13/5/2020
Entrevista com o psiquiatra
Fábio Souza
1) Qual a prevalência de comorbidades psiquiátricas em dependentes químicos?
Metade das pessoas com transtorno por uso de substâncias tem algum tipo de transtorno mental, 26% apresentam transtorno depressivo maior ou transtorno bipolar, 28% deles têm problemas de ansiedade, 18% apresentam transtorno de personalidade antissocial e 7% têm com esquizofrenia. (Referência: Hersh and Modesto-Lowe, 1998).
2) Quais os cuidados para realizar diagnóstico diferencial em dependentes químicos?
Sintomas podem sobrepor-se e um transtorno pode exacerbar ou mascarar o outro. Em outras palavras, muitas vezes é difícil identificar o que foi evidenciado como quadro clínico inicial (o uso da substância ou os sintomas depressivos, por exemplo). É importante considerar aspectos genéticos, história pregressa da pessoa, quadro clínico atual, gênero, status socioeconômico, se já há algum tratamento e qual a resposta a ele.
3) Os antidepressivos causam dependência ou síndrome de retirada?
Existe um mito de que todos os medicamentos psicotrópicos causam dependência química, mas isso não ocorre. Apenas os benzodiazepínicos possuem esse risco. Para caracterizar uma dependência, precisamos ter os fenômenos de tolerância (necessidade de doses cada vez maiores para ter o mesmo efeito) e abstinência (sintomas desagradáveis quando se interrompe o uso e que cessam quando ele é retomado. Por exemplo, um dos sintomas da abstinência de álcool são os tremores). (Referência: Nutt DJ. Rationale for, barriers to, and appropriate medication for the long-term treatment of depression. J Clin Psychiatry. 2010;71 Suppl E1:e02).
4) O ECT está ultrapassado?
A eletroconvulsoterapia é um procedimento que tem indicações para casos de indivíduos com transtornos mentais refratários ao tratamento farmacológico e em indivíduos com risco grave de suicídio. Também é indicado para gestantes por, muitas vezes, ser mais seguro do que o uso de psicofármacos. Atualmente, é um procedimento feito em hospitais, com a presença de médico psiquiatra e médico anestesista, com cuidados para garantir a segurança do paciente. (Referência: Kaliora SC, Zervas IM, Papadimitriou GN. Electroconvulsive therapy: 80 years of use in psychiatry. Psychiatriki. 2018 Oct-Dec;29(4):291-302.)
5) Qual o índice de suicídio para dependentes químicos?
Indivíduos com transtornos por uso de álcool são 10 vezes mais propensos ao suicídio, e usuários de drogas injetáveis têm aumento dessa possibilidade em 14 vezes. Quando avaliados separadamente por sexo, essa associação é particularmente forte no sexo feminino. Mulheres com transtorno por uso de álcool apresentam risco 17 vezes maior de morrer por suicídio. Já entre homens, o risco é 5 vezes maior. Mulheres com uso de drogas e história prévia de tentativa de suicídio apresentam aumento de 87 vezes quando comparadas com a população geral. (Referência: Yuodelis-Flores C, Ries RK. Addiction and suicide: A review. Am J Addict. 2015 Mar;24(2):98-104).
6) Como proceder quando o risco de suicídio é detectado?
O risco de suicídio pode ser compreendido em vários níveis: 1) ideação suicida, 2) planos suicidas e 3) tentativas de suicídio. O primeiro nível, o da ideação, as providências a serem tomadas, usualmente, são indicação de psicoterapia, pois algum transtorno mental está relacionado. Cerca de 97% dos suicídios estão relacionados algum transtorno mental, comumente depressão, transtorno bipolar, dependência química, transtorno de personalidade borderline e esquizofrenia. O segundo nível, o do planejamento, o paciente faz planos concretos para morrer por suicídio. Neste caso, deve-se se avaliar a intencionalidade e letalidade desses planos. A mesma conduta pode ser indicada. No caso, psicoterapia e farmacoterapia conforme o quadro clínico apresentado pelo paciente. Deve-se levar em conta a genética, histórico de maus tratos e abuso, uso de álcool e drogas e acesso aos meios para morrer por suicídio. Alguns pacientes apresentam automutilações que muito frequentemente são expressões físicas de uma enorme dor psíquica. Devemos não ignorar tal comportamento e achar que as pessoas que se automutilam não morreriam por suicídio. Nos casos mais graves, as tentativas de suicídio, todas as alternativas anteriores estão indicadas, bem como outras devem ser consideradas. São elas: observação 24 horas por internação psiquiátrica, uso de psicoterapia, uso de medicamentos antissuicidas, como lítio e clozapina, uso da ECT e envolvimento de familiares e amigos. Enfim, todos os recursos devem ser usados para reduzir o risco de suicídio. (Referência: Matos e Souza, Fabio Gomes; Oliveira, Maria Ivoneide Verissimo; Rebouças, Erick Fraga; Bisol, Luisa Weber (organizadores). Prevenção ao Suicídio. Temas Relevantes Fortaleza: Editora Premius, 2018).
7) Qual a importância do hospital psiquiátrico para a dependência química?
O hospital psiquiátrico mudou muito nas últimas décadas, com o auxílio de novas técnicas e medicamentos. Atualmente, ele praticamente só é usado para tirar os pacientes das crises. Assim, para um paciente em pleno surto psicótico ou maníaco, aqueles com elevado risco de suicídio, bem como para aqueles que apresentam abstinência de álcool e drogas, o hospital psiquiátrico representa um recurso terapêutico que não pode ser ignorado. As vezes, em pacientes com dependência química, é necessária a internação por um período 90 dias para que hábitos saudáveis possam se tornar rotina na vida dos pacientes, sessões de psicoterapia, mudanças nos hábitos de vida como a prática de exercícios e melhora da autoestima podem ajudar muito os pacientes. (Referência: Weinstein ZM, Wakeman SE, Nolan S. Inpatient Addiction Consult Service: Expertise for Hospitalized Patients with Complex Addiction Problems. Med Clin North Am. 2018 Jul;102(4):587-601).
8) O que o motiva a trabalhar este tema?
O desejo de ajudar aquelas pessoas mais fragilizadas e mais vulneráveis é o meu primum movens. Encaro a dependência química como a perda da liberdade, pois o indivíduo deixa de exercitar sua vontade e passa a querer apenas uma coisa: a droga. A abstinência de pessoas anteriormente dependentes resgata o indivíduo como um todo, restaurando sua liberdade.
9) Como o OBID pode ajudar neste seu trabalho?
O OBID pode ajudar por ser um centro de referência na questão de álcool e drogas no Brasil. Tendo um acervo de literatura sobre o tema que vai em muito auxiliar os profissionais que trabalham com essa questão e, consequentemente, aqueles atendidos por eles.
Fábio Souza é Professor Titular de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará, PhD em Psiquiatria pela Universidade de Edimburgo, Médico Psiquiatra pela ABP.