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Documentário 'O silêncio canta por liberdade', que concorre ao Emmy Internacional de 2023, apresenta depoimentos de 33 músicos perseguidos pelo regime militar de 1964
Documentário mostra como a ditadura afetou carreira e vida de músicos
Um golpe político derrubou o presidente João Goulart, e, em 1964, instaurou a ditadura militar no Brasil. Depois da destituição, o país ficou sob o comando de regime de exceção que se perpetuou até 1985. Foram duas décadas marcadas por forte censura à mídia e que logo se espalhou pelo segmento artístico e pela indústria do entretenimento.
Sob o pretexto de que incitavam o comunismo, compositores e intérpretes da música popular brasileira foram perseguidos, presos e torturados, levando, alguns, como Caetano Veloso , Gilberto Gil ao exílio. Quase quatro décadas depois, as violações dos direitos humanos sofridas pelos representantes da MPB nos anos de chumbo ganham voz na série O silêncio que canta por liberdade .
Produzida por Osmar Marzagão, com trilha sonora do compositor Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha e neto de Luiz Gonzaga, a série O silêncio que canta por liberdade entra na disputa da categoria Melhor Documentário do prêmio Emmy Internacional de 2023, cujos finalistas serão conhecidos em setembro.
Instalada em 2012, quase 30 anos após o fim da ditadura, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), durante o governo anterior, que tinha à frente Jair Bolsonaro, deixou de investigar o relatório final, concluído em 2014, com histórias de dezenas de vítimas da repressão.
O silêncio que canta por liberdade reúne depoimentos de 33 músicos perseguidos. O elenco principal é composto por Gilberto Gil, José Carlos Capinam (representantes da Tropicália, movimento ocorrido na década de 1960, que despertou a consciência política na música popular brasileira), Alceu Valença e os saudosos Gal Costa e Moraes Moreira, além de Chico César.
Em oito episódios que percorrem a Bahia, Ceará e Pernambuco, a série mergulha nas lembranças das diferentes formas de torturas físicas e psicológicas sofridas por músicos que protestaram em discos, shows e festivais e na televisão contra o sistema vigente e a realidade vivida.
"Boa parte da população não acredita nas violações dos direitos humanos na ditadura militar por conta da desinformação. A partir disso, a série teve a oportunidade de investigar quase duas décadas, conhecidas como os anos de chumbo no país, dando visibilidade para depoimentos de músicos nordestinos silenciados pela perseguição", destaca Úrsula Corona, diretora de O silêncio que canta por liberdade. "A arte foi essencial para a sobrevivência desses personagens", acrescenta.
Serviço
O silêncio que canta por liberdade
Série sobre músicos brasileiros perseguidos pela repressão pela ditadura militar, disponível no canal Music Box Brasil.
Depoimentos
Gilberto Gil
"A censura foi um momento de exacerbação de uma visão limitadora e castradora de um suposto possível controle da vida social. A censura foi um dos subprodutos da ditadura. A censura foi um instrumento dessas tentativas de controle de ideias e pensamentos. Um instrumento para controlar a moçada."
Gal Costa
"O Nordeste sempre foi abandonado, porque o Nordeste é a região mais pobre do Brasil, onde tem gente que passa fome mesmo. E o que acontecia naquela época é que o povo do Sul tinha um certo preconceito com Luís Gonzaga e Jackson do pandeiro, pessoas que são de extrema importância para a música popular brasileira e parte da riqueza da MPB. Eu fui a última a me projetar nacionalmente. Eu lembro de tempos difíceis: Caetano e Gil foram presos e eu sentia muita angústia."
Moraes Moreira
"O que na verdade aconteceu com a gente e que salvou a gente de não ser exilado ou mandado pra fora é que eles [militares] olhavam para a gente e pensavam: 'esses caras são muito loucos e não são comunistas, porque comunista não é assim'". "Segurávamos a onda porque tinha uma coisa para fazer: tinha uma meta e um foco, que era a música. O que salvou a gente foi a música. Eu amo a música. E sei que a música sempre vai me salvar e vai salvar o Brasil."
Alceu Valença
"Primeira vez que vou dizer isso para você. Eu fui preso no DOPS com vários amigos meus e foi uma questão de intimidação. Estávamos numa festa de comemoração porque ganhei o DA [Diretório Acadêmico], quando cheguei na frente da faculdade de direito eram muitos soldados, gente com fuzil eram muitos. Mesmo se tivéssemos feito algo errado, iríamos pra delegacia, não é? Não parava um departamento, o que era uma coisa política. Ao chegarmos lá, de repente, o delegado faz um discurso absolutamente louco. Nossa cela não tinha banheiro, tinha uma fossa com um cheiro terrível. Na faculdade, muitos amigos e alunos sumiram."
Chico César
"Eu só tinha cinco anos quando Gegê, meu irmão, foi preso e fui me tornando influenciado. Fui crescendo com uma certa desconfiança. Policiais foram lá em casa, revistaram e levantaram os colchões". "Quando a arte fica muito controlada os artistas ficam com medo da censura institucional e ficam com medo de agradar, seja lá por quê. Ele assume uma autocensura que é muito castradora e eu percebo que essa é a forma mais eficaz e mais cruel, pois você nem se permite arriscar. E, às vezes, isso está na obra ou na opinião do artista."
Daniel Gonzaga
"Meu avô, Luís Gonzaga, era direitista que tocava para milico e meu pai, Gonzaguinha, que estava na base da fundação do Partido dos Trabalhadores, lutou para que as Diretas Já acontecessem, para que a gente tivesse a liberdade de escolher um presidente x ou y e que se ajustou para não se fragmentar. Ao invés de polarizar e se distanciar, eu vejo que a minha família percebeu a importância de estar junto e fez de tudo para estar."
Fonte: Correio Braziliense, 10/07/2023