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“A Aesi é a história mais triste que a USP carrega”, afirma presidente da Comissão da Verdade da Universidade
Cúmplice da ditadura? USP ainda evita autocrítica
A Universidade de São Paulo teve sua história marcada pela ditadura militar (1964-1985). Segundo a Comissão Nacional da Verdade, um total de 434 pessoas foram mortas ou desapareceram durante o período. Dessas, 47 faziam parte do corpo social da USP como alunos, professores ou funcionários, somando quase 11% do número total de vítimas.
Por outro lado, a Universidade também teve um papel importante na consolidação do golpe de 1964. O reitor à época, Luís Antônio da Gama e Silva, era professor da Faculdade de Direito e foi o redator do Ato Institucional nº 5 (AI-5), responsável pela cassação das liberdades democráticas e pelo fechamento do Congresso Nacional, o que iniciou a fase mais violenta do período.
Outro órgão importante para entender o papel institucional que a USP desempenhou na ditadura é a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi), criada em 1972. Era uma estrutura típica de universidades federais, mas foi instaurada na USP por iniciativa do reitor Miguel Reale (1969-1973). A Aesi repassava informações sobre alunos e professores ao Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão de inteligência do regime, e influenciava internamente na contratação de professores da Universidade.
As violações de direitos humanos praticadas pela Aesi e pela Universidade foram apuradas pela Comissão da Verdade (CV) da USP, formada em 2013. Um dos 11 volumes do relatório final publicado em 2018 é inteiramente dedicado à assessoria e demonstra uma perseguição ideológica a ideias de esquerda.
A professora titular aposentada do departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Janice Theodora da Silva, que presidiu a comissão e coordenou a redação do relatório, explica que era uma preocupação do governo militar tirar das instituições de ensino indivíduos que denunciassem as desigualdades da sociedade brasileira. “Eles queriam fazer uma limpeza em todo o aparato público, retirando aquelas pessoas com uma visão que tendesse a um estado de bem-estar social e possibilitasse o pensamento crítico. Para isso, recorreram a um projeto de inteligência”, conta Janice.
Histórias interrompidas
O relatório lista o nome dos membros da comunidade universitária que foram perseguidos, desaparecidos e mortos pelo regime. Ele cita não só os casos de pessoas que perderam suas vidas por consequência dos danos físicos de torturas e atropelamentos, mas os que não suportaram o peso das humilhações e cometeram suicídio. É o caso de Juan Antonio Carrasco Forrastal e de Tito de Alencar Lima – o primeiro sequer estava envolvido em organizações políticas – , que atentaram contra a própria vida após serem libertados pelo regime.
Houve também casos em que, na tentativa de isentar o Estado da responsabilidade por seus crimes, as mortes por tortura eram falsamente notificadas como suicídio. Um dos casos mais emblemáticos é o de Vladimir Herzog, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes. Mas não foi o único. Antonio Benetazzo, Iara Iavelberg e Olavo Hansen são alguns dos que sofreram a mesma violência.
E, apesar de ser celebrada como um dos principais centros de resistência ao regime militar, a USP como instituição agiu com violência contra seus membros perseguidos.
No caso de Ana Rosa Kucinski, professora do Instituto de Química, a Reitoria ignorou indícios, trazidos por seus familiares e por publicações de jornais, de que ela havia sido sequestrada e a dispensou por “abandono de função”. O erro foi corrigido anos mais tarde, com um pedido formal de desculpas à sua família. Outros docentes passaram pelo mesmo processo de desligamento após desaparecimentos, mas não tiveram suas honras restauradas nem mesmo por um tardio perdão.
Acabar com o pensamento crítico, era importante para que o regime militar pudesse governar de forma autoritária, levando a frente o projeto de desenvolvimento do exército. Por isso eles montaram essas essas agências de informação. Eram máquinas muito bem azeitadas que produziam e sistematizaram essas informações.
Janice Theodora da Silva, professora titular aposentada do departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e presidente da Comissão da Verdade da USP.
Legado da CV
Pouco mais de cinco anos após o lançamento do relatório – que revelou a existência e o funcionamento da Aesi dentro das estruturas da instituição –, a presidente da comissão afirma que sente que o documento foi sabotado dentro da Universidade. Divergências quanto ao grupo responsável por conduzir a comissão, falta de poder de investigação – especialmente sobre a Faculdade de Medicina – e até escassez de dinheiro foram alguns dos problemas enfrentados.
A comissão contou com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para bolsas de iniciação científica. A pouca idade dos pesquisadores parecia um problema no começo, mas foi, para Janice, o que levou o projeto adiante. “A energia para fazer todos os volumes só a juventude iria ter”, pontua.
A pesquisadora também afirma que nunca conseguiu dinheiro para imprimir, encadernar e colocar o relatório nas bibliotecas. “O documento vai para o esquecimento. Tanto por indiferença com os acontecimentos ou por simplesmente não saberem que esse relatório existe”.
Evitar o esquecimento sobre as práticas da Aesi é justamente um dos objetivos do relatório. “É muito ruim saber que houve essa ‘deduragem oficializada’, que professores foram perseguidos e outros deixaram de ser contratados, mas é bom que a CV tenha trazido a Aesi à tona. A ideia é que os fatos sejam contados para que não se corra risco de ver esses abusos se repetirem”, defende Camilo Vannuchi, jornalista, professor de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e primo de Alexandre Vannucchi Leme, estudante morto pela ditadura militar.
Consultada pela reportagem, a Reitoria da USP afirma que, para reparar danos desse período, “muitas das recomendações sugeridas pela Comissão já foram acatadas pela Universidade, como a diplomação de 31 estudantes que não concluíram seus cursos na época da ditadura”. A cerimônia, realizada em dezembro de 2023, faz parte do projeto Diplomação da Resistência e é uma iniciativa da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e da vereadora paulistana Luna Zarattini (PT).
Mas, para Janice, a história da Aesi ainda não está encerrada. “A Aesi e essa gestão que introduziu a Aesi na USP são a história mais triste que a Universidade de São Paulo carrega. E um dia a USP vai ter que fazer uma autocrítica disso”.
Fonte: Jornal do Campus, 18/06/2024
Disponível: https://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2024/06/cumplice-da-ditadura-usp-ainda-evita-autocritica/