23/02/2021
Entrevista com a Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP),
Sylvia Van Enck Meira
Como o uso desmedido dos recursos tecnológicos pode se tornar um problema de saúde?
Do ponto de vista clínico, considera-se Dependência de Tecnologia (do inglês “technological addiction”) quando o indivíduo não consegue controlar o próprio uso da Internet/jogos/smartphones, ocasionando sofrimento intenso e/ou prejuízo significativo em diversas áreas da vida.
Que faixas etárias estão relacionadas ao uso nocivo e à dependência de “jogos on-line”?
Observamos que as demandas pelo uso excessivo de tecnologia abrangem, primordialmente, a faixa etária entre 13 e 24 anos, com uma incidência maior entre pessoas do sexo masculino. Segundo pesquisa realizada em 2019 pela TIC Kids Online Brasil, 89% da população entre 9 e 17 anos faziam uso abusivo da tecnologia, especialmente jogos on-line e redes sociais.
Quais critérios caracterizam a dependência de internet?
A Dependência Tecnológica, segundo Kimberly Young (2011), envolve oito critérios diagnósticos, a saber:
- preocupação excessiva com a Internet;
- necessidade de aumentar o tempo gasto on-line para alcançar a mesma satisfação;
- esforços repetidos para diminuir o tempo de uso da Internet;
- irritabilidade, depressão ou instabilidade de humor quando o uso da Internet está limitado;
- permanecer mais tempo on-line do que o programado;
- colocar o relacionamento ou o trabalho em risco pelo uso da Internet;
- mentir para os outros sobre o tempo gasto na rede;
- usar a Internet para escapar de problemas ou regular o humor.
Para que a pessoa seja considerada dependente desta tecnologia, é necessário que preencha os cinco primeiros critérios e pelo menos um dos demais.
Como as famílias lidam com esta dinâmica?
É importante considerar que a dependência de internet não acontece da noite para o dia. O encantamento pela tecnologia inicia gradualmente, sendo, muitas vezes, incentivado pela própria família que, admirada com as habilidades que o filho desenvolve rapidamente, passa a fornecer recursos cada vez mais sofisticados sob a justificativa de incentivar seu desenvolvimento. Gradualmente, os pais encontram dificuldades para estabelecer e manter limites em relação ao tempo de uso, especialmente junto aos adolescentes e, quando o fazem, muitas vezes entram em conflito com os filhos. Outro aspecto a considerar é a falta do diálogo entre os membros do núcleo familiar, bem como o modelo educacional apresentado pelos pais que também fazem uso desmedido da tecnologia em seus momentos de lazer, favorecendo o distanciamento dos filhos.
As famílias que convivem com um dependente de internet também adoecem? Como tratá-las?
Diante do cenário em que muitos filhos abandonam a vida acadêmica, suas atividades de rotina, comprometendo a saúde física e emocional, as famílias costumam se apresentar angustiadas, impotentes, desrespeitadas e culpadas. Muitos pais apresentam quadros ligados à depressão, ansiedade generalizada e uma tendência a recorrer ao uso de álcool. Os objetivos dos trabalhos desenvolvidos com os familiares em grupo no Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP são:
a) fornecer o acolhimento aos pais e familiares para que possam trocar experiências e ter um espaço para reflexão sobre temas que emergem do próprio grupo, relativamente à comunicação entre pais e filhos, expectativas, estabelecimento de limites, crenças, valores...
b) ampliar as possibilidades de resolução dos problemas enfrentados pelos pais no cotidiano com seus filhos e fornecer recursos para a aceitação destes a uma ajuda profissional, se necessária.
Quais os impactos do uso de álcool e outras drogas aliados na atual pandemia da Covid-19?
A chegada e a longa crise gerada pela pandemia da Covid-19 implicaram numa série de restrições às quais as pessoas tiveram que se adaptar. Aspectos como mudanças súbitas nos hábitos, insegurança em relação à economia e, sobretudo, a possibilidade de contaminação e óbitos pelo coronavírus ainda geram muita angústia, ansiedade e depressão, especialmente naqueles que já tinham alguma predisposição a estes transtornos. O confinamento vivido em ambientes familiares hostis reforça a problemática das interações dificultando a convivência, e as pessoas que antes já faziam uso de álcool e/ou drogas, ou mesmo aqueles usuários ocasionais, nesta fase crítica, podem buscar com mais frequência estas saídas como forma de escapismo e alívio emocional das situações estressantes.
O mecanismo de adição às drogas é o mesmo de adição à Internet, com a diferença que no segundo não há o incremento das substancias químicas, é comportamental. Mas cada um deles, se somados, contribuem para um padrão de comportamento de uso não controlado de álcool, drogas e Internet.
O que a motiva a trabalhar com este tema?
O interesse inicial ao integrar a equipe coordenada pelo Dr. Cristiano Nabuco de Abreu foi estudar esta temática que, em 2006, já apresentava um cenário com demandas vindas de pacientes e seus familiares. Pudemos constatar ao longo destes anos a seriedade do transtorno ligado ao uso problemático da mídia interativa, seu comprometimento nas dinâmicas familiares e no desenvolvimento físico, social, afetivo e cognitivo de crianças e jovens. Na medida em que nosso olhar pôde ser ampliado, refletindo sistemicamente sobre o papel dos pais e paralelamente a postura dos filhos perante o uso da tecnologia, através do programa que envolve atendimento psicológico grupal (grupos de pais/familiares e grupos dos filhos), tem sido possível contribuir na direção da construção de relações coerentes e empáticas entre os membros de uma família. Outra motivação para a permanência neste projeto é a atuação preventiva junto à sociedade com seminários, palestras e contribuições midiáticas.
Como o OBID pode contribuir seu trabalho?
As iniciativas empreendidas pelo OBID podem contribuir para a conscientização da população acerca dos riscos do uso não controlado das mídias interativas, através de palestras, seminários e divulgação de publicações científicas que orientem pais, crianças e adolescentes sobre o uso adequado da Internet.
Sylvia Van Enck Meira é psicóloga clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC-SP), mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Terapia Familiar e de Casal pela PUC-SP, terapeuta comunitária pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atua em consultório particular. Co-autora de artigos científicos e capítulos de livros sobre Dependências Tecnológicas e Terapia Familiar. Palestrante em instituições de ensino, associações e entrevistas na mídia impressa, digital e televisiva. Profissional do Grupo de Dependências Tecnológicas do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PROAMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, desde 2007.