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Censurado no Brasil há 56 anos, “Terra em Transe”, em cartaz na MUBI, segue atual
Talvez o maior problema do Cinema Novo é que ele não ficou velho. Obra-síntese do movimento cinematográfico brasileiro que ocorreu entre os anos 1960 e início dos anos 1970, “Terra em Transe” (1967) é um dos filmes selecionados para a mostra especial da plataforma de streaming MUBI sobre seu diretor, Glauber Rocha . Censurado no Brasil, lançado um ano antes do AI-5 e ganhador do prêmio da crítica no Festival de Cannes, “Terra em Transe” disseca o passado e presente brasileiro em um sonho febril (veja trailer abaixo).
A trama gira em torno de Paulo Martins (Jardel Filho), poeta e jornalista com aspirações políticas. Alucinações durante sua morte anunciada mostram a relação dele com o autoritário senador Porfírio Diaz (Paulo Autran) e o governador populista Felipe Vieira (José Lewgoy). Com um golpe de Diaz sobre Vieira, Paulo encontra-se metafórica e literalmente em transe.
A história se passa na cidade fictícia de Eldorado , nome da terra prometida aos colonizadores espanhóis. A Eldorado de Glauber Rocha, porém, é um retrato trágico do próprio Brasil da época em que foi gravado, três anos após a derrubada do presidente João Goulart, com a consequente implementação da ditadura militar sob Castello Branco.
Com o slogan “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o Cinema Novo buscava traduzir os anseios políticos da esquerda frente às incertezas do futuro, concretizadas pela ditadura militar, fazendo uma arte vanguardista que ia contra a produção hollywoodiana vigente na época por meio de uma cinematografia autenticamente brasileira. O filme de Glauber Rocha consegue articular todos esses elementos com maestria, atingindo o ápice da potência narrativa do Cinema Novo. Ao escrever o manifesto “Uma Estética da Fome”, o diretor critica o fetichismo da miséria brasileira pela Europa, ao passo que seu cinema de guerrilha faz um uso inventivo da câmera livre, que acompanha a população em suas manifestações e atravessa os cenários de mansões, ambientes antagônicos na história.
Ao assistir “Terra em Transe”, é impossível não traçar paralelos com a atualidade. Fome e violência são alguns dos temas tratados pela obra, presentes tanto em Eldorado de Glauber quanto no Brasil de hoje. A ascensão de uma direita reacionária sob uma esquerda que falhou em dialogar com suas bases, por exemplo, rima com a realidade brasileira das últimas décadas.
Muitos dos elementos incipientes em filmes anteriores do diretor, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1962), aparecem em sua plenitude na película de 1967, como o uso da montagem dialética para criar uma narrativa por meio da sequência de ações, além do roteiro com monólogos literários, trazendo as raízes como escritor e jornalista de Glauber Rocha, personificadas no poeta protagonista. Apesar de ser de esquerda, o cineasta também não poupa críticas à corrente progressista, personificadas em Felipe Vieira, uma espécie de paródia do deposto João Goulart, que se exilou do país após o golpe militar.
Não há heróis nem vilões em Eldorado, onde o próprio protagonista olha para a população como pessoas incultas e incapazes de saberem de seus próprios desejos,chamando-os de “analfabetos despolitizados”. O maior “crime” de Glauber Rocha em “Terra em Transe” não foi a mensagem política que queria passar, mas sim que a própria mensagem insiste em não morrer.
Como parte da mostra Glauber Rocha na MUBI, também estão em cartaz os filmes “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969) e “O Leão de Sete Cabeças” (1970). A partir desta quinta-feira (4), estará disponível o longa “Idade da Terra” (1980).
*Estagiário, sob supervisão de Cristiano Castilho