28/09/2020
Entrevista com a médica psiquiatra,
Renata Nayara da Silva Figueiredo
Por que a doença mental ainda é considerada um tabu?
O preconceito frente aos temas de saúde mental é frequente e pode ser tão prejudicial quanto os próprios transtornos mentais, já que impõe uma grande barreira ao tratamento e à recuperação dos pacientes.
Por muitos anos, a mídia retratou as doenças mentais de maneira negativa, mostrando situações graves de forma distorcidas ou até cômicas, e os tratamentos psiquiátricos normalmente eram punições por comportamentos ruins. Isso com certeza contribuiu para tornar o estigma social ainda maior.
A desinformação sobre as doenças mentais e a discriminação dos enfermos agravam o problema. Crenças de que pessoas com transtornos mentais graves são violentas ou irresponsáveis, e por isso devem ser mantidas fora da sociedade ou cuidadas como crianças intensificam o tabu.
Depressão tem alguma relação com força de vontade?
A depressão é uma doença como qualquer outra, da mesma maneira que não se escolhe ter câncer, diabetes ou hipertensão, não se escolhe ter depressão. A doença tem origem multifatorial, causada pela interação de fatores genéticos, biológicos e ambientais. Associar a doença com falta de “força de vontade” ou com “fraqueza de caráter” é negar a ciência, com consequências graves, desde cronificação do quadro depressivo até risco de suicídio.
Dependência química é vício ou doença?
Usar a palavra vício para referir a dependência química traz a ideia de que esse comportamento é um erro ou defeito, o que não é verdade. Atualmente evitamos até a palavra “alcoólatra”, pois pela etiologia dá ideia de adoração.
A dependência química está classificada entre os transtornos psiquiátricos, tanto pela Classificação Internacional de Doenças – CID quanto pelo Manual de Diagnóstico e Estatística – DSM. É considerada uma doença crônica, que causa progressiva mudança no comportamento, na cognição, no humor, nas relações sociais e familiares, dentre outras alterações. É uma doença crônica e grave, mas passível de tratamento.
Quais transtornos mentais são mais prevalentes no mundo?
Estima-se que 4,4% da população global sofre de transtorno depressivo e 3,6% de transtorno de ansiedade, sendo a associação de ambos – comorbidade - muito frequente.
A depressão é sem dúvida o transtorno mental mais prevalente em todo o mundo. De acordo com a OMS, 300 milhões de pessoas, de todas as idades, padecem com esse transtorno, sendo a principal causa de incapacidade e contribui de forma importante para a carga global de doenças.
Quais transtornos mentais são mais prevalentes no Brasil?
Problemas de saúde mental são muito comuns e geralmente estão relacionados à ansiedade e à depressão
Segundo a OMS, a depressão atinge 5,8% da população brasileira. Já distúrbios relacionados à ansiedade afetam 9,3% das pessoas que vivem no Brasil, sendo o país com maior prevalência de transtornos ansiosos do mundo.
Quais comorbidades psiquiátricas estão mais associadas à dependência química?
As dependências químicas são altamente comorbidas com outros transtornos psiquiátricos, sendo imprescindível a identificação de todos os transtornos coexistentes para melhor abordagem e evolução da doença. Todavia o diagnóstico pode ser desafiador, porque os transtornos psiquiátricos compartilham muitos sintomas. Os transtornos mais comuns em dependentes químicos são: depressão, transtornos de ansiedade, transtorno bipolar e transtornos de déficit de atenção e hiperatividade.
Qual é o índice de suicídio entre dependentes químicos no Brasil?
O índice de suicídio é sempre subestimado, devido a subnotificação dos casos. Nessa população especificamente é ainda mais, uma vez que os “acidentes” também são mais frequentes. Estima-se que os dependentes de álcool têm 60 a 120 vezes mais probabilidade de tentar o suicídio em comparação com a população geral. Além disso, estudos demonstram que 85 em cada 100 indivíduos que se suicidaram apresentavam depressão e/ou alcoolismo comórbidos.
O que motiva a trabalhar com esse tema?
A psiquiatria talvez seja o campo da medicina que mais sofre preconceito e dentro dessa área o tratamento dos dependentes químicos é, sem dúvida, o mais estigmatizado. Durante minha formação, percebi que muitos profissionais não gostam de lidar com esse tema, e muitos pacientes já tinham procurado vários outros profissionais até chegar ao tratamento. Essa dificuldade para encontrar ajuda não só atrapalha o diagnóstico, como também atrasa o tratamento, podendo causar graves consequências físicas, mentais e sociais. A possibilidade de ajudar os mais vulneráveis me motiva diariamente.
Como o OBID pode ajudar neste tema de seu trabalho?
O OBID tem grande relevância como ferramenta de disseminação do conhecimento sobre as drogas, servindo tanto aos profissionais da área como repositório fidedigno de dados e informações científicas, bem como para a sociedade em geral, com disponibilização de pesquisas, indicadores, estatísticas, dentre outros elementos informativos. Além disso, como estrutura de gestão e centralização do conhecimento, deve ser utilizado como orientador na formulação e implementação de políticas públicas sobre a temática do uso de drogas, que se qualifica como grave problema de saúde pública, que reverbera em todos os demais segmentos da sociedade.
Renata Nayara da Silva Figueiredo é médica psiquiatra, psiquiatra titular da Associação Brasileira de Psiquiatria ABP/AMB, residente médica em Psiquiatria pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr) e conselheira do Conselho Regional de Medicina CRMDF. Possui especialização em Patologia Dual (Dependência Química) pelo Consorcio Hospitalario Provincial de Castellón, CHPC, Espanha. É membro da Câmara Técnica de psiquiatra do CRMDF, membro da comissão de Urgência e Emergência Psiquiatra, da Comissão de Dependência Química e da Comissão de Processo Ético - disciplinar da ABP e membro da organização da Campanha de Prevenção ao Suicídio "Setembro Amarelo" pela APBr desde 2017.