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Surdolimpíadas: as inspiradoras histórias de dois pioneiros do judô para surdos
O carioca Alexandre Fernandes, de 30 anos, é judoca por "teimosia". Ele sabia bem que a mãe, a auxiliar de produção Andréa Soares de Lima, não curtia muito a ideia do filho praticando um esporte longe de onde moravam. "Eu vi uma pessoa usando quimono e perguntei o que era aquilo. Aí falaram que era judô. Essa pessoa me mostrou uma medalha e fiquei super interessado. Eu tinha 14 anos. Minha mãe não quis que eu praticasse porque era muito longe de casa. Ela dizia que ia complicar meus estudos", lembra o atleta.
Resignado, mas nem tanto, Alexandre seguiu apostando na natação e nas atuações como goleiro e volante no futebol de campo. Aos 16 anos, contudo, permitiu-se uma transgressão que mudaria sua trajetória e a história do movimento dos surdoatletas no Brasil. "Fui escondido treinar. Fiz a inscrição. Comecei a praticar. Lutava contra ouvintes e perdia muito", relata Alexandre. "Confesso que fiquei sabendo muito tempo depois. Eu achava o judô perigoso. Até hoje fico nervosa. Cada tombo que ele leva a gente pensa que machuca, por mais que seja só o barulho do tatame", conta Andrea, que hoje acompanha o filho sempre que pode.
Alexandre tornou-se em 2009 o primeiro atleta brasileiro na história a conquistar uma medalha em Surdolimpíadas Internacionais. O feito foi conquistado em Taiwan, nos Jogos de 2009, na categoria -81kg. Uma façanha improvável, principalmente porque ele tinha menos de quatro anos de prática e ostentava uma faixa verde na cintura. "Todos os outros eram faixa preta. E consegui o terceiro lugar. Foi especial para mim. Foi significante, emocionante. Chorei bastante. E as pessoas falaram: 'Você é o primeiro brasileiro a conseguir essa medalha, esse fato inédito'. Eu não esperava, né?", contou.
Alexandre durante as Surdolimpíadas Brasil 2019. Foto: Abelardo Mendes Jr./rededoesporte.gov.br
Realfabetização
Subir ao pódio do evento internacional foi o sinal definitivo de uma reviravolta. Alexandre teve meningite quando tinha um ano e meio. Ficou um mês internado no hospital, numa área de isolamento. Só a família tinha contato. Quando deu entrada na unidade médica, andava sozinho. Quando recebeu alta, não conseguia caminhar. Foram necessários meses para readquirir mobilidade. E, como os médicos indicaram, era possível que houvesse sequelas. Antes de completar dois anos, havia perdido completamente a audição.
"Eu tinha 18 para 19 anos. Percebemos quando chamávamos e ele não atendia. Uma audiometria confirmou que ele estava 100% surdo. Foi necessário aprender a ajudá-lo. Ele ficou um tempo muito nervoso. Agitado, principalmente porque ele ouvia antes. Precisamos de acompanhamento médico e da ajuda da família", narra Andrea. A Língua Brasileira de Sinais (Libras) passou a fazer parte do alfabeto dos parentes. Os atendimentos de fonoaudiologia e psicologia se alternavam à escola convencional, para ouvintes.
"Foi uma realfabetização para todos. Fico emocionada por ver o processo por que ele passou e hoje estar vivenciando isso tudo. A gente tem de ser forte e dar força", comentou Andrea, na arquibancada de um ginásio em Pará de Minas, cidade a 80 quilômetros de Belo Horizonte, olhando o filho na disputa das Surdolimpíadas Brasil 2019. A competição reuniu 315 atletas de 14 Unidades da Federação para a disputa de 11 modalidades esportivas no último fim de semana. Alexandre não teve concorrentes na categoria dele (-90kg) e recebeu o ouro, mas não teve sorte na categoria Absoluto. Foi eliminado na estreia pelo paulista Cleiton Batista da Silva. "Foi uma surpresa ter perdido, mas parabenizo ele imensamente. Posso perder, posso ganhar. Faz parte. Isso é o esporte", afirmou Alexandre, que também foi bronze nas Surdolimpíadas Internacionais de 2017, na Turquia.
Tensão na Turquia
Na saga como surdoatleta, Alexandre teve um dos momentos mais tensos no aeroporto de Istambul, em junho de 2016, enquanto aguardava uma conexão para a cidade turca de Samsun, sede do Mundial da modalidade naquele ano. Ele e um surdoatleta paulista estavam no terminal no dia 28 de junho, quando uma série de explosões e tiroteios mataram 36 pessoas e deixaram mais de 145 feridos. "Estávamos sentados, descansando. De repente só sentimos a vibração de muitas pessoas correndo. Acordei meu amigo. Não sabíamos o que era nem tínhamos como nos comunicar. Demoramos muito para entender o porquê da correria. E foram várias vezes. Três ou quatro bombas. E tiros", contou Alexandre.
Além da face assustadora da experiência, houve um período longo em que eles não conseguiam se comunicar com familiares e representantes da Confederação Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS) no Brasil. "Não conseguíamos acesso à internet. Só depois de horas achamos um café com wifi para avisar amigos e familiares no Brasil. Estavam todos apreensivos", disse. "Foi um nervosismo muito grande. Não havia notícia. A gente imagina tudo. Demorou até conseguirmos entrar em contato com eles por uma pessoa da confederação. Os meninos filmavam e mostravam que estavam bem", recorda Andréa. Felizmente, Alexandre seguiu viagem e, no Mundial, conquistou o ouro na categoria -90kg.
Pegadas de Rafaela
Marcele Félix tem apenas 21 anos, mas já une experiência de sobra no universo surdolímpico. O judô integra a vida da atleta desde os cinco anos. No início, mais como uma forma de lazer, terapia e inclusão com o universo dos ouvintes. Mais tarde, com perspectiva mais profissional. Aluna do técnico Geraldo Bernardes no Instituto Reação, Marcele abraçou o alto rendimento a partir da adolescência.
"Com 15 anos passei a amar o judô de forma intensa. Já participei de competições internacionais na Bulgária e na Turquia. Disputar essa edição das Surdolimpíadas no Brasil foi uma experiência muito boa. Consegui ser campeã duas vezes em Pará de Minas. Foi inédito para mim", celebrou a atleta, ouro na categoria -70kg e na Absoluta.
O esporte é um modelo bom para se seguir, né? Nós precisamos de mais mulheres. Quero que mais meninas surdas sigam esse caminho"
No dia a dia, Marcele já teve oportunidades de medir forças em treinos com a campeã olímpica Rafaela Silva, uma de suas referências esportivas e no campo das atitudes. "A Rafaela é um modelo para mim como profissional. Quero absorver todas as técnicas que ela tem. Ela é minha referência. Meu modelo. Já treinamos juntas. Ela é bem forte", enfatizou a judoca.
Mais do que resultados nacionais e internacionais, Marcele ostenta um pioneirismo continental. Ela se tornou a primeira atleta surda das Américas a receber uma faixa preta no judô. "Eu tinha só 17 anos. Era uma coisa que não esperava conquistar. Eu pensava só em ser professora, mas ser a primeira mulher surda a conseguir uma faixa preta em judô nas Américas, eu não esperava", sorriu, com a esperança de influenciar novas meninas com deficiência auditiva na busca dos quimonos. "O esporte é um modelo bom para se seguir, né? Nós precisamos de mais mulheres. Então quero que mais meninas surdas sigam esse caminho".
Estudante de administração, Marcele espera também que o Bolsa Atleta volte a beneficiar os atletas não olímpicos e não paralímpicos, categoria que inclui os surdoatletas, para que tenha chance de se dedicar com mais exclusividade ao esporte. O próximo compromisso de grande relevância dela é o Mundial, que será disputado na França, em 2020. "A Bolsa seria um ganho de uma luta enorme. Sempre acreditamos que era possível conseguir essa conquista. Faz muita diferença", disse.
Durante a Cerimônia de Abertura das Surdolimpíadas, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, e o Secretário Nacional de Alto Rendimento da Secretaria Especial do Esporte, Emanuel Rego, afirmaram à comundidade dos surdoatletas que a pasta prevê para até o fim do ano o lançamento de um edital do Bolsa Atleta que contemple inscritos de modalidades não olímpicas e não paralímpicas.
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Gustavo Cunha - Ascom - Ministério da Cidadania