmo sem a dissertação, mas nela também, o que mais me toca nas memórias de todos sobre Rubens Lemos é sua relação – ou ausência de relação – com sua família. Cecil não faz a leitura que eu faço: é como se a relação com os irmãos, com as esposas, com os filhos fosse clivada pela clandestinidade. Na maior parte do tempo a família desconhece a vida fora da legalidade de meu pai. Minha tia Miriam deixa isso claro em sua entrevista, as duas esposas de meu pai tinham isso claro também. Marcelo Melo diz que conheceu meu pai dizendo que queria ir para a guerrilha no campo, ratatata, no que entendeu que ele estava sofrendo por amor, mas nem minha tia, nem a esposa dele eram capazes de reconhecer que Rubens foi para a clandestinidade porque estava envolvido com a luta armada. Para a família, o problema era ele dar opiniões contra o governo na rádio. Acontece que eu nasci e fui educado pensando que era isso. Só quando adulto, já como pesquisador na UFRN, foi que eu entendi que isso não fazia sentido. E a família ficou nesse limbo porque ele clivava todo mundo na clandestinidade.
SAIBA MAIS – A dissertação aborda aspectos da vida de seu pai, como sua atuação na imprensa e militância política. Como você descreveria a importância dessas áreas na vida dele?
DANIEL DANTAS – Rubens Lemos era, primeiro de tudo, um intelectual irrequieto e incomodado. Ele não era capaz de se acomodar. Por muito tempo eu quis ser ele, ser assim como ele. A inquietude era poética, boêmia, política. Isso desaguou no jornalismo e na militância. Ele nunca deixou de lado isso, até o fim da vida. Internado no Walfredo Gurgel já na fase final da vida, mobilizava os pacientes, ligava para jornalistas. Para mim, um ponto esclarecedor dessas questões é citado por Cecil em sua dissertação, ainda que ele não o descreva.
O primeiro texto que aparece de Rubens Lemos no Diário do Natal é uma crônica publicada no Natal de 1967. Esse texto é espetacular: “Menino pobre não tem sapato pra ganhar seu presente de Natal”.
Ele tinha 27 anos e fala sobre crianças no Carrasco, a miséria e a falta de significado do Papai Noel naquele lugar. Ele mete coisas como, falando do outro lado da rua, casas com reumatismo. Esse texto, para mim, sintetiza o que Rubens Lemos foi como intelectual, como jornalista e como revolucionário.
SAIBA MAIS – Seu pai viveu em uma época conturbada, marcada por grandes eventos políticos e sociais. Como você acredita que esses acontecimentos influenciaram a trajetória e as decisões de Rubens Lemos?
DANIEL DANTAS – Meu pai foi apresentado à política por irmãos. O primeiro comunista da família foi meu tio Abelardo. A convivência com uma formação religiosa em Garanhuns também acho que contribuiu com isso. Ter ido com 15 anos para o Paraná onde um irmão mais velho, também pastor evangélico, estava prefeito do município de Querência do Norte, contribuiu. Mas aí todo mundo foi arrastado pelo efervescência política da Cadeia da Legalidade, do golpe militar. Rubens Lemos não era de aceitar injustiças. Acho que nesse caldo se forjou um revolucionário. Ele escolheu um caminho que foi doloroso – e não falo só dos 33 dias de torturas no Doi-codi em Recife, ou da travessia a pé na Cordilheira dos Andes. A dissertação destaca o sofrimento da família de Maria Helena e de Isolda devido às consequências das lutas. Mostra os anos em que irmãos ficaram sem notícia dele. As escolhas por separar as pessoas da vida real dele produziram muita dor.
Mas acho que ele fez as escolhas que eu mesmo faria no lugar dele com respeito à luta política contra a ditadura. Mas isso cobrou um preço.
Aqueles que tem mais de 60 anos aqui em Natal conhecem a força intelectual de Rubens, a qualidade de seus comentários sobre música, futebol, política. Eu leio aquele texto de 1967 e penso que se meu pai tivesse feito uma outra escolha e saísse da província que era Natal teria sido um gigante do jornalismo brasileiro. Se ele fizesse outras escolhas, meu irmão Fábio não teria conhecido o pai somente aos 4 anos, Rubinho não teria adoecido gravemente numa vila operária do Chile, ele teria estado presente nos meus dias dos pais. Talvez até os muitos netos que ele não teve o privilégio de conhecer, como minha filha Alice, tivessem esse privilégio. Porém, não era possível que um tão admirável revolucionário que nunca entregou ninguém sob tortura fizesse uma escolha contra seu caráter e sua luta.
SAIBA MAIS – Quais são as principais lições que você aprendeu com a vida e carreira de seu pai, ao acompanhá-lo de perto e, agora, vendo sua história sendo estudada?
DANIEL DANTAS – Meu pai, para mim, são duas pessoas. Já até conversamos sobre isso. De um lado, ele é um ícone: o militante, o primeiro candidato a governador do PT, a liderança do PCBR, o preso político, o revolucionário e intelectual ímpar no Rio Grande do Norte, no Paraná, no Mato Grosso, em São Paulo. Não canso de me orgulhar, de admirar, de me inspirar, de inspirar Alice sobre a vida e a história dele. A memória dele importa porque é uma memória das lutas populares do RN e do país. Me importa mais de perto porque é a luta de meu pai e uma forma de fazer com que seus descendentes o conhecem melhor, mas vale ser contada porque esse é um cara que esteve com Djalma Maranhão e Jango no Uruguai, porque conheceu Matta Machado por um erro dos torturadores quanto o líder da AP morria.
Mas ele clivou a vida dele. A ditadura contribuiu para essa partição. Então eu não conheci meu pai. Acho que cada um dos seus sete filhos tínhamos muito desse sentimento. A gente começou a conhecer a história dele já adultos.
A gente conhece a luta dele, mas o pai cada um de nós conheceu pouco. A clandestinidade, o exílio, a prisão, a luta política por muito tempo não nos deixava conhecê-lo. Claro que alguns conheceram mais, outros conheceram menos. Uns se inspiraram mais, outros menos. Mas em alguma medida nosso pai se tornou em alguma medida um estranho. De uma certa forma, trabalhos assim nos reapresentam ao nosso pai.
SAIBA MAIS – Como você enxerga o legado de seu pai na área da imprensa e na militância política, considerando o contexto da época em que ele atuou?
DANIEL DANTAS – Como falei antes: quem tem mais de 60 anos vê em Rubens uma referência. Quantas vezes já me falaram dos debates entre ele, José Agripino e Aluizio Alves na campanha de 1982? Quantas vezes falar o nome de Rubens, dizer que eu sou filho dele, serviu para destravar as memórias das pessoas que falam sobre seus comentários futebolísticos e seu papel na política.
Quando eu era adolescente adorava ouvir um programa de MPB que José Dias tinha na rádio. Eu queria muito ser José Dias, eu fazia um programa de MPB na rádio do colégio imitando José Dias. Fatalmente me tornei amigo de José Dias, contei isso a ele e ele me disse que sua referência era meu pai.
Sempre acho que Rubens poderia ter sido muito mais relevante se Natal não fosse uma província naqueles dias.
SAIBA MAIS – Durante a pesquisa para a dissertação, foram encontrados elementos surpreendentes ou pouco conhecidos sobre a vida de seu pai? Se sim, poderia compartilhar algum desses fatos?
DANIEL DANTAS – Eu não conhecia o histórico escolar de meu pai no colégio XV de Novembro. Inclusive isso foi uma surpresa porque suas notas não eram boas. Não combinavam com a visão intelectual que eu tinha dele. Também me surpreendeu que não houvesse registro de que meu pai tenha estudado no Atheneu, mesmo com a memória da família a respeito.
Eu também não conhecia o relatório de inteligência sobre sua militância que Cecil publicou. O que só reforça que cada revolucionário foi um bocado ingênuo na sua época: a repressão sabia tudo sobre ele – não tinha muito a esconder.
Isso me lembrou meu saudoso irmão Marcos, que a pandemia levou em 2021. Marcos, como meu pai, era do PCBR e em abril de 1986 fez parte de uma ação armada em Salvador que deu errado. Foram presos. O dinheiro era expropriação para financiar a luta do partido, clandestino, que funcionava como uma corrente dentro do PT. Meu pai, inclusive, continuava ligado ao BR e era de seu comitê central na época (ao mesmo tempo em que era do Diretório Nacional do PT). Rapidamente, os meninos criaram a versão de que o assalto serviria para ajudar os sandinistas na Nicaragua. E declararam isso. Anos depois, Marcos conseguiu seu dossiê junto a, agora, ABIN. E lá tinha toda história dele, monitorada desde que ele era aluno de história em Londrina. E mais: o sistema de informações sabia que o dinheiro não era para a Nicarágua.
Então, acho que meu irmão tinha um pouco da ingenuidade revolucionária de meu pai: os dois não imaginavam o quanto eram conhecidos pelo aparelho repressivo. E a dissertação mostra isso sobre Rubens Lemos.
SAIBA MAIS – Como você espera que a dissertação contribua para preservar a memória e o legado de seu pai, especialmente para as futuras gerações que possam se interessar por essa história?
DANIEL DANTAS
Ele é um personagem fascinante que atravessou eras fascinantes de nossa história política. Pessoas como Rubens Lemos e Glênio Sá podem nos ajudar a entender e viver o nosso tempo, ainda que nosso tempo seja tão diferente do tempo de nossos país. Mas a injustiça e a luta contra ela ainda estão aí diante de nossos olhos.
Meu pai, acho que isso não é dito por Cecil, no DOI-CODI tem o “privilégio” de ser interrogado por Sérgio Paranhos Fleury. Inclusive esse fato foi o ponto de partida para eu entender o quanto meu pai era estranho para mim: por que alguém tão elevado na hierarquia do aparato repressivo como Fleury torturaria Rubens Lemos? Certamente não seria porque ele era um jornalista que criticava o governo.
Um fato como esse para mim seria suficiente para tentar rememorar Rubens Lemos e assim entender melhor a história do Brasil.
SAIBA MAIS – A trajetória de seu pai abrangeu diferentes facetas, incluindo a boemia. Como você acredita que esses aspectos pessoais podem ter influenciado sua atuação como jornalista e militante político?
DANIEL DANTAS
Eu acho que por muito tempo eu quis ser meu pai. Talvez para finalmente conhece-lo melhor.
Acho que isso explica porque com 13 anos eu já sabia que ia fazer jornalismo na universidade. Comecei minha militância partidária no PCdoB, você sabe. Você sabe também que tive discordância política do partido em determinado momento. Mas isso só foi suficiente para eu trocar o PCdoB pelo PT quando entrou em cena um aspecto afetivo: foi o coração, a memória de meu pai, a história do fundador e seu primeiro candidato a governador, quem me fez tomar a decisão da troca.
Mas eu não romantizo isso. Acho que todo mundo tem de encontrar seu lugar no mundo e não querer repetir o lugar de outro, mesmo o pai. Sempre me perguntei se meu irmão ter ido para o BR e terminar preso numa ação armada não era porque ele queria ser meu pai. O mais louco disso é que meu pai morreu dias antes de completar 58 anos em 1999 e meu irmão morreu no dia seguinte a completar 58 anos em 2021.
Hoje eu sei quem é meu pai, qual o lugar dele na minha vida e meu lugar no mundo a partir dele, apesar dele e também sem ele.
SAIBA MAIS – Como você, como filho, gostaria que o público em geral enxergasse a figura de Rubens Manoel Lemos após ler a dissertação? Quais são os principais aspectos de sua personalidade que você espera que sejam destacados?
DANIEL DANTAS – Meu pai era um intelectual inquieto e um revolucionário. Ele não se conformava com a injustiça do mundo, como mostra aquele texto do Natal de 1967, como mostra sua opção pela luta armada, como mostra a coragem de tantas decisões tomadas ao longo da vida. Meu pai nunca se conformou: passou o resto da vida criticando a forma como a Lei de Anistia foi operada no Brasil. Ele dizia que ele e outros presos e perseguidos foram brutalmente punidos e anistiados. Os torturados só foram anistiados. O Dr Fernando, Coronel Cursio Neto, que o torturava enquanto lia a Bíblia, continuava ativo no Exército sem nenhuma punição. Em 1990, ele fez uma mini revolução quando denunciou o brigadeiro Sócrates Monteiro, nomeado por Collor para o Ministério da Aeronáutica, como um de seus torturadores no Doi-codi de Recife. Sócrates permaneceu ministro, mas terminou caindo por outras denúncias seis meses depois.
Ele não deixava o injusto prevalecer sem lutar. Fosse no jornalismo, na militância e na vida. Esse é um aspecto que a dissertação ressalta para mim e que eu queria que fosse lembrada por todo mundo.
Cecil Vinicius Olivar Oliveira Guerra (Mestre em História Social pela UFRGS)
SAIBA MAIS – Como se deu a escolha desse personagem?
CECIL GUERRA – Ouvi pela primeira vez o nome de Rubens quando eu ainda era criança.
Meus tios conversavam de maneira saudosa nas reuniões familiares sobre o futebol potiguar nos anos 1970/ 1980 e Rubens era invocado por eles com uma veemência particular. Referiam-se a ele como um comentarista esportivo implacável, “o melhor que já tivemos”, afirmavam com frequência.
Depois, no final de 2019, estava terminando meu curso de graduação em História e conheci o trabalho de Roberto Monte com acervos pessoais de alguns militantes do Rio Grande do Norte. Em um dos documentos consultados, pertencente ao acervo de Mércia Albuquerque, vi algumas anotações sobre Rubens Lemos e comecei a me perguntar “por que um comentarista esportivo havia sido perseguido durante a ditadura?”. A partir dessa inquietação, comecei a realizar um levantamento biográfico sobre o personagem e descobri questões comuns que atravessavam nossas existências, como, por exemplo, a boemia, a literatura, a música popular brasileira, o futebol e a militância.
Além desses atravessamentos em comum, meu interesse também foi resultado do momento mais amplo que o Brasil passava. No final de 2019, havia um debate muito forte em torno da memória dos militantes e perseguidos pela ditadura militar. O então presidente da República se manifestava favoravelmente à tortura, à violação dos Direitos Humanos e ao autoritarismo político dos golpistas de 1964. Essas declarações provocavam, em mim, revolta e interesse por estudar o fenômeno da militância revolucionária nos anos 1960.
Dessa maneira, a pesquisa surgiu a partir de uma certa proximidade que sentia com Rubens, por identificar questões nos afetavam – ainda que de maneiras muito diferentes –, e de um momento político específico da história da sociedade brasileira, delimitado entre os anos de 2015 a 2020, em que discursos de ódio irromperam na cena pública com especial vigor.
SAIBA MAIS – Que caminhos sua pesquisa percorre para tratar da vida pessoal e política do jornalista Rubens Lemos?
CECIL GUERRA – Meu interesse era compreender, especificamente, como Rubens Lemos se constituiu como militante revolucionário e jornalista de veículos da ‘grande mídia’. A formação escolar, as relações familiares, as atividades políticas, as redes profissionais e de amizade me interessaram para compreender essa questão mais ampla. Portanto, em nenhum momento me interessei por revelar segredos descobertos, preferências pouco conhecidas ou descontentas a respeito do personagem.
SAIBA MAIS -De que forma o trabalho trata do tema da Ditadura Militar no Brasil?
CECIL GUERRA – Trata da Ditadura Militar a partir da trajetória de um individuo que se constituiu como militante revolucionário e jornalista, nesse período.
Estudar a trajetória de um indivíduo implica em refletir sobre seus sonhos, anseios pessoais, desejos, frustrações, paixões, escolhas, alegrias e tristezas.
O trabalho busca compreender, por um lado, como uma pessoa ‘de carne e osso’ viveu esse momento da história; e, por outro, como essa existência está articulada a processos mais amplos. No caso de Rubens, esses processos dizem respeito a modernização da imprensa, a uma ‘geração’ política embalada pelas lutas revolucionárias de grupos guerrilheiros latino-americanos e ao desenvolvimento extremamente desigual do capitalismo.
A pesquisa busca, portanto, compreender como Rubens Lemos articulou-se a questões mais amplas e coletivas, exercendo seu livre arbítrio e fazendo suas escolhas em um campo de possibilidades historicamente determinado.
SAIBA MAIS -E como foi o percurso da pesquisa? Quais os principais resultados?
CECIL GUERRA – Em virtude da pandemia e das medidas de isolamento social, não consegui realizar alguns procedimentos que estavam previstos. Por exemplo: gostaria de ter feito um trabalho mais amplo de História Oral realizando mais entrevistas com pessoas que não foram inseridas nesse estudo. Além disso, não consegui fazer consultas a arquivos em Londrina e no Rio de Janeiro, como estava programado inicialmente.
A interlocução com meu orientador Benito Bisso Schmidt (UFRGS) e com meus companheiros do Grupo de Pesquisa ‘Espaços na Modernidade’ (UFRN) tornou possível que eu finalizasse o trabalho e que o percurso da pesquisa não fosse tão tortuoso. Além, claro, do apoio financeiro do CNPq.
O estudo aponta para alguns resultados. Primeiro, a formação religiosa e escolar de Rubens contribuiu para que ele desenvolvesse habilidades de escrita e leitura, as quais foram importantes para sua constituição como jornalista e militante. Segundo, o ingresso de Rubens nos espaços da militância e do jornalismo aconteceu durante a ‘Quarta República’ (1946-1964), em um campo de possibilidades marcado por experiências democráticas que contavam com ampla participação da sociedade civil. Terceiro, há várias disputas de memórias em torno de Rubens.
Uma conclusão mais geral indica que havia várias formas de viver a militância revolucionária e de equilibrar-se entre clandestinidade e legalidade. Rubens, por exemplo, não seguia tão fielmente as indicações da organização revolucionária que pertencia, o que lhe trazia, por um lado, riscos; e, por outro, momentos de felicidade e prazer. A análise de uma trajetória é importante justamente por isso. A partir do método biográfico pode-se acessar singularidades e idiossincrasias que outros métodos não permitem.
SAIBA MAIS – De que forma você descreveria Rubens Lemos?
CECIL GUERRA – Rubens Lemos foi um ser humano do seu próprio tempo; nem a frente, nem atrasado. No seu próprio tempo, Rubens sonhou, construiu projetos, teve decepções profundas, alegrias intensas e amores arrebatadores. Tudo a partir de uma rede de interdependência que vinculava ele próprio (indivíduo) aos vários grupos a qual pertencia (família, partido, jornais, igrejas etc).
Fonte: Saiba Mais, 23/07/2023