29/5/2020
Entrevista com o Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo
Mário Sérgio Sobrinho
Por que a bebida alcoólica é motivo de preocupação constante?
O álcool é uma substância lícita, disponível ao consumo consciente da pessoa maior de 18 anos que estiver disposta a enfrentar os riscos causados à saúde por sua ingestão. A preocupação constante com a bebida alcoólica surge, especialmente, em relação ao uso nocivo dessa substância, ou seja, em relação a quem bebe demasiadamente. Nessa situação, a pessoa tende a se comportar de modo descuidado, desequilibrado ou violento. A intoxicação alcoólica pode ampliar o risco de acidentes ou situações pessoais indesejadas (quedas, afogamentos e sexo não seguro, por exemplo), faz crescer a ideação e o comportamento suicidas, a expõe a vivenciar situações de violência doméstica (lesão corporal e homicídio intencionais) e, ainda, pode ocasionar o famigerado beber e dirigir, comportamento capaz de causar lesões e mortes, resultados que em situação normal, sem o álcool, seriam absolutamente evitáveis.
Qual é o público mais vulnerável ao álcool?
Consumir álcool é permitido ao adulto em razão de ser presumida sua maturidade para lidar com essa substância. Entre as pessoas mais vulneráveis ao consumo do álcool estão as crianças e os adolescentes, cujo cérebro está em desenvolvimento, aqueles que são sensíveis ao consumo dessa substância mesmo ingerida em pouca quantidade e, principalmente, os alcoolistas (doentes alcoólicos), pessoas que ingerem álcool descontrolada e continuamente, por vezes, até perderem os sentidos. As mulheres também são conhecidamente mais sujeitas aos efeitos nocivos do álcool em razão da constituição orgânica, cabendo, ainda, destacar o risco da gravidez indesejada influenciada pelo sexo desprotegido resultado do abuso de álcool e os problemas à gestação do feto que podem ser causados pelo álcool.
Como prevenir o uso de álcool?
A prevenção ao uso do álcool é ação a ser exercida pelas autoridades juntamente com a sociedade civil. A prevenção exige difundir informações corretas acerca do potencial risco do consumo dessa substância, permitindo a cada um avaliar livremente se quer consumi-la ou não, apesar da pressão dos amigos, dos hábitos e dos costumes locais. A iniciativa requer, também, adoção de medidas ambientais com base legal, tais como fiscalizar a oferta de álcool aos adolescentes, proibir a publicidade do álcool em qualquer meio de comunicação, fixar tributos elevados da produção ao consumo, restringir ou proibir a oferta dessa substância, especialmente nas situações cujo risco para o consumo é notório, como na oferta ilimitada de álcool aos frequentadores de festas tipo “open bar” ou no caso de o seu consumo ser autorizado aos expectadores de partidas de futebol.
Algumas pessoas podem fazer uso de álcool como auxílio para ansiedade?
A pessoa que apresenta transtornos comportamentais, como a ansiedade, comum na sociedade moderna, deveria, antes, conhecer os efeitos causados à saúde pelo álcool e saber que, embora ele possa aliviar momentaneamente seus sintomas, não trata as causas e ainda amplia as chances de surgimento de outros problemas, como ganhar peso ou, ainda, ter que lidar com desavenças e perdas que podem surgir a partir de litígios ligados ao consumo excessivo do álcool. Procurar um profissional de saúde habilitado, buscar orientação para realizar atividades físicas e investir na qualidade do sono e da alimentação são ações que diversas pessoas adotam para enfrentar quadros de ansiedade, dispensando, assim, o uso da bebida alcoólica.
O que tem acontecido em relação ao uso de álcool durante a atual pandemia do coronavírus?
Autoridades médicas recomendam limitar o consumo de bebida alcoólica durante a quarentena, porque o álcool compromete o sistema imunológico. A Organização Mundial da Saúde (OMS) indicou, observando efeitos conhecidos do abuso de álcool, que o excesso de consumo pode causar intoxicação prejudicial à saúde física e mental das pessoas, além de contribuir para desencadear comportamentos de riscos, que poderiam ser exemplificados desde o descuido com as medidas de proteção e de higiene individual recomendadas para evitar contaminações até, em casos extremos, incrementar comportamentos desequilibrados das pessoas agressivas, com risco de gerar violência interpessoal, inclusive, doméstica, sem falar que a intoxicação alcoólica amplia o risco da pessoa vir a ser vítima de agressão.
Quais as recomendações para este momento de pandemia em relação ao abuso de álcool nos lares?
O álcool é substância que não deve ser consumida ou oferecida às crianças e aos adolescentes, tanto que para preservá-los dos seus efeitos, a oferta de álcool para menores é expressamente proibido pela legislação vigente. Nesse momento de isolamento social, é importante que o adulto evite usar álcool, mesmo em quantidade moderada, preservando o pleno funcionamento do seu sistema imunológico, conforme orientação médica mundialmente difundida. Adultos não deveriam usar álcool diante das crianças e adolescentes, mas caso isso, inevitavelmente, ocorra é importante conversar antes com eles explicando que a vedação do consumo de álcool aos menores de 18 anos de idade se funda na ciência e busca preservar dos efeitos do álcool no desenvolvimento do cérebro humano.
Como os grupos anônimos podem ajudar também neste momento?
A oferta de ajuda para quem deseja enfrentar problemas com o álcool é a razão de ser da Irmandade de Alcoólicos Anônimos (A.A.). Essa ajuda é oferecida pelos Grupos de A.A., que acolhem gratuitamente em diversos endereços e horários, promovendo reuniões com a presença daqueles que lidam com o abuso do álcool, empregando a Programação de 12 Passos e conhecendo a literatura de A.A. – também disponível no formato e-book. No momento do necessário isolamento social, a Irmandade de A.A. e seus Grupos realizam reuniões à distância, pelo site aa.org.br. O emprego de ferramentas tecnológicas permitem manter as reuniões e continuar apoiando quem pedir ajuda para se afastar do álcool. A.A. mantém, também, uma Linha de Ajuda disponível durante 24 horas pelo telefone 11-3315.9333.
O que o motiva a trabalhar este tema?
A atividade profissional e a experiência indicam que o comportamento daqueles que praticam diversos crimes comunicados ao sistema de Justiça é influenciado pelo álcool e outras drogas. Nessa situação, é oportuno propor alternativa legal que, além de punir, permita ao infrator refletir sobre sua relação com o álcool e as drogas. Isso requer que juízes, promotores de Justiça e advogados avaliem o caso e proponham ao infrator frequência voluntária por tempo determinado ao serviço de saúde pública para cuidar do abuso de álcool e drogas e/ou participação nas reuniões dos grupos de mútua ajuda. Essa ação, chamada Justiça Terapêutica, se aplica aquele que praticou infração leve punida com pena máxima não superior dois anos e também ao autor de outros delitos de médio potencial, praticados sem violência ou grave ameaça.
Como o OBID pode ajudar neste seu trabalho?
A Justiça Terapêutica pode ser aplicada em muitas localidades do Brasil – boas ações nessa área, há tempos, são realizadas pela Justiça e pelo Ministério Público dos Estados de São Paulo e Goiás, entre outras localidades. É importante tratar desse assunto no portal do OBID (Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas) porque a pessoa abusadora de álcool e drogas que chega ao sistema de Justiça por praticar algum crime leve sem, normalmente, ser necessário impor sua prisão, muitas vezes pede ajuda por não conseguir cuidar sozinha dessa séria situação. Divulgar o tema Justiça Terapêutica no OBID estimulará a articulação entre juízes, promotores de Justiça, advogados, profissionais dos serviços de saúde, de assistência social e membros dos grupos de mútua-ajuda para apoiar o infrator que desejar cuidar do abuso de álcool e drogas.
Mário Sérgio Sobrinho é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi bolsista do Programa Hubert H. Humphrey, com especialização em Tribunais de Drogas e Abuso de Substâncias Químicas (EUA - 2011). Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Professor do curso à distância Justiça Terapêutica, da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Membro da Diretoria de Alcoólicos Anônimos (A.A.) do Brasil (2016-2019) e membro do Conselho da Fundação Porta Aberta (FPA) desde 2015.