21/10/2019
Entrevista com o filósofo
Claudio Jerônimo da Silva
Qual o panorama de uso de maconha no Brasil e no mundo?
A onda de legalização da maconha aumentou o seu consumo no mundo. Os Estados Americanos que legalizaram a droga, registraram aumento da procura por Serviços de Saúde. O escritório das Nações Unidas estima que 192 milhões de pessoas de pessoas em todo o mundo consumiram a droga em 2018. Alguns estudos mostram aumento de 16% em uma década. Outros estudos de seguimento, principalmente com adolescentes, mostram que após os 16 anos, o uso frequente de maconha vem progressivamente aumentando nas últimas três décadas. O último levantamento nacional brasileiro realizado em 2012 mostrou aumento de consumo no último ano de 7%, em relação ao levantamento anterior realizado em 2006.
No Estado do Colorado, por exemplo, após a legalização, contabiliza-se, segundo revista Nature, em 2019, cerca de 100.000 locais de ponto de vendas da droga, o que mostra que há uma indústria de prontidão e já organizada, esperando a oportunidade da legalização. Nesse mesmo Estado, em dois anos, a procura por ajuda em Serviços de Saúde aumentou cerca de 40%. Existem empresas bem estruturadas oferecendo serviços e consultorias para negócio da maconha, desde o seu plantio até marketing digital. Elas oferecem ainda cursos presenciais e online e relatam abertamente em seu site, uma experiência de mais de 30 anos. Sem dúvida, esse panorama soa nada animador e destoa, estranhamente, do movimento social global relacionado ao uso do tabaco, por exemplo, o que mostra que a indústria parece bastante ativa e motivada em construir um cenário social de baixa percepção de risco social. Um tradicional estudo americano denominado monitorando futuro, demostra que a baixa percepção de risco, principalmente entre adolescentes, aumenta posteriormente o consumo.
Quais são as principais doenças associadas ao uso da maconha?
A Síndrome de Dependência em si, representa um grande problema. O Levantamento nacional brasileiro mostrou que 37% das pessoas que usaram maconha no último ano apresentaram sinais e sintomas de dependência. Dados internações apontam que cerca de 9% de todos os usuários se tornam dependentes, mas número é maior se o uso começa na adolescência, subindo para cerca de 17% nesse grupo. O estreitamento do repertório é um dos problemas relacionados à dependência, para citar um. Trata-se de uma diminuição do campo vivencial: a pessoa estreita o seu comportamento em torno do uso, da recuperação do uso e da busca pela droga. Começa a priorizar relações pessoais e sociais que estejam relacionadas ao uso da maconha e deixa de realizar outras atividades. Portanto, a dependência, em si, limita e traz sofrimento. É alto o nível de confiança nas evidências científicas de que o sentimento de “estar realizado na vida” diminui consideravelmente entre os usuários frequentes. Outras doenças mentais, entretanto, estão estreitamente relacionadas ao uso de maconha. Depressão é bastante frequente. Estudos consistentes que seguiram milhares de usuários de maconha apontam que a frequência de depressão é três vezes maior entre usuários de maconha frequentes. Há que citar ainda os efeitos adversos que não se encaixam em nenhuma síndrome, mas estão soberbamente demonstrados na literatura científica, como prejuízos cognitivos agudos, síndrome hiperemese cannabica (vômitos incessantes), sintoma, aliás, que levou ao aumento na procura por Serviços de emergência dos Estados Americanos que legalizaram a droga.
Qual a diferença entre depressão e síndrome amotivacional?
Alguns autores consideram que a síndrome amotivacional é na verdade um tipo de depressão que cursa com apatia (estado de esmaecimento dos sentimentos) e com prejuízo da capacidade realização de tarefas, resultando em diminuição do funcionamento social, acadêmico, profissional e pessoal.
Em que pese a discussão acadêmica sobre o assunto, o fato é que usuários crônicos de maconha apresentam sintomas esses sintomas de apatia com intenso prejuízo de pragmatismo. Uma possível diferença entre depressão e síndrome amotivacional, observada na clínica, é que essa anestesia sentimental e de comportamento não parece incomodar o usuário de maconha tanto quanto incomoda os pacientes deprimidos. Eles parecem se sentir indiferentes aos problemas, apesar dos alertas emitidos pelo seu entorno (amigos, familiares, etc). Todo o entorno social percebe que a pessoa apresenta desempenho aquém das suas potencialidades, mas ele não percebe assim. Adia decisões, não traça e nem cumpre objetivos, não tem planos ou se tem, são vagos e distantes, além de incongruentes com o seu comportamento atual. É preciso salientar, entretanto, que a depressão, em todas as suas formas, é bastante frequente em usuários de maconha e requer atenção, inclusive devido ao risco de suicídio, que chega a ser três vezes maior nesse grupo.
A maconha pode desencadear psicose?
Sem dúvida, há uma associação entre psicose e uso de maconha. A prevalência de psicose entre os usuários de maconha é de 2 a 3 vezes maior. Os estudos demostram que há aumento tanto da esquizofrenia, como da psicose subclínica. A psicose subclínica cursa com sintomas atenuados do surto psicótico clássico. Os sintomas, nesse caso, embora percebidos por familiares e amigos podem ser tomados pela intoxicação ou efeitos agudos da maconha, por exemplo, o que retarda a busca por ajuda, em geral porque o quadro também cursa com prejuízo da crítica e o paciente se recusa a ir ao médico. Os sintomas paranoides atenuados podem ser tomados como sendo um padrão de funcionamento mais desconfiado, por exemplo e o afrouxamento da associação das ideias como uma característica pessoal de arborização do pensamento. Não raramente o tema pode girar em torno da própria maconha, como por exemplo, preconceito social generalizado ou teorias conspiratórias ou filosóficas pouco estruturadas e as vezes sem sentido ou fundamento, sobre efeitos e impacto social do uso da maconha. Além disso, a mortalidade no grupo que desenvolve psicose associada ao uso de maconha também é maior. Chega aumentar em 29% para cada ano de uso de maconha. O início do primeiro surto psicótico também sofre impacto pelo uso de maconha. Estudos apontam que o surto aparece cerca quase 3 anos antes entre os usuários de maconha. O início precoce de sintomas psicose piora o prognóstico.Há ainda uma correlação clínica entre o surto psicótico ou psicose subclínica com a potência do preparado de maconha. Quanto mais potente a droga, ou seja, quanto maior a concentração de THC, maiores as chances de apresentar a doença. Há que se lembrar aqui que os preparados de maconha apresentam cada vez mais concentrações maiores de THC. Hashish por exemplo possui cerca de 40% de THC, mas alguns preparados oleosos utilizados em vaporizadores podem chegar a 100%.
Existe algum teste para detectar quem pode desencadear psicose?
Existe um instrumento de rastreamento clínico para psicose subclínica que precisa ser aplicado e interpretado por alguém com conhecimento na área. Ele basicamente avalia se há pensamento persecutório, percepções ou emoções distorcidas ou que causam estranheza a si ou aos outros.
Mas este instrumento não faz o diagnóstico. Não existe nenhum marcador biológico, tampouco, de forma que o diagnóstico é clínico.
Qual o padrão de uso da maconha que levaria a desenvolver transtornos mentais associados?
Não existe um ponto de corte no padrão de uso, que sinalize claramente que a partir daí o risco para doenças mentais aparece. Os problemas relacionados ao uso de maconha, aliás, pode aparecer inclusive em usuários eventuais, dependendo da quantidade usada e da tarefa a ser realizada. Por exemplo, dirigir sob efeito de maconha pode levar a um acidente por desatenção e comprometimento dos reflexos. Entretanto, o que podemos afirmar com base em evidências, é que o início do uso precoce, a potência da droga (concentração de THC) e a frequência do consumo estão mais frequentemente associados aos problemas crônicos entre eles as doenças mentais. As pesquisas atuais têm descrito uso frequente como sendo seis ou mais uso no último mês.
No diagnóstico dual, o tratamento da depressão, por exemplo, implicaria necessariamente na abstinência da maconha?
As doenças mentais associadas ao uso de maconha devem ser tratadas conjuntamente. A dependência química é uma doença mental e desconsidera- lá no tratamento, compromete o resultado. Na maior parte dos casos, as comorbidades psiquiátricas associadas ao uso de maconha decorrem do uso, ou seja, mesmo que a pessoa tenha outros fatores predisponentes para desenvolver depressão, por exemplo, o uso de maconha mais frequentemente precede o início do quadro, o que faz supor que ele representa um importante fator desencadeante. Alguns fatores predisponentes das doenças mentais não são evitáveis, como por exemplo, fator genético. O uso de droga é um fator evitável e, portanto, devemos centrar esforços na obtenção da abstinência, sempre. A abstinência, certamente não é uma condição para que a pessoa se trate, mas uma meta a ser perseguida, monitorada, caso contrário o risco de insucesso no tratamento da depressão, por exemplo, é altíssimo.
O que o motiva trabalhar com este tema?
Estudar e entender o comportamento humano e sua relação com as emoções é algo que me motiva, particularmente. Nesse sentido, as doenças mentais e suas consequências é um campo de estudo amplo que carece de estudo e compreensão. Os Transtornos pelo uso de maconha encaixam-se nessas características. E de nada adiantaria qualquer conhecimento e entendimento se estes não estiverem a serviço ao nosso serviço. Portanto, poder oferecer ajuda e trocar ajuda são os motivos maiores, porque quando ajudamos alguém estamos ajudando a nós mesmo, também.
O que representa o OBID para seu trabalho?
Os Observatórios no mundo todo são uma ferramenta importante para vigilância, fornecimento de dados para políticas públicas e monitoramento de resultados dessas políticas. O OBID precisa ser compreendido, por toda sociedade, incluindo setores políticos e acadêmicos, sob essas perspectivas.
Claudio Jerônimo da Silva é psiquiatra, graduado em Medicina Humana pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; Residência Médica em psiquiatria pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho; Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo; MBA em Gestão de Saúde pelo Instituto de Ensino e Pesquisa Insper. Atualmente é professor afiliado no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)