08/12/2020
Entrevista com o Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP,
Hermano Tavares
O jogo patológico é uma dependência, um transtorno compulsivo ou impulsivo?
Resposta: As dificuldades causadas pelo envolvimento excessivo com jogos de azar são conhecidas a há milênios, porém o seu reconhecimento como uma condição médica e um transtorno mental se deu apenas na década de 80. O público leigo conhece esta condição como jogo compulsivo, inicialmente nomeado pela comunidade científica como jogo patológico, teve seu nome recentemente, em 2013, atualizado para Transtorno do Jogo. Trata-se de uma adição, assim como o alcoolismo, ou a dependência de drogas, porém neste caso o indivíduo é dependente da emoção causada pelo ato de apostar. Trata-se da primeira dependência comportamental oficialmente reconhecida. Espera-se que para os próximos anos venha o reconhecimento de outras dependências não químicas como compras, sexo, comida, etc. O Transtorno do Jogo, assim como outras dependências comportamentais, tem no traço impulsivo de personalidade um fator de vulnerabilidade e predisposição.
Como é a fissura relacionada ao Transtorno do Jogo?
Resposta: Como toda dependência, o Transtorno do Jogo cursa com importante fissura. Fissura é um termo que nós profissionais de saúde nos apropriamos da gíria de nossos pacientes. Ele é usado para se referir ao desejo imperioso que o dependente sente de tempos em tempos pelo uso da substância, ou pela realização do comportamento no caso das dependências não-químicas. No Transtorno do Jogo, o indivíduo se sente inquieto e com um forte desejo de fazer apostas, especialmente quando pressionado por dívidas, angústia, tédio, ou conflito interpessoal. Estudos conduzidos por nosso time de pesquisadores, parte deles em parceria com pesquisadores do Canadá, mostram que a fissura dos jogadores por aposta é tão ou mais intensa do que a fissura de dependentes químicos por cocaína ou álcool, por exemplo.
Existe algum perfil de jogador patológico?
Resposta: O perfil depende do local onde buscamos localizar este jogador. Pesquisas conduzidas em amostra populacional na comunidade mostram um perfil predominantemente masculino, dividido em dois subgrupos: o primeiro, de jogadores mais jovens, em torno de 30 anos de idade, que começaram a jogar mais cedo, em geral em torno dos 15 anos, com preferência por jogos de cartas. E um segundo grupo de jogadores que começaram a apostar após os 20 anos de idade, com média de idade em torno dos 40 e com preferência por caça-níqueis eletrônicos. Nos centros de tratamento, o perfil é um pouco diferente, a predominância masculina não é tão clara, muitas mulheres também procuram tratamento, a média de idade fica em torno de 45 anos de idade e a preferência se dá por caça-níqueis eletrônico.
Como é realizado o diagnóstico dual onde há Transtorno do Jogo e dependência química de álcool?
Resposta: O diagnóstico dual, ou comorbidade psiquiátrica, é uma regra no Transtorno do Jogo. Três em cada quatro dos jogadores patológicos apresentam uma ou mais comorbidades psiquiátricas, sendo as principais tabagismo, depressão, ansiedade e dependência de álcool. A associação entre jogo e álcool é mais frequente em jogadores masculinos. É preciso estar atento, porque o jogador raramente bebe imediatamente antes ou durante as apostas, mas o abuso de bebidas alcoólicas é comum depois de uma sessão de jogo para lidar com a angústia das perdas ou para facilitar o sono. A presença de uma comorbidade é sempre um indicador de uma maior gravidade. O mais habitual é o paciente se apresentar com a tríade clássica álcool, tabaco e jogo. Nos tratamentos especializados há o risco sempre presente de se negligenciar uma ou duas dessas condições, isso é um problema a ser superado.
Se um paciente busca tratamento para alcoolismo e seu problema com apostas não é identificado, isso pode incorrer em prejuízo do tratamento, pois o jogo pode permanecer como um fator oculto e não identificado de recaídas e vice-versa – o jogador que não tem seu problema com álcool abordado terá problemas para atingir uma recuperação sustentada. O problema do tabagismo também é muito importante, pois ele é muitas vezes tolerado ou visto como um objetivo secundário do tratamento, todavia o óbito causado por condições agravadas pelo cigarro, tais como doença pulmonar crônica e doenças cardiovasculares são as mais frequentes mesmo entre pacientes que se tratam para outras dependências. Ou seja, o indivíduo busca tratamento para seu problema com álcool ou jogo, mas no futuro o que irá abreviar sua vida será o cigarro.
De que forma o álcool ou drogas podem ser estímulos para o Transtorno do Jogo?
Resposta: As dependências em geral compartilham fatores de risco genéticos e ambientais. Em uma família em que há problemas com álcool ou drogas, há um risco maior de seus membros apresentarem dificuldades com apostas também e vice-versa. Além disso, os ambientes de prática de uso de álcool, tabaco, outras drogas e jogos de azar muitas vezes são compartilhados, por exemplo os bares, muitos deles possuem máquinas ilegais de jogos, como os caça-níqueis eletrônicos.
Qual o tratamento para o Transtorno do Jogo?
Resposta: o tratamento do Transtorno do Jogo segue as mesmas linhas do tratamento de qualquer dependência e envolve uma abordagem inicial motivacional e psicoeducativa. As medidas para evitar acesso facilitado a crédito devem ser tomadas para prevenir recaídas, os gatilhos que precipitam a busca pelas apostas precisam ser identificados e dirimidos. Neste sentido, é fundamental tratar as comorbidades psiquiátricas, trabalhar com o paciente as expectativas fantasiosas de que, em um golpe de sorte, as apostas possam compensar todos os problemas que elas mesmas causaram e instrumentá-los para enfrentar seus problemas cotidianos de uma forma mais racional e realista. Além disso, é importante frisar a relevância de três complementos indispensáveis. O primeiro é a orientação da família, que na maior parte das vezes não sabe que o Transtorno do Jogo é uma dependência, assim como o álcool ou as drogas. Segundo, os estudos já são bastante indicativos que o tratamento com medicações que reduzem a fissura por apostas pode ajudar, em particular a naltrexona, que já foi aprovada para o tratamento da dependência de álcool, também se mostra útil no tratamento do Transtorno do Jogo. Por último, o apoio da comunidade é indispensável para consolidação da recuperação, a participação em grupos de apoio como os JA (Jogadores Anônimos) e Jog-Anom (Amigos e Familiares de Jogadores Anônimos) é um suporte precioso que é oferecido gratuitamente.
Como funciona o grupo de mútua ajuda para o Transtorno do Jogo?
Resposta: O JA funciona de forma muito semelhante ao AA (Alcoólicos Anônimos) em quem ele inspirou. O JA adotou o código de 12 passos e 12 tradições. Os 12 passos guiam o processo de recuperação do dependente, enquanto as 12 tradições focam nas regras de convívio e coordenação da irmandade. JA realiza reuniões semanais em diferentes horários e em vários dias da semana. Não são cobradas taxas de participação, o programa é completamente gratuito e o único pré-requisito para participar é o desejo genuíno de interromper as apostas. As reuniões e o programa são conduzidos pelos seus próprios membros, todos autodenominados jogadores em recuperação. O anonimato é uma exigência fundamental para preservação do programa e dos seus participantes. Segundo as 12 tradições, ninguém está autorizado a falar publicamente em nome de JA, JA não se envolve em debates sobre política ou regulamentação dos jogos, seu único interesse é a preservação do programa para que ele siga apoiando jogadores compulsivos em busca da recuperação.
O que o motiva a trabalhar com este tema?
Respostas: Os estudos epidemiológicos mostram que em torno de 15% da população abusa de álcool, fuma ou realiza ambos. Os estudos também mostram que dificuldades com jogos de azar podem atingir cerca de 2% da população, o que faz do jogo de azar a terceira dependência mais comum depois do álcool e do tabaco. Entretanto ele segue desconhecido da maioria da população e também dos profissionais de saúde mental. Mas o que mais me motiva, de fato, é que essa é uma condição tratável, isto é, as pessoas podem e irão se recuperar do Transtorno do Jogo se receberem ajuda apropriada.
Como o OBID pode contribuir para o seu trabalho?
Resposta: Iniciativas como o OBID são muito importantes por levar informação à sociedade e por colocar em pauta questões relevantes para que os cidadãos possam cobrar dos seus representantes as medidas necessárias para a proteção do cidadão e do desenvolvimento social. A questão do jogo de azar é um ótimo exemplo. Os países variam amplamente sobre a forma como regulamentam esta atividade. Dizer que ela é proibida em nosso país não corresponde à verdade, afinal temos, além do jogo ilegal, as loterias estatais, as corridas de cavalo e as casas de pôquer – estas últimas ainda sem legislação apropriada. Todas envolvem apostas e o debate segue quanto a legalização ou proibição de outras formas de apostas, como apostas em evento esportivos, cassinos, etc. Os defensores de uma e de outra abordagem têm argumentos que precisam ser examinados pela sociedade. Nosso papel, neste caso e nesse momento contamos com o OBID para isso, é lembrar que a legalização de atividades com potencial aditivo aumenta o risco de exposição de vulneráveis e que qualquer medida neste sentido tem que contemplar o financiamento de iniciativas para garantir a segurança da população, incluindo campanhas de prevenção, formação e treinamento de uma rede de profissionais capacitados a amparar e tratar as pessoas cujas vidas venha a ser prejudicadas pelo jogo de azar.
Hermano Tavares é livre-docente, Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Fundou e coordena o Programa Ambulatorial do Jogo (PRO-AMJO) e o Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, publicou inúmeros artigos científicos, capítulos de livro e atua principalmente nas áreas de jogo, dependências comportamentais e transtornos do impulso.