11/11/2021
Entrevista com o médico psiquiatra
Marcos Romano
Qual a definição mais atualizada de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH)?
O TDAH se caracteriza por um padrão persistente de desatenção, acompanhado ou não de hiperatividade/impulsividade, que interfere no funcionamento e no desenvolvimento do indivíduo.
Por muito tempo se acreditou que o TDAH tendia a desaparecer espontaneamente com o crescimento e que não persistia até a idade adulta. Esse equívoco ocorreu porque a hiperatividade realmente tende a desaparecer, mas, hoje se sabe que nem todos os portadores de TDAH apresentam hiperatividade e que os sintomas de desatenção são muito mais prejudiciais do que a hiperatividade.
Não se trata de uma impossibilidade de sustentar a atenção e, sim, de uma dificuldade em modulá-la, de tal maneira que o portador de TDAH é capaz de focar em uma atividade pela qual tem um interesse especial, mas, é praticamente incapaz de sustentar a atenção em algo que não seja para ele especialmente interessante.
Quais instrumentos validados são mais frequentemente utilizados para avaliação de TDAH no Brasil?
O instrumento mais bem utilizado para avaliação de TDAH ainda é a anamnese: uma longa entrevista clínica em que o especialista procura avaliar o funcionamento na vida e o possível impacto dos sintomas do TDAH por meio de perguntas específicas.
Também existem diversas escalas de autoavaliação, auxiliares no diagnóstico:
- a SNAP-IV (questionário para pais e professores), que é composta de 18 itens (nove de desatenção e nove de hiperatividade/impulsividade) baseados nos critérios do Manual de Diagnóstico e Estatística - DSM-IV, da psiquiatria americana;
- a ASRS (para adultos), também com 18 itens baseados no DSM;
- uma versão mais curta da ASRS, com seis itens, útil para rastreio populacional; e
- a ETDAH (versão para crianças/adolescentes e para adultos), um instrumento com 69 itens que avalia cinco aspectos: 1) desatenção; 2) impulsividade; 3) aspectos emocionais; 4) auto-regulação da atenção, da motivação e da ação; e 5) hiperatividade.
Pessoas com TDAH apresentam risco para desenvolvimento de Transtorno do Uso de Substâncias Psicoativas (TUS)?
Sim. As pessoas com TDAH apresentam um risco dobrado para o desenvolvimento de TUS, quando comparadas com a população geral. Os portadores de TDAH tendem a iniciar o uso de substâncias psicoativas mais cedo na vida, viciar-se mais rapidamente, usar maior quantidade e por mais tempo na vida, e ter mais dificuldade para interromper o uso. A adesão ao tratamento também é menor e o impacto causado pelo uso de substâncias tende a ser maior.
É claro que isso não acontecerá com todas as pessoas com TDAH, mas, é importante que os pais de uma criança ou adolescente com o transtorno saibam desse risco. A boa notícia é que o tratamento precoce do TDAH reduz significativamente essa ameaça.
Quais são os efeitos principais de TDAH no Transtorno do Uso de Substâncias Psicoativas (TUS)?
Os portadores de TDAH tendem a iniciar o uso de substâncias psicoativas mais cedo na vida, viciar-se mais rapidamente, usar maior quantidade e por mais tempo na vida, e ter mais dificuldade para interromper o uso. Os portadores de TDAH tendem a experimentar múltiplas substâncias, podendo se tornar dependentes de mais de uma delas.
Muitos deles estão tentando se automedicar, mesmo sem saber, para sintomas ou das consequências do TDAH, como dificuldades emocionais decorrentes dos prejuízos causados pelo transtorno ao longo da vida. A dificuldade que o portador de TDAH tem em lidar com o adiamento da recompensa pode levá-lo a uma busca compulsiva de gratificação imediata, abrindo o caminho para a experimentação e a dependência de drogas que atuam como reforçadoras dessa busca de gratificação.
Como se dá o tratamento dual do Transtorno do Uso de Substâncias Psicoativas e do TDAH?
É necessário tratar ambos. Uma vez identificados, o TUS e o TDAH devem ser tratados conjuntamente. Tratar o TDAH aumenta muito as chances de sucesso no tratamento do TUS.
Normalmente, a pessoa procura tratamento por causa do TUS, pois muitas vezes o TDAH nunca foi identificado - apesar de contribuir muito para o TUS. O TDAH sozinho tem potencial para tornar a vida bastante infeliz, comprometendo o desempenho tanto na escola quanto no trabalho e nas relações sociais. Fracassos tornam a pessoa pouco confiante na sua capacidade de superação, tornando-a mais propensa a se viciar em alguma substância, sem enxergar saída. Então, quando diagnosticamos e tratamos o TDAH, estamos não apenas removendo um obstáculo para o tratamento do TUS mas também oferecendo uma esperança de reconstrução da vida para essa pessoa, tornando-a capaz de um desempenho similar ao de outras.
Existe associação causal entre TDAH e Transtorno do Uso de Substâncias Psicoativas? Como se dá em adolescentes?
Sim, existe uma correlação muito forte entre os dois transtornos. O funcionamento cerebral de um indivíduo com TDAH é diferente. Veja: ele toma uma medicação estimulante e fica mais tranquilo e focado. Essa dinâmica neuroquímica faz com que muitas vezes apresente efeitos diferentes, até paradoxais, com substâncias psicoativas - principalmente com as drogas estimulantes.
Essa associação aparece também de várias outras maneiras, entre elas a busca de automedicação para sintomas de TDAH com substâncias psicoativas e de alívio das consequências psicológicas do TDAH. Além disso, o TUS e o TDAH compartilham fatores de risco em comum, alguns deles associados a genes específicos, como o comportamento de busca de novidades, de sensações e de impulsividade. No caso de adolescentes com TDAH, a falta de percepção dos riscos envolvidos aliada à impulsividade funciona como um catalisador do envolvimento com substâncias.
Qual o impacto no curso do tratamento entre pessoas com TDAH e TUS quanto à adesão ao tratamento e a possíveis recaídas?
O tratamento do TDAH aumenta a adesão ao tratamento e reduz as recaídas, ao tratar um problema que estava contribuindo tanto para o início do TUS quanto para a persistência dele. Além disso, ele fornece à pessoa uma "porta de saída" do TUS, ao proporcionar a ela um desempenho melhor nos estudos, no trabalho, nas relações sociais: na vida, de maneira geral.
Nesses casos, apesar de a pessoa possuir dois problemas que se somam (TDAH e TUS), o tratamento do TDAH possibilita uma recuperação muitas vezes melhor do que quando só existe o TUS, ao fornecer à pessoa um funcionamento que ela nunca teve antes na vida.
Tratar o TDAH, portanto, aumenta muito as chances de sucesso no tratamento do TUS.
O que o motiva a trabalhar com esse tema?
O que me motivou foi perceber a importância do tema e, ao mesmo tempo, o grande desconhecimento que havia sobre ele - sobre o TDAH e sobre a associação do TDAH com TUS - quando comecei a me especializar no tratamento de ambos os transtornos. Eu diagnostico e trato adultos com TDAH, com e sem TUS, há mais de 20 anos e, à época, havia poucos profissionais no Brasil que se dedicavam a isso.
Contribuir para descortinar o tema em nosso país me motivou muito. Outra coisa que me motiva são os resultados do tratamento: tratar o TDAH, proporcionando à pessoa um nível de funcionamento que ela nunca desfrutou antes na vida, é muito gratificante. Ver o paciente alcançar coisas que nunca conseguiu ou que já tinha desistido de tentar tem sido minha motivação.
Como o OBID pode contribuir para seu trabalho?
Fornecendo dados confiáveis, baseados em estudos nacionais e internacionais, tanto para os profissionais quanto para a população geral. Disseminando o conhecimento e facilitando o acesso à informação. Estabelecendo um diálogo frutífero entre os diversos setores da sociedade envolvidos no estudo, na prevenção e no tratamento de problemas relacionados a álcool e drogas. E difundindo o conhecimento disponível sobre a importância de rastreio diagnóstico do TDAH entre os dependentes químicos.
Marcos Romano é médico psiquiatra, graduado pela Unicamp, onde também fez residência médica em psiquiatria. É especialista em dependência química pela Unifesp, onde coordenou o Ambulatório de Adultos com TDAH na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD). Foi professor de psiquiatria na PUC-Campinas. Pesquisador na área de Políticas Públicas do Álcool pela Unifesp. Contribuiu para a adaptação em português da Escala ASRS para avaliação de TDAH em adultos. É um especialista em TDAH reconhecido pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) e possui experiência clínica no diagnóstico e no tratamento do TDAH em adolescentes e adultos há mais de 20 anos.