50 anos depois do golpe contra Allende, ex-exilados preparam viagem ao Chile

No dia 11 de setembro, cerca de 100 brasileiros que viveram o exílio no Chile nos anos 1960/1970 terão um reencontro sentimental com o país que os acolheu. Alguns vão viajar com as famílias. Vão percorrer lugares que marcaram sua memória depois que, perseguidos pela repressão da ditadura brasileira, depararam-se com um país onde o governo fora eleito pelo voto e existia uma democracia.

À época, o Chile vivia o governo da Unidade Popular comandado por um presidente socialista, Salvador Allende. Vítima de traição dos generais, Allende teve o palácio presidencial bombardeado em 11 de setembro de 1973 e preferiu o suicídio a ser humilhado pelos militares.

Um dos animadores da empreitada é Raul Ellwanger. Egresso dos quadros da Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares), começou no exílio uma carreira de cantor e compositor. Suas músicas foram gravadas, entre outros intérpretes, por Elis Regina, Beth Carvalho e Mercedes Sosa. Entre seus parceiros de composição consta outro antigo exilado, o poeta Ferreira Gullar.

Ele conta ao Brasil de Fato RS dos preparativos da jornada, fala da gratidão dos brasileiros com o país vizinho, e rememora seus três anos e meio de Chile, onde houve dor, medo e sofrimento, mas também alegria.

Brasil de Fato RS - Está sendo articulada uma viagem ao Chile que vai marcar o cinquentenário do golpe contra o governo Salvador Allende em 11 de setembro de 1973. Como está esse processo?

Raul Ellwanger - Fui exilado no Chile durante três anos e meio e saí sem me despedir... (risos). Fui para lá em setembro de 1970, ainda no governo de Eduardo Frei (democrata cristão). Há 12 anos, fundamos o Comitê Carlos de Ré da Memória e Verdade e Justiça aqui em Porto Alegre. Continuamos organizados em torno disso e fizemos nove eventos desde então chamados Brasil Agradece ao Chile. Quatro no Chile e cinco aqui.

BdF RS - Em que consistiam os do Chile?

Ellwanger - Consistiam em visitar os sítios de memória e, gradualmente, fomos nos tornando conhecidos e passamos a ser convidados para participar dos eventos oficiais falando, declamando, cantando, exibindo vídeos, entregando documentos etc.

Então isso foi sendo feito, a gente teve muito reconhecimento no Museu Nacional do Memória de Direitos Humanos, Estádio Nacional, Londres 38, Vila Grimaldi.

Neste ano irão ao Chile umas 100 pessoas. Basicamente é aquele grupo de 2013 que cresceu, multiplicou-se por dez ou coisa assim. Há também o fato dos 50 anos, e muita gente está no fim da vida e nunca foi.

Vai ser uma comunhão, como a gente vê nas postagens, as pessoas se reencontrando

BdF RS - Vai ser uma espécie de caravana, voo fretado?

Ellwanger - Não, é cada um por si. Tudo acontece através de grupos de Whatsapp...

BdF RS - O que vai acontecer no Chile?

Ellwanger - Posso visualizar em função do que ocorreu antes. Após um encontro inicial, vamos ter um jantar antes num restaurante para 120 pessoas, onde serão distribuídas as camisetas que estão sendo feitas no Rio. É tudo voluntário, né. Vai ser uma comunhão, como a gente vê nas postagens, as pessoas se reencontrando. Quem era criança na época, aquela namorada, aquele namorado, casais, a mãe que vem da Paraíba e o pai de Minas e se encontraram pela primeira vez em Antofagasta, naquela mina de salitre, coisas assim...

"Participei da posse do (Salvador) Allende, uma coisa maravilhosa. Um milhão de pessoas num país que tinha nove", lembra Raul / Foto: Katia Marko

BdF RS - Desde o golpe de 1964, houve vários exílios. Quem conflitava com a ditadura militar mais severamente aqui, não podia ir para o Uruguai, o Paraguai ou a Argentina, que estavam sob ditadura, e acabaram indo ao Chile...

Ellwanger - Tem a leva de 1964, a do golpe, ministros, diretores, professores. O primeiro escalão do governo e o pessoal da universidade. Fernando Henrique Cardoso, Teotônio dos Santos, Vânia Brambilla, José Serra, Maria da Conceição Tavares.

Um timaço que foi acolhido principalmente pelas organizações, como a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e a própria ONU. Antes teve Montevdéu, uma turma mais ligada ao Brizola e ao Jango. Depois teve Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes...

Tem a leva de 1968, após o AI-5, e aí pega fortíssimo os guris (universitários), e de novo uma leva da universidade, novas cassações pesadas, o pessoal de Ibiúna (presos durante o congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes, a UNE, no interior paulista, e depois liberados), o (ex-deputado) Márcio Moreira Alves...

Quando começa a luta armada efetivamente e que, dois anos depois, estará dizimada, surge uma terceira leva rumo ao Chile que era o único lugar possível. E tem um quarto fluxo integrado por um pessoal que nunca fora preso no Brasil, não tinha processo e estava na militância estudantil e resolveu ir para lá também.

Famílias chilenas se arriscaram escondendo gente, dando um telefonema secreto para o Brasil

BdF RS - Tinham curiosidade, não é?

Ellwanger - Curiosidade. Foram ver o que estava acontecendo e foram ficando.

BdF RS - O que o Brasil deve ao Chile?

Ellwanger - Gratidão. Fomos recebidos lá com documento ou sem documento. Cheguei ainda no governo do Eduardo Frei (do Partido Democrata Cristão). Participei da posse do (Salvador) Allende, uma coisa maravilhosa. Um milhão de pessoas num país que tinha nove. No Brasil seria como 20 milhões de pessoas reunidas em um momento assim, durante um dia, né?

Então, é gratidão por isso. O salvamento, a solidariedade depois (do golpe) também, famílias chilenas que se arriscaram escondendo gente, dando um telefonema secreto para o Brasil. Que era perigoso. Ninguém tinha telefone, entendeu? Enfim, um mundo inteiro de carinho, de amor, que recebemos. E a gente (os brasileiros) era uma colônia muito grande. Sendo bem prudente, éramos mais de quatro mil. Não sei se houve outra maior. Talvez a boliviana porque a Bolívia vinha de duas guerrilhas fracassadas.

BdF RS - Quantos brasileiros morreram no Chile?

Ellwanger - Oito.

BdF RS - Sabes o nome de todos eles?

Ellwanger - Sim, posso dizer agora.

Antes do golpe, no dia 15 de junho de 1973, em um enfrentamento na calçada da sede nacional do Partido Socialista, uma milícia do grupo fascista Patria y Libertad deu um tiro entre os olhos do Nilton Rosa da Silva, gaúcho, secundarista de Cachoeira do Sul. O enterro dele teve 100 mil pessoas.

Quando veio o golpe foi detido o ex-capitão da PM paulista, Wânio José de Matos, que militava na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Morreu de peritonite não medicada quando estava preso. Foi deixado agonizando.

O professor de inglês Nelson de Souza Kohl foi preso e fuzilado. Era do Partido Operário Comunista (POC).

Nilton levou um tiro entre os olhos. Havia 100 mil pessoas no enterro dele

O professor de Física Luís Carlos de Almeida foi levado à noite entre os dias 13 e 14 de setembro de 1973 para a margem do Mapocho (rio que corta Santiago), baleado e atirado na correnteza. Na mesma noite, um quase homônimo dele – Luis Carlos Vieira – recebeu três tiros, atirou-se às águas do Mapocho e foi levado pela torrente. Sua sorte foi que freiras que percorriam o local à procura de cadáveres o recolheram e ele sobreviveu.

Tulio Roberto Cardoso Quintiliano, alagoano de Maceió, depois de preso e torturado no Brasil, entrou no consulado do Chile e obteve asilo em 1970. Trabalhava lá como engenheiro, numa empresa estatal. Detido em 1973, nunca mais foi visto.

Jane Vanini, mato-grossense de Cáceres, fugiu para o Chile em 1971. Trabalhava no governo Allende. Quando veio o golpe, deixou Santiago e refugiou-se na cidade de Concepción. Descoberta em 1974, resistiu ao cerco à bala. Acabou a munição e os caras fizeram ela.

Maria Regina Marcondes Pinto, paulista de Cruzeiro, São Paulo. Estudante de Ciências Sociais na USP, saiu do Brasil em fins de 1969 e início de 1970. Foi para Paris. Seis meses depois viajou para o Chile. Presa, conseguiu deixar o país e ir para a Argentina. Em 1976, foi sequestrada em Buenos Aires. Está desaparecida.

Estudante de História na Universidade do Chile até 1973, o gaúcho Jorge Alberto Basso, 25 anos, teria sido vítima do mesmo sequestro com um grupo de chilenos exilados.

Todo mundo acha que Maria Regina e Jorge Basso foram jogados no mar

BdF RS - Maria Regina e Jorge Basso saem do Chile para serem presos em Buenos Aires...

Ellwanger - Ela e o Basso estavam militando no MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) chileno na Argentina. O MIR ficou com a base da direção na Europa, mas depois veio se reaproximando.

Teve o golpe na Argentina em 18 de março de 1976 e no dia 10 de abril houve uma ação impecável onde desapareceu todo o comitê central do MIR em Buenos Aires, incluindo a Maria Regina e o Basso. E como não tem resquício no Chile, todo mundo acha que eles foram jogados no mar diretamente, algo típico da Operação Condor (ação entre as ditaduras militares do Cone Sul para assassinar adversários políticos).

Suas músicas foram gravadas, entre outros intérpretes, por Elis Regina, Beth Carvalho e Mercedes Sosa / Foto: Arquivo Raul Ellwanger

BdF RS - Só quem escapa da lista acima é Luis Carlos Vieira. É vivo?

Ellwanger - É vivo e mora na Suécia. Nunca mais voltou.

BdF RS - Vocês têm contato com ele? Vai ao Chile também?

Ellwanger - Não. O cara vive a vida dele. Casou-se, tem filho, tem neto, tá aposentado...

Mário Pedrosa tinha prestígio internacional. Criou um museu pelo telefone...

BdF RS - Um dos exilados famosos do Chile foi o Mário Pedrosa...

Ellwanger - O Mário Pedrosa (1900-1981) foi o único brasileiro que participou do congresso de criação da Quarta Internacional com o Trotsky vivo. Virou amigo do Trotsky. Era um quadro velho, um senhor, respeitado internacionalmente, dentro do movimento comunista. Era crítico de artes plásticas. No Chile, fez um lance que foi o seguinte: ele começou uma campanha internacional para doação de obras de arte para ajudar o governo do Allende.

Isso se espalhou, teve o maior sucesso e as obras ou ficaram doadas nos países de origem ou foram para o Chile e ficaram lá em algum lugar que alguém escondeu. Pedrosa telefonava para o (pintor Pablo) Picasso e o Picasso mandava a obra pra lá. O (Joan) Miró também mandou quadro. Ele tinha prestígio internacional. Criou um museu pelo telefone...

A viagem incorpora toda essa memória desses que a gente considera os nossos mártires

BdF RS - Este museu existe hoje?

Ellwanger - Existe. É o Museu da Solidariedade. É lindo, a casa é belíssima, antiquíssima. A viagem incorpora toda essa memória desses que a gente considera os nossos mártires.

Então, a primeira palavra é gratidão. Nos salvaram. Construímos, crescemos, aprendemos, estudamos, cuidamos da saúde, namoramos, descobrimos um outro mundo, outra música, outra culinária, outro horizonte, enfim, tudo que há na vida.

Contribuímos cada um com sua aptidão. Ganhamos e sofremos também. Temos orgulho de ter estado lá e participado, especialmente na luta. Tinha manifestação a cada três dias. Tinha ocupação da fábrica, ocupação da faculdade. Um negócio de louco.

BdF RS - Como foram aqueles momentos finais?

Ellwanger - A proclamação número 2 da junta militar se refere, na cabeça, aos brasileiros e aos cubanos. “Quem conhece brasileiro ou cubano entrega agora. São terroristas, inimigos da nossa pátria. Assim.”

Vamos dizer aos chilenos: temos orgulho e tem sangue nosso aqui semeado com vocês

BdF RS - E jogavam panfletos de avião...

Ellwanger - Anunciavam no rádio e jogavam panfletos de helicóptero, usavam alto-falantes. Não era passar um fim de semana na praia. Era vida ou morte. Fazer história, sofrer mutilação, sofrimento, sequelas, loucura...

Vamos dizer para eles agora: temos orgulho e tem sangue nosso aqui, na terra, semeado com vocês.

BdF RS - Como foi no dia do golpe?

Ellwanger - Minha casa foi invadida no dia 11 às 20 horas. A gente começou a ver o golpe às 6 da manhã. Moravam eu e a minha namorada, Eliana Chaves, que depois vai ser a mãe do meu filho. Mais meu amigo Roberto Metzer (Bob) e a companheira dele Vânia, que estava grávida, e o filho deles, de quatro anos.

Quando a coisa começou a complicar – ali pelo meio-dia, vimos o bombardeio, pela janela da cozinha – consegui falar com uma família amiga minha e levei as mulheres e a criança para lá. Correndo risco seríssimo essa família, uma senhora com três filhas...

BdF RS - Que acolheu vocês...

Ellwanger - Acolheu. E era separada de um cara que era de direita, o pai das gurias. E nós escondidos no quarto da empregada e com uma criança querendo cantar as músicas da Unidade Popular... E o Bob ficou no nosso apartamento cortando papelzinho, botando na privada os documentos que estava lendo, a obra completa do Mao Tse Tung. E combinamos que ele ia dormir lá num vizinho. Mas o Bob não cumpriu o combinado de escapar por cima do telhado na hora que escurecesse. Então, eles já chegaram com o caminhão, arrebentando tudo, pegaram ele e limparam a casa na hora. Aí foi violão, máquina fotográfica, equipamentos, roupas, móveis, geladeira, tudo.

O glorioso exército chileno fez uma fézinha ali no nosso apê e o Bob foi jogado primeiro numa delegacia ali no bairro, depois foi para um batalhão de telecomunicações e de lá para o Estádio Nacional. Depois soubemos que ele já fora identificado pela Cruz Vermelha internacional o que era uma garantia de que não seria executado.

Uma coisa importante é que eu fui conhecer a democracia no Chile. No Brasil não havia

BdF RS - Quanto tempo ficastes escondido até conseguir deixar o Chile?

Ellwanger - Daí uns três dias, quando passou o toque de recolher, fui na nossa casa.

Cheguei, vi aquilo tudo quebrado, e começamos a procurar o Bob. Eu tinha documento chileno, era legalizado. Tinha residência, podia viajar – uma vez fui ao exterior e voltei – podia votar, podia ter conta em banco, podia alugar, podia casar...

BdF RS - Todos os vizinhos sabiam que vocês eram brasileiros ou que estavam ali?

Ellwanger - Tudo amigo. Era uma ruelinha sem saída, uma antiga vila inglesa de operários com aquelas casinhas de telhado vermelho. Mas claro, tinham dois ou três vizinhos que nos apontavam (faz com a mão o sinal de espera).

Ao mesmo tempo, tinha caras de outra direita – conservadores, opositores ao Allende, que seguraram a onda – que nos ajudaram, nos protegeram, nos salvaram também. Famílias.

Porque o lance da pessoalidade funciona muito, entendeu? Lá não teve esse negócio em que a pessoa começa a se tornar odiosa. Uma pessoa tua amiga lá nunca ficou contra ti. O que aconteceu agora aqui, estranhamente, dentro das famílias. Os caras conseguiram aqui um nível de ódio que a gente não tinha. Nem na ditadura militar aqui do Brasil tinha.

Uma coisa importante é que eu fui conhecer a democracia no Chile. No Brasil não havia. Fui fazer faculdade e estava sempre olhando por cima do ombro. Achava sempre que havia ratos (policiais) na turma. Quem será? O professor começava a se expor muito e eu pensava: é um provocador.

Eu fui muito feliz no Chile.