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Com investimento de R$ 1,7 milhão, CT da UFMG aposta na excelência paralímpica
Publicado em
14/03/2019 17h36
Atualizado em
31/10/2022 13h32
São 27 metros de pista em linha reta antes do salto. O mineiro Allan Patrick, de 27 anos, estende a mão direita para frente e a perna esquerda para trás. Ouve atento à sua frente os últimos ajustes do treinador Pedro Vasconcelos de Queiroz: 'Mais para direita, um tiquinho para a esquerda, aí tá bom'. Paralisa o corpo para ouvir o comando de partida: no segundo grito de "vem!", inicia uma corrida mental e auditiva. Sabe que na oitava passada do pé direito e da contagem em voz alta de seu técnico vai estar em cima da marca em que tem de executar o salto. "Do sete para o oito a mente já produz a decolagem, porque a perna já estará em cima da marca. Subo e me projeto no ar. Tenho de ter confiança total", disse Allan, deficiente visual e um dos dez melhores do mundo no salto em distância paralímpico.
Natural de Betim, Allan iniciou 2019 com uma perspectiva mais profissional para afinar seus treinos e conquistar marcas expressivas. Desde janeiro o Centro de Treinamento Esportivo (CTE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) iniciou um programa voltado especificamente para atletas paralímpicos de alto rendimento. Com isso, Allan e outros 49 atletas do estado vão utilizar com regularidade uma das melhores estruturas esportivas do país para a prática de atletismo, natação e halterofilismo.
Já consolidado como referência no esporte olímpico, o CTE de Belo Horizonte atende atualmente 470 atletas de segunda a sábado em cinco modalidades: atletismo, judô, taekwondo, natação e triatlo. A estrutura conta com pista de atletismo de Categoria 1 da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), moderna piscina coberta de dimensões olímpicas, academia e ambientes de recuperação física, fisioterapia, ciências do esporte e espaço para prática de artes marciais. No período de aclimatação para os Jogos Rio 2016, foi a casa de parte da delegação britânica.
Agora, a ideia é ampliar o espectro para o esporte adaptado. Com investimento de R$ 1,76 milhão por um Termo de Execução Descentralizada (TED) da Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania, o CTE ganhou o potencial de se firmar com centro regional de excelência. "Os objetivos principais são formar atletas paralímpicos de alto rendimento, qualificar recursos humanos para atuar futuramente no esporte adaptado e realizar o desenvolvimento de pesquisas nessa área", disse Andressa Mello, professora do Departamento de Esportes da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG e idealizadora do projeto.
Por estar em uma universidade pública, o espaço facilita a interação multidisciplinar. Assim, alunos e professores de disciplinas como educação física, medicina, fisioterapia, nutrição e terapia ocupacional são incentivados a participar. Há 50 bolsas de estudo previstas para estudantes de graduação. "O que se pretende é oferecer um atendimento em várias dimensões. Não é apenas o treinamento, mas a descoberta de novas maneiras de treinar, de prevenir lesões, de formar pessoal adequado. Isso vai permitir que aquilo que é criado aqui dentro venha a beneficiar a sociedade em outros locais", afirmou Sérgio Teixeira da Fonseca, diretor do CTE.
"O curso de fisioterapia, por exemplo, normalmente não forma um fisioterapeuta do esporte, o de nutrição não tem como foco o esporte. No CTE, os alunos têm oportunidade de estagiar nessas modalidades, aprender esse atendimento específico. Por vias indiretas, formamos nutricionistas do esporte, médicos do esporte, terapeutas do esporte", explicou Bruno Pena Couto, responsável pelo projeto olímpico do CTE, professor da graduação em educação física e mestre em Ciências do Esporte.
"O CTE foi uma porta mágica aberta para nós. A gente que é atleta de alto rendimento precisa de uma pista oficial. Precisa ter um lugar com academia, psicólogo, tudo de primeira qualidade. Sou de Betim, que é vizinha, e lá não tem pista. A gente treina na terra ou no asfalto. Certamente aqui teremos chances bem maiores de buscar índices e marcas", disse Allan Patrick, que teve catarata congênita, nasceu sem a visão do olho esquerdo e, após complicações de descolamento de retina, ficou cego total aos 16 anos. Além do salto em distância, ele compete em provas de velocidade do atletismo, como 100m e 200m.
Medalhista de bronze nos Jogos Paralímpicos Rio 2016, Izabela Campos é outra que projeta na mudança para o CTE um avanço ainda mais expressivo em suas marcas no lançamento de disco. "Está sendo um divisor de águas. Antes daqui, a gente treinava num lugar que não tinha 10% dessa estrutura. Isso vem para ajudar a gente no ciclo para Tóquio", afirmou a atleta deficiente visual de 37 anos, com 12 de dedicação ao atletismo. São quatro horas por dia de treinos de segunda a sábado, entre parte técnica e física. "Agora podemos ficar aqui também à tarde para suportes de fisioterapia, nutricionista e recuperação física, coisas que a gente não tinha", disse.
Parceria com CT de São Paulo
Principal legado de infraestrutura dos Jogos Rio 2016 para o esporte adaptado, o Centro de Treinamento Paralímpico de São Paulo é 'casa' de muitos dos principais atletas do Brasil para treinamentos profissionais com acompanhamento multidisciplinar. Muitos outros aproveitam o CT como ponto de passagem em períodos de preparação específica, testes físicos e competições. Mas, num país de dimensão continental, a estrutura do CT é longe de ser suficiente. Assim, o projeto da UFMG é visto, por profissionais do CPB, como um piloto do que pode ser replicado para outras regiões.
"É uma parceria importante para a gente descentralizar o trabalho feito em São Paulo no CT nacional, em que trabalhamos a formação dos atletas até o altíssimo rendimento. A ideia é pegar esse modelo e levar para outras regiões", afirmou Leonardo Tomazello, técnico-chefe da natação do Comitê Paralímpico Brasileiro e responsável pelas seleções brasileiras. Tomazello esteve em Belo Horizonte para compartilhar metodologias e participar de uma banca, ao lado de Andressa, para selecionar os profissionais que iriam atuar no projeto.
"É uma alegria ver tantas pessoas vindo disputar as vagas oferecidas. Estamos vivendo um momento em que vamos ter profissionais formados no esporte paralímpico, o que é muito importante. Talentos que se destacam no meio acadêmico já querendo vir para a vida profissional trabalhar diretamente com o esporte paralímpico. Isso é muito bom", completou Tomazello.
"A gente abriu a seleção para seis vagas na área técnica. Houve mais de 40 inscrições. Isso mostra o quanto o projeto é atrativo e o quanto as pessoas têm interesse de vir para o CTE", disse Andressa Mello. Gaúcha de nascença e fisioterapeuta de formação, ela tem conexão com o esporte adaptado de longa data. Conheceu o esporte paralímpico em 2005 e atuou como voluntária no CPB até conquistar a primeira oportunidade como fisioterapeuta no Pan de 2007, no Rio de Janeiro.
"A partir daí, segui sempre em contato com o CPB e participei de várias outras competições paralímpicas, desde torneios internacionais até Paralimpíadas e Parapan-Americanos. Nos Jogos Rio 2016, coordenei o setor de fisioterapia, que tinha 28 profissionais".
Clubes e associações como foco
Num primeiro instante, a opção de Andressa e do CTE para selecionar os atletas foi entrar em contato com clubes e associações de Belo Horizonte e região metropolitana para detectar pessoas com deficiência que já disputam eventos nacionais. "São atletas com a possibilidade de vir para cá fazer a preparação de duas a três vezes por semana. Aos poucos, com estrutura, pretendemos abrir para qualquer lugar do estado".
Uma das integrantes desse grupo inicial é Marcella Guimarães, de 28 anos, que saiu da handbike para o atletismo paralímpico há um ano. Natural de Betim, ela se divide entre as provas de lançamento de dardo e as provas de velocidade sobre cadeiras de rodas. "Experimentei um pouco de tudo, mas acabei me encaixando melhor no dardo e nas provas de sprint", disse Marcella, que só incluiu o esporte em sua rotina depois de uma lesão que limitou os movimentos de suas pernas.
"Tive um tumor na medula, um hemangioma, que me tirou os movimentos da cintura para baixo aos 22 anos", contou a atleta. "Antes disso, se alguém me falasse que eu seria atleta um dia, eu certamente diria que não. Foi depois da lesão mesmo, durante o período de fisioterapia no Hospital Sarah, que descobri o esporte. Conheci o basquete, passei pela natação e me encontrei no atletismo", disse a atleta, formada em design de interiores e interessada em uma pós-graduação na área do esporte. "Em Betim não tem pista apropriada, não tem academia, não tem piscina para fazer um treino. Aqui é muito mais bem equipado. O grande sonho de todo atleta é vir para cá. É um sonho realizado estar treinando aqui".
Efeito colateral desejável
Para técnicos, atletas e dirigentes do CTE, a abertura do nicho paralímpico dentro do projeto da instituição tem o potencial de trazer uma série de benefícios para o ambiente. Alguns mais palpáveis, como o ganho de acessibilidade ainda maior em alguns pontos da estrutura, e outros mais intangíveis, resultantes de uma relação mais direta entre atletas de alto rendimento olímpicos e paralímpicos.
"Em termos de estrutura, são só detalhes, porque o CTE foi projetado para ser 100% acessível. Vestiários, salas, alturas de bancada, larguras de porta, tudo já foi pensado com esse conceito. Há um desafio de algumas conexões entre espaços porque o projeto foi pensado para ser construído em módulos, e alguns ainda não estão finalizados. Aí isso talvez demande alguma adaptação de rampa ou pista", afirmou Bruno Pena Couto.
"Além disso, o esporte paralímpico brasileiro é muito desenvolvido em termos de metodologias e gestão. Imagino que isso vai trazer ainda mais excelência para o treinamento de alto rendimento desenvolvido aqui. Nivela por cima o nosso trabalho. Para o lado humano, o atleta olímpico lida diretamente com superação e dificuldades de rotinas de treinamento, mas vai passar a ter um parâmetro de referência diferente. Vai ver que os obstáculos que ele supera são difíceis, mas pequenos comparados ao que um paralímpico tem de enfrentar até para chegar ao CT, para se deslocar, para sair de casa para cá", disse.
"Sem dúvida, a abertura desse projeto no CTE vai mudar a vida de muitos atletas, tanto de Belo Horizonte quanto da região metropolitana. O convívio do atleta sem deficiência com os deficientes muda paradigmas. A gente muda a visão das pessoas que frequentam o CTE", completou Andressa Mello.
Gustavo Cunha, de Belo Horizonte - rededoesporte.gov.br