29/11/2019
Entrevista com o psiquiatra
Marco Antonio Bessa
As drogas acompanham a humanidade desde os seus primórdios – este argumento é suficiente para explicar o fato de algumas pessoas acreditarem que não se pode viver sem drogas?
O argumento de que todas as sociedades utilizaram e utilizam drogas é muito frequente ao se falar sobre esse assunto. No entanto, existem práticas comuns em todas as sociedades que gostaríamos que desaparecessem ou, pelo menos, fossem reduzidas o máximo possível. Por exemplo, todas as sociedades conviveram e convivem com diferentes costumes aceitos ou tolerados – como a mutilação genital, violência contra a mulher, escravidão, execuções públicas, etc. Nem por isso concordamos com esta tolerância nos tempos atuais. Do meu ponto de vista, a simples existência desses fatos não valida que permaneçam sendo praticados, respeitando toda a diversidade cultural que possa existir.
Os índios brasileiros consumiam uma bebida alcoólica derivada da fermentação da mandioca – como era este consumo?
As descrições históricas do uso de bebidas alcoólicas pelos nativos brasileiros mostram que era um hábito bastante sofisticado. Gosto de chamar a atenção para o fato de que o consumo era, quase exclusivamente, durante as celebrações sociais ou religiosas. Fazia parte de rituais, com um sentido coletivo. Havia uma produção exclusiva pelas mulheres e um consumo onde todos participavam. O consumo individual, solitário praticamente não é descrito. O indivíduo solitário, a beber (ou consumir qualquer outra substância) sem nenhuma companhia e sem uma razão social forte, não existia naquelas culturas. Quer dizer o cauim, a bebida alcoólica, não era uma mercadoria que podia ser comercializada. A produção e o uso eram sociais e ocorriam ocasionalmente.
Como se explica a passagem do consumo individual ou coletivo destinado ao desempenho de uma função social para o atual consumo?
Entendo que uma das condições que fizeram com que as bebidas e outras substâncias passassem a ser um problema de saúde pública seja a transformação dessas substâncias em mercadoria, passando a ter valor comercial. O cauim era produzido pelas mulheres e depois consumido por todos nas comemorações. Não havia festa de poucas pessoas separadas da tribo. Não havia bares ou produtores e distribuidores individuais das bebidas. Ou seja, a figura do traficante era impossível naquelas sociedades. Esse fenômeno só atingirá escala no mercantilismo com a venda das especiarias, e mais tarde com a revolução industrial que permitirá a produção das bebidas em grande escala.
Qual o impacto da maconha na saúde de adolescentes?
O principal aspecto é que nosso cérebro se desenvolve de modo lento. O amadurecimento completo do córtex pré-frontal que é a última área do sistema nervoso central a se desenvolver ocorre em torno dos vinte e cinco anos. O consumo de qualquer outra droga, interferirá nesse processo, provocando um aumento do risco do adolescente se tornar dependente da substância.
No caso da maconha, provocará, no curto prazo, prejuízos à memória levando à dificuldade para o aprendizado e retenção de informações; em altas doses, aumentará o risco de paranoia e psicose. A longo prazo, entre aqueles adolescentes consumidores frequentes da maconha, pode haver prejuízos cognitivos com diminuição do QI, abandono da escola e risco de desenvolver esquizofrenia.
Qual o impacto do uso da maconha na família de dependentes de maconha?
O impacto vai depender da estrutura de cada família. As famílias mais saudáveis que prestam atenção nos adolescentes e os apoiam manterão uma boa comunicação e ajudarão o adolescente a entender os riscos do uso de drogas, o ajudarão a enfrentar a pressão social para o consumo e a criticar as falsas informações que estimulam o consumo, protegendo-o dos maiores riscos. As famílias mais disfuncionais podem nem perceber que o adolescente consome a maconha ou até incentiva o consumo. Muitas vezes, só perceberão quando os problemas mais graves já estiverem instalados como a dependência da droga, os problemas de saúde, abandono da escola, envolvimento com o tráfico, etc.
Que tipo de percepção tem um jovem ao se deparar com o termo maconha medicinal?
A estratégia para a legalização das drogas e da maconha inicialmente é muito inteligente e bem feita. Um dos primeiros pontos é tornar a maconha uma mercadoria simpática, com atributos positivos e agradáveis. Por isso iniciar-se com a ideia que a maconha é medicinal, ou seja não faz mal, ou os efeitos colaterais não são tão graves. Quem pode ser contra uma droga que “cura” ou melhora convulsões de crianças, ou “melhora” o sofrimento de pessoas com câncer, etc. O impacto nos adolescentes é o discurso pré-fabricado e enganoso: a maconha é natural, por isso não faz mal, tem só propriedades curativas e além do mais é associada a um comportamento de diversão, de integração com os amigos, etc.
O suposto pagamento de impostos da comercialização de drogas pagaria os custos dos danos causados?
Os estudos internacionais sobre o tabaco e as bebidas alcoólicas demonstram que o valor arrecadado com a vendas dessas mercadorias não cobre os gastos em saúde pública provocados pelo consumo delas. Para exemplificar, apenas com o tabaco: os custos financeiros nos EUA, por ano com o álcool são de 249 bilhões de dólares e com o tabaco 300 bilhões, e com outras drogas (inclusive maconha) 190 bilhões. No Brasil, segundo dados do INCA de 2017, os custos com o tabaco são de R$ 56,9 bilhões, sendo que R$ 39, 4 bilhões são gastos com despesas médicas e 17,5 bilhões por perda de produtividade. São arrecadados R$ 12,9 bilhões em impostos. O saldo negativo é de R$ 44 bilhões por ano. Isso sabendo que o cigarro é taxado em torno de 75% em preço. Mesmo assim a conta não fecha, o prejuízo é enorme. Nada indica que com a maconha ou outras drogas o resultado seria diferente.
O que o motiva a trabalhar com este tema?
Os pacientes são pessoas com histórias de vida muito rica e sofrida. Muitas vezes ainda sofrem com um forte estigma e preconceito e as famílias também.O assunto é muito desafiador envolvendo múltiplos pontos de vista: o das neurociências, da Psiquiatria, da saúde pública, da antropologia, história, etc. Ou seja, alia histórias pessoais e familiares ricas e sofridas com desafios intelectuais permanentes. A dependência química é um fator presente na prática da psiquiatria e para os médicos que optam por esta especialidade trabalhar com este tema é uma forma de cumprir sua função social.
Como o Obid pode contribuir para seu trabalho?
O Observatório é uma rica fonte de informações e experiências. É uma rede de apoio que oferece um contraponto necessário à disseminação de informações contaminadas por interesses comerciais. São dados apresentados por pessoas que trabalham na área, pesquisam, estudam e oferecem relatos objetivos, voltados ao bem-estar dos pacientes e suas famílias.
Marco Antonio Bessa é psiquiatra, especialista em dependências químicas e Psiquiatria da Infância e Adolescência, doutor pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, professor e Chefe do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal do Paraná, chefe do ambulatório de Dependências Químicas e comportamentais da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas da UFPR e Conselheiro do CRM-PR