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“Anatália, filha deste solo”: documentário revela história da potiguar vítima da ditadura que teve certidão de óbito retificada
No próximo dia 2 de agosto, às 19h, na Cervejaria Resistência, será lançado o documentário “ Anatália, filha deste solo “. O filme, dirigido pelo historiador e cineasta Rômulo Sckaff, em parceria com o fotógrafo e cineasta Teotônio Roque, revela a história de Anatália Alves. A potiguar atuava na alfabetização de trabalhadores rurais e foi assassinada durante a ditadura militar. Somente em 2015, as circunstâncias de sua morte foram reconhecidas pelo Estado, que retificou o atestado de óbito de Anatália Melo Alves, mudando o laudo sobre a morte, substituindo suicídio por assassinato.
Em entrevista à Agência Saiba Mais , Rômulo avalia que a trajetória de Anatália e Luiz Alves Neto, seu companheiro, sempre foi uma narrativa poderosa, e revela que até 2010 ainda existia um debate sobre a versão oficial da morte da militante potiguar por suicídio. Foi quando um achado inesperado mudou o rumo da investigação.
A jornalista Denise Assis, durante o processo de apuração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), descobriu um saco de lixo no arquivo público de Recife que continha o processo de Anatália, incluindo sua bolsa queimada e outros pertences. Esse fato permitiu que o caso fosse reaberto e Anatália foi reconhecida como uma vítima de assassinato pelo estado. A partir desse ponto, o documentário “ Anatália, filha deste solo ” ganhou forma e profundidade.
A produção do filme enfrentou desafios para conseguir financiamento e, em 2015, Rômulo Sckaff assumiu a direção, ao receber os originais das filmagens de Teotônio. “ Ali eu sabia que tinha algo verdadeiramente grande e mergulhei na história dessa mulher que foi brutalmente morta ”, destacou Sckaff.
O documentário mergulha na história de Anatália, revelando como ela desafiou a ditadura, resistindo bravamente às torturas e violências sofridas. Com depoimentos de Luiz e outros militantes, incluindo o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Nilmário Miranda, autor do livro “ Filhos dessa terra “, o filme se torna uma jornada sobre a importância da luta e da resistência.
“ Optei por mostrar quem foi Anatália, um rosto até conhecido dos militantes aqui no RN, mas pouca gente conhece a sua história ”, esclarece Rômulo Sckaff.
Para Rômulo, é crucial resgatar a história da ditadura, pois muitos jovens não têm conhecimento sobre esse período sombrio da história do Brasil. O diretor enfatiza que é uma obrigação alertar as futuras gerações sobre o regime de exceção e suas consequências para evitar a repetição desse passado doloroso.
“ Vejo quase como uma obrigação avisar essa geração futura que houve um período de exceção, e que o não saber dessa história implica diretamente em retornar a esse passado ”, avalia Sckaff.
Apesar de enfrentar desafios técnicos, como entrevistas remotas devido à pandemia, o filme traz à tona os 50 anos do brutal assassinato de Anatália, tornando-se uma homenagem à sua coragem e determinação, e também a “ figuras importantes da resistência, como Mércia Albuquerque, Emmanoel Bezerra e Gregório Bezerra ”, alerta Rômulo.
O lançamento de “ Anatália, filha deste solo ” pretende ser um momento de reflexão sobre os valores da liberdade e justiça, ao resgatar uma história inspiradora de resistência que merece ser conhecida e celebrada.
Circunstâncias da morte
Informações do portal Memórias da Ditadura
Anatália de Souza Melo Alves morreu no dia 22 de janeiro de 1973. Ela foi presa no dia 17 de dezembro de 1972 por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), do IV Exército em Recife, e levada para um local desconhecido. No mesmo dia, horas antes, foram presos Luiz Alves Neto, seu marido, e José Adeíldo Ramos, ambos filiados ao PCBR. Junto a Anatália, também foram presos os militantes Edmilson Vitorino de Lima e Severino Quirino Miranda.
De acordo com o cadastro de recebimento de presos, da Delegacia de Segurança Social de Pernambuco, é possível notar que a prisão de Anatália só foi registrada 26 dias após o seu sequestro, quando foi encaminhada do DOI-CODI à mencionada delegacia, ligada ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de Recife, no dia 13 de janeiro de 1973. Apesar desse registro, o auto de exibição e apreensão é do dia 14 de janeiro de 1973, posterior ao seu trânsito entre cárceres.
Segundo versão apresentada pelos órgãos de segurança, Anatália teria se enforcado com a tira de sua bolsa enquanto tomava banho nas dependências da própria delegacia, ocasião em que estava sob a vigilância do agente policial Artur Falcão Dizeu. Segundo relatou o agente, passados 20 minutos dentro do banheiro, o policial teria estranhado a demora e, após bater várias vezes, teria arrombado a porta, deparando-se, em seguida, com ela morta com a alça da bolsa envolvendo o seu pescoço. Segundo Artur Falcão, ele teria pedido ajuda a Genival Ferreira da Silva e Amilton Alexandrino dos Santos. Segundo o laudo do Instituto de Polícia Técnica (IPT) de Pernambuco, Anatália foi encontrada deitada numa cama de campanha, o que contraria a versão de que teria morrido no banheiro.
De acordo com a análise pericial, sua morte teria sido causada por asfixia por enforcamento. Um fato obscuro, entretanto, chama a atenção para a violência presente no caso. A análise das fotos do laudo de perícia de local de ocorrência indica que seus órgãos genitais foram queimados. O laudo já citado, produzido pelo IPT, também reforça a evidência, esclarecendo que duas peças do vestuário usado pela vítima (um vestido vermelho de algodão, estampado, e uma calça jersey rosa) estavam parcialmente queimadas. Esse fato corrobora as declarações de algumas testemunhas, que afirmaram que Anatália teria sido submetida a diversos tipos de tortura, incluída violência sexual. As marcas de queimaduras se iniciavam na região pélvica, o que aponta para uma tentativa de eliminar os indícios de violência sexual. Ao mesmo tempo, um dos elementos que apontam para a inconsistência da versão apresentada pelos órgãos de repressão é o fato de uma presa incomunicável estar portando uma bolsa. Outro elemento que relativiza a versão de suicídio é o tamanho da alça da bolsa. Segundo declaração de comissionado da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (CEMVDHC), Manoel Moraes, em audiência pública realizada pela Comissão Rubens Paiva sobre os casos de Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz, realizada em 20 de fevereiro de 2013, o comprimento da alça impediria sua utilização para os fins alegados. A CEMDP não descartou a possibilidade de se tratar de um caso de suicídio. Contudo, devido às incongruências do caso, a CEMVDHC dedicou esforços para averiguar as circunstâncias de sua morte e está em fase de finalização de um laudo pericial, que está sendo realizado pelo Instituto de Criminalística de Pernambuco. Anatália foi sepultada sem que a família tomasse conhecimento e sem que lhes fosse entregue a certidão de óbito. Entretanto, após investigações realizadas pela CEMVDHC, de Pernambuco, conseguiu-se localizar seu atestado de óbito, assim como informação sobre local de sepultamento noCemitério de Santo Amaro em Recife (PE). Seu corpo já tinha sido exumado e uma urna lacrada, supostamente contendo os restos mortais de Anatália, foi entregue aos seus familiares em 1975, com a recomendação de que não a abrissem em nenhuma circunstância. Sendo assim, os restos mortais carecem, ainda, de plena identificação.
Conclusão da CNV
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Anatália de Souza Melo Alves morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar, implantada no país a partir de abril de 1964.
Fonte: Saiba Mais, 30/07/2023