6/9/2019
Entrevista com a médica
Ana Cecilia Petta Roselli Marques
1.Como se explica o aumento do consumo de álcool entre as mulheres hoje?
Historicamente, problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas são mais comuns em homens que, até hoje, apresentam maior taxa de abuso, dependência e consequências. A partir da 2ª Guerra Mundial, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e em profissões antes restritas aos homens, hábitos masculinos passaram a ser replicados por elas, entre os quais a iniciação precoce do uso de substâncias. Durante muito tempo desprotegidas pela falta de uma política integral, equânime e justa, composta de medidas preventivas focadas nas vulnerabilidades femininas, elas ficam expostas a muitos fatores de risco. Um exemplo são às campanhas de marketing das indústrias de bebidas, que compreendem desde produtos criados para públicos específicos até propagandas desenhadas para vender o produto para as mulheres.
2. O Transtorno por Uso de Substâncias (TUS) funciona da mesma forma para homens e mulheres?
Não. Grandes diferenças são identificadas entre homens e mulheres quanto ao uso de álcool e às respostas biológicas. A mulher tem menos água corporal comparada ao homem, o que faz com que o álcool e outras substâncias fiquem mais concentrados e ela mais intoxicada. É observado o adoecimento em um menor intervalo de tempo, entre 12 e 15 anos de consumo crônico, e com gravidade maior. Já os homens levam um período maior, entre 17 e 20 anos. Além disso, as mulheres têm taxa de mortalidade de 50% a 100% maior que a dos homens.
A farmacocinética do álcool é também responsável por algumas diferenças clínicas encontradas entre os gêneros. A mucosa gástrica está envolvida na primeira passagem do álcool para o sangue, por meio da enzima álcool desidrogenase, na forma de acetaldeído. Este metabólito tóxico em grandes quantidades aumenta o risco de lesões, principalmente as cardíacas. A atividade da enzima álcool desidrogenase no fígado é menor em mulheres do que em homens, fazendo com que elas permaneçam com nível sérico elevado de álcool por maior tempo, levando a um aumento da concentração de álcool na corrente sanguínea, o que significa um maior impacto nos diferentes sistemas. (referência 8 – 15)
3. E quais as consequências mais frequentes da dependência de álcool nas mulheres?
Esteatose, Cirrose Alcoólica, Polineuropatia Periférica, Miocardiopatia Alcoólica, Hipertensão Arterial, disfunções circulatórias e menstruais podem ocorrer com poucos anos de abuso. Para aquelas que bebem diariamente, a chance de desenvolver câncer de mama é 41% maior do que naquelas que não bebem.
Variações na organização do cérebro das mulheres, particularmente a ação das neuroesteróides, também incidem na vulnerabilidade delas ao etanol. O sistema de recompensa cerebral, onde se desenvolve a dependência, é influenciado por hormônios e seus fatores liberadores, como o estrogênio, que é um neuroregenerador e melhora a cognição. Diferentemente dos homens, o uso moderado de álcool pelas mulheres em período curto de tempo afeta a cognição, conforme mostram estudos recentes.
As mulheres têm menor nível de dopamina, principal neurotransmissor liberado com o uso de substâncias, o que as tornam mais propensas às complicações psiquiátricas. A comorbidade mais prevalente entre dependentes de álcool é a dependência de nicotina: 80 a 90 % dos dependentes de álcool também o são de nicotina, e as mulheres fumantes apresentam 6 vezes mais chances de apresentar dependência de álcool, enquanto os homens têm 3 vezes mais chances.
Mulheres dependentes têm risco aumentado de apresentarem algum outro transtorno psiquiátrico (65% contra 44% dos homens), como depressão (quatro vezes), ansiedade (três vezes), bulimia e dependência de outras drogas. Além disso, elas usam mais medicamentos psicoativos e apresentam maior número de problemas relacionado à família. O Transtorno por Uso de Álcool também é prevalente entre aqueles com Transtorno de Humor Bipolar, sendo uma a cada três, com duas vezes mais chance de tentarem o suicídio. (referência 16 – 27)
4. Por que as mulheres demoram a procurar tratamento para a dependência?
O estigma existente até hoje sobre mulheres usuárias é grande, o que dificulta sua própria aceitação do problema, além da família e a da comunidade. Imersa no mesmo preconceito, a equipe de saúde não pergunta sobre o comportamento ou sobre os problemas relacionados nos diferentes níveis de atenção à saúde da mulher. Falta treinamento especializado sobre detecção precoce de doenças não transmissíveis, área na qual o tema deveria estar incluído há décadas. As medidas preventivas e de controle da oferta voltadas à mulher que usa o álcool não estão desenvolvidas, o que aumenta sua vulnerabilidade. A mulher tem uma sobrecarga psicossocial e a Política Nacional de Drogas está nos seus primórdios.
5. O que dificulta o tratamento das mulheres dependentes?
A maior parte dos tratamentos na área tem sido desenvolvidos para os homens, e não ter acesso a um tratamento que inclua especificidades voltadas ao gênero é uma das barreiras. Outros aspectos são o estigma social; a equipe de saúde sem treinamento; a prole; a alta prevalência de transtornos psiquiátricos em mulheres dependentes; a gravidade dos diferentes transtornos, como por exemplo, nas tentativas de suicídio, mais comportamentos sexuais de risco em mulheres dependentes; como forma de controlar o peso; uso de álcool/drogas na família; abuso sexual e/ou físico, lugar seguro para morar ou realizar tratamento que inclua os filhos; não tem família para participar do tratamento, ser solteiras e por sobrecarga psicossocial (trabalho e filhos) não conseguem aderir ao tratamento, ser gestação e não ser abordada; grupos mistos dificultam a adesão; o tipo de substância, a faixa etária, a escolaridade.
6. O que é a Síndrome Alcoólica Fetal e como é tratada?
Desordens no neurodesenvolvimento decorrentes do uso de álcool durante a gestação (ARND) são alterações físicas, funcionais ou cognitivas, isoladas ou combinadas, que podem persistir por toda a vida. A prevalência de ARND é estimada entre uma e sete crianças nascidas vivas em cada 100 nascimentos (1% a 7%, dependendo do país estudado e do grau de avaliação). E também a mais grave de todas, a Síndrome Alcoólica Fetal (SAF), que gira em torno de 1%, entre 0,5 e 2 casos em cada 1.000 nascidos vivos. As características clínicas da SAF são: deficiência no desenvolvimento pré e pós-natal, déficit intelectual, na atenção, na linguagem verbal, na função executiva, na habilidade visuoespacial, na aprendizagem e memória são algumas das alterações encontradas.
Têm dificuldades em solucionar problemas, conflitos com a justiça e risco de abuso de álcool e de outras drogas, hiperatividade, dificuldades de adaptação e de comportamento, microcefalia, déficit no desenvolvimento neurológico, disfunção no desenvolvimento motor fino, fissura palpebral pequena, lábio superior fino e longo, hipoplasia maxilar, fenda palatina, anormalidades de joelho, alterações das dobras palmares e defeitos cardíacos. É preciso o relato de exposição ao álcool na gravidez, associado à presença de pelo menos quatro das características acima para o diagnóstico. (referência 28 – 39)
7. As mulheres alcoolizadas sofrem mais violência?
Sim. Estudo realizado no Brasil e publicado em 2010 mostrou que as mulheres alcoolizadas apresentaram maior envolvimento em violência entre parceiros, tanto como agressoras quanto como vítimas. O tipo de violência mais frequente foi a agressão mútua. Além disso, as mulheres consomem menos álcool que os homens durante os episódios de violência. Para as mulheres que bebem, fazer trabalho doméstico protege da violência. (referência 40 – 41)
8. O que a motiva a trabalhar com este tema?
No início de minha carreira como médica generalista uma evidência me colocou diante do tema: às segundas-feiras, 20% dos pacientes que eu havia atendido na semana anterior voltavam com as mesmas queixas. Convidei familiares dos pacientes para algumas reuniões com o objetivo de obter mais informações sobre hábitos e comportamentos de cada um. Conclui que aquela amostra recidivava seus transtornos. Eles haviam abusado de diferentes substâncias nos finais de semana, como se fosse um produto qualquer. Sem a formação necessária e suficiente para manejar o tema busquei a especialização por meio de um curso de Saúde Pública e outro de Psiquiatria. Pós graduei em Neurociências e, hoje, pesquiso sobre fatores de risco da Infância, preditores de transtorno por uso de substâncias na Adolescência.
9. Como o OBID pode contribuir para seu trabalho?
Publicando, mensalmente, uma síntese das evidências científicas internacionais e nacionais sobre todos os temas relacionados ao uso de substâncias, e entrevistando pesquisadores estrangeiros e brasileiros sobre políticas de drogas modernas.
Referências bibliográficas utilizadas nesta entrevista pela médica Ana Cecilia Petta Roselli Marques
Ana Cecilia Petta Roselli Marques é médica, doutora em Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos. do Álcool e outras Drogas (ABEAD) e do Comitê de Transtornos Relacionados a Substâncias da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)