Entrevista com a psiquiatra e escritora
Alessandra Diehl
Quando esse modelo das Comunidades Terapêuticas chegou ao Brasil?
A primeira comunidade terapêutica fundada foi a Fazenda do Senhor Jesus, em 1978, na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, através do trabalho multidisciplinar realizado pelo religioso americano padre Haroldo Rahm. No Brasil, o início da atuação das comunidades teve como influência a reforma psiquiátrica, a exemplo de outros países. Neste momento, a dependência de álcool e outras drogas crescia exponencialmente no país. A ausência de políticas públicas para ajudar a controlar esse problema incentivou a proliferação de locais para internamento de dependentes químicos, mas que pouco se assemelham ao modelo proposto inicialmente, bem como às comunidades atuais. Esses ambientes ofereciam práticas desumanas e iatrogênicas, que justamente eram criticadas pela reforma psiquiátrica.
Qual a importância das Comunidades para o tratamento dos dependentes químicos?
As comunidades terapêuticas são ambientes de resgate de autoestima, dignidade, amor próprio, ajuda ao próximo e proporcionam uma visão mais realista sobre si e sobre sua própria família. O objetivo específico é tratar o transtorno individual, mas com o propósito mais amplo de transformar estilos de vida, com busca da honestidade pessoal e resgates de projetos de vidas pessoais esquecidos e perdidos. A comunidade terapêutica como método social é destinada a ajudar os indivíduos num compromisso absoluto com a mudança de si mesmo. Vale ressaltar que, até bem pouco tempo, elas sobreviveram com poucos ou nenhum investimento público. No entanto, com o novo programa do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), há um grande investimento nas comunidades terapêuticas e parcerias por parte do poder público, proporcionado melhorias nesses ambientes, que favorecem o tratamento.
Qual é a metodologia aplicada nas Comunidades Terapêuticas para melhorar a autoestima e a
motivação dos pacientes para abandonar a dependência?
Não existe uma metodologia única porque cada indivíduo vai ter necessidades diferentes mediante ao quadro clínico e da evolução de sua doença naquele momento de vida. Geralmente, as práticas nas comunidades terapêuticas incluem abordagem da espiritualidade e suporte social de pares, que são os pilares principais do tratamento. Muitas comunidades terapêuticas oferecem uma sofisticada abordagem de tratamento, caracterizada pela variedade de recursos terapêuticos oferecidos e pela diversidade da demanda dos indivíduos atendidos. Por isso, assim como qualquer outro serviço e equipamento de saúde, necessita do desenvolvimento constante de pesquisas e capacitação dos profissionais para oferecer aos pacientes e seus familiares um atendimento com respeito e profissionalismo, contribuindo para uma mudança verdadeira de estilos de vida.
As comunidades terapêuticas podem ser comparadas com manicômios?
Uma das mais importantes mudanças na nova Política Nacional sobre Álcool e Drogas (PNAD), lançada em abril de 2019, foi à redefinição e inclusão de serviços e dispositivos de saúde que passaram a integrar a chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Com essa medida também ressurgiu um antigo, desinformado e, por que não dizer, mal-intencionado debate de que as comunidades terapêuticas são um retorno aos manicômios, lugares de reclusão, ou ainda que são propostas higienistas. É preciso desmistificar esse conceito equivocado sobre um equipamento que merece nosso olhar respeitoso e atento para que haja melhoria dos serviços prestados há muitos anos por eles em diversos locais do mundo. Estão longe de serem locais “manicomiais” e muitas delas prestam um valioso trabalho no resgate de vidas e histórias de sucesso.
As comunidades terapêuticas são regulamentadas pela legislação no Brasil?
Sim. As comunidades terapêuticas são regulamentadas pela RDC 101/01 e pela RDC 29/11 da ANVISA. No Brasil, considera-se que as comunidades terapêuticas financiadas pelo plano nacional sigam o rigor de suas normativas, fiscalizações e aprimoramentos adequados. O fato de que elas foram incluídas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) não significa que todos os pacientes devem se tratar utilizando essa modalidade, mas sim que ela será mais uma das possibilidades existentes, o que é muito louvável. Destaca-se a importância da fiscalização para que funcionem de acordo com os Direitos Humanos e com as normas técnicas promulgadas, as quais incluem a presença de equipe multidisciplinar, a possibilidade de uso de medicação e o fato de ser um tratamento predominantemente voluntário.
Qual a duração do tratamento nas Comunidades Terapêuticas?
Em geral, aqueles pacientes que permanecem por mais tempo nas comunidades terapêuticas têm resultados significativamente melhores do que as pessoas que abandonaram precocemente.
O movimento de recuperação começa com uma abordagem longitudinal da dependência e outros problemas de saúde mental, mas poucos estudos controlados avaliaram os resultados desses centros além de um período de acompanhamento de dois anos. Pesquisas sugerem que, apesar de um efeito desvanecedor do tratamento da comunidade terapêutica ao longo do tempo, as taxas de reincidência continuaram a ser significativamente melhores do que aquelas dos controles em três estudos das comunidades.
Quais são os desafios que ainda precisam ser enfrentados no Brasil quando o assunto são as comunidades terapêuticas?
Temos poucas comunidades terapêuticas voltadas para o público feminino e suas crianças, além das gestantes. Existe uma carência de serviço muito grande no Brasil, que privilegia a estadia de mães e filhos, com intervenções inclusive para as crianças. A separação de mães e filhos é uma das barreiras no tratamento de dependência entre o público feminino, porque elas não querem deixar seus filhos durante a internação. Nos Estados Unidos, no estado da Califórnia, temos uma comunidade batizada de Pueblo del Mar Family Recovery Community, que é uma referência para comunidades direcionadas para a mulher. Lá, mães e crianças permanecem juntos durante o tratamento. Quem está passando pela dependência fica internado e os outros membros da família vão trabalhar em outro lugar.
O que a motiva a trabalhar com este tema?
Eu fico motivada com a ampla possibilidade de expansão de pesquisa, ensino e clínica que as comunidades terapêuticas no Brasil podem oferecer. Estes são campos que podem ser ampliados no nosso contexto, oferecendo possibilidades de estágios para alunos de diversas graduações como também a oportunidade de ampliar e explorar em maior profundidade o nosso conhecimento a cerca do método, das interações humanas, do processo de recuperação e muito mais.
O que representa o OBID para seu trabalho?
A plataforma OBID é mais uma ferramenta para profissionais e alunos de graduação e pós-graduação de acesso a informações de qualidade, facilitando a compilação de informações e gerando mais saberes.
Alessandra Diehl é psiquiatra, educadora sexual, escritora, especialista em Dependência Química e Sexualidade Humana. Atual vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead). Mestre e doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pós- doutoranda da Universidade de São Paulo (USP), Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP).