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Entrevista
Secretária Laís Abramo explica os objetivos e a construção da Política Nacional de Cuidados
Cuidar está no dia a dia, em diversos ambientes e permeando a existência de todos. Inclui a preparação de alimentos, a manutenção, limpeza e organização dos domicílios, o apoio às mais diversas tarefas do cotidiano a pessoas com diferentes graus de autonomia ou dependência. Atividades fundamentais para o bem-estar e a reprodução da vida, mas que são marcadas por desigualdades de gênero, de raça, sociais e territoriais.
A gente considera que o cuidado deve ser entendido como um direito de todas as pessoas ao longo do seu ciclo de vida e também como um bem público”
Laís Abramo, secretária nacional de Cuidados e Família
Iniciativa inédita na gestão do Governo Federal, a criação da Secretaria Nacional de Cuidados e Família tem a missão de formular uma política integrada sobre o tema, garantindo esse direito a todos os cidadãos. A titular da pasta, Laís Abramo, explica na entrevista a seguir as principais atribuições e metas da área, a começar pela coordenação, ao lado do Ministério das Mulheres, do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), responsável por elaborar a Política Nacional de Cuidados.
Desdobramento de articulações realizadas desde o início do ano, o GTI foi lançado no fim de maio e envolve um total de 17 ministérios e três órgãos públicos. O grupo interministerial terá a missão de formular um diagnóstico sobre a organização social dos cuidados no Brasil, identificando as políticas, os programas e os serviços já existentes.
Laís Abramo explica que a criação da Política Nacional de Cuidados parte do princípio de que todas as pessoas, ao longo da vida, ofertam e demandam cuidados, sobretudo crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. “A gente considera que o cuidado deve ser entendido como um direito de todas as pessoas ao longo do seu ciclo de vida e também como um bem público”, pontua.
No entanto, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-c), do IBGE, em 2019, as mulheres dedicavam, na média, 21,7 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado enquanto os homens dedicavam 11 horas. Para as mulheres brancas essa cifra era de 21 horas semanais e, para as negras, de 22,3 horas por semana. Cenário que compromete as possibilidades de geração de renda e de autonomia econômica das mulheres, aumentando a pobreza e a desigualdade.
O trabalho de cuidados remunerado também é fortemente marcado pelas desigualdades. No Brasil, quase 75% do total de postos de trabalho no setor de cuidados é ocupado por mulheres. Isso equivale a aproximadamente 18 milhões de mulheres exercendo funções de trabalhos domésticos, cuidadoras, professoras até o ensino fundamental, pessoal da enfermagem, médicas, fisioterapeutas, assistentes sociais, entre outras.
A principal categoria ocupacional do setor de cuidados é a de trabalhadoras domésticas. Os dados mais recentes indicam que 93% da categoria é formada por mulheres e que, destas, 61% são mulheres negras. A secretária Laís Abramo reforça que o objetivo principal da política é: “Garantir o direito ao cuidado a todas as pessoas que dele necessitem e garantir o trabalho decente para as trabalhadoras e trabalhadores do cuidado”.
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Conceito de cuidados
Secretária nacional de Cuidados e Família, Laís Abramo
Eu acho que cuidado é uma palavra que está muito na linguagem cotidiana. Cuidar das crianças, cuidar da casa, cuidar da família. É algo que faz parte da vida de todas as pessoas. Mas, quando a gente está discutindo a missão dessa Secretaria, que é a construção de uma Política Nacional de Cuidados, o sentido que cuidado tem é a ideia que se refere a todas aquelas atividades que são fundamentais para a reprodução da vida e do bem-estar das pessoas.
Pode ser desde o cuidado com as pessoas que tem maior grau de dependência, seja pelo momento do ciclo de vida que elas estão, como as crianças, os bebês que não podem sobreviver sozinhos, não podem se alimentar sozinhos, se vestir sozinhos, se higienizar sozinhos. Então, precisa sempre de ter alguma pessoa que faça esse trabalho de cuidado.
Outro grupo seriam as pessoas idosas, que tem graus variados de autonomia e dependência, dependendo da sua idade, das condições em que se encontram, também as pessoas com deficiência que podem necessitar um maior cuidado para o exercício das suas atividades cotidianas. Portanto, a gente está chamando de cuidado esse tipo de atividade.
A gente entende que o cuidado é um trabalho, que essas funções são sempre exercidas por alguém ou por instituições. Por isso, a gente considera que o cuidado deve ser entendido como um direito de todas as pessoas ao longo do seu ciclo de vida e também como um bem público.
Ao cuidar de uma pessoa, ao garantir que essa pessoa tenha condições de vida adequadas e que ela se desenvolva, é algo que diz respeito não apenas a essa pessoa ou à família, mas diz respeito ao conjunto da sociedade, para que ela funcione, para que o mercado de trabalho funcione, para que a economia funcione. São funções cotidianas que têm que ser feitas. São todas atividades necessárias para a reprodução da vida cotidiana, como fazer comida, como limpar e organizar a casa.
Por que o cuidado não é visto como trabalho?
Aí a gente entra no outro conceito que a gente acha muito importante, que é a organização social dos cuidados. Como que esse trabalho de cuidado acontece na prática e se organiza numa determinada sociedade? Então, como eu disse, todas as pessoas, ao longo do seu ciclo de vida, precisam de cuidados.
Deveria ser um direito garantido a todas as pessoas. Em algumas situações precisam mais do que outras. Mas o problema é que na atual organização social, esse trabalho de cuidado ainda é visto como se fosse uma vocação natural das mulheres. E isso a gente acha que é muito injusto.
Por isso, que a gente fala numa organização social do cuidado, que é injusta e inequitativa, porque uma parte muito grande desse trabalho de cuidado ainda fica a cargo das famílias e das mulheres dentro das famílias, sem que seja reconhecido como um trabalho. É comum falar que é uma dona de casa e não trabalha, mas essa mulher desenvolve o que a gente está chamando de trabalho doméstico e de cuidados não remunerados. Ela está trabalhando, e muito, nessas atividades.
Ao não ser reconhecido como um trabalho, essa mulher não é valorizada. Muitas vezes, significa um número muito grande de horas diárias dedicadas a esse tipo de trabalho que vão terminar constituindo e criando barreiras muito fortes para a inserção profissional das mulheres no mercado, para a conclusão das suas trajetórias educacionais, para a vida pública, etc.
Por isso a questão da garantia do direito ao cuidado está muito relacionada também com a garantia do direito à igualdade de gênero, que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens.
Se a gente for falar das trabalhadoras domésticas, continua sendo uma categoria muito importante da ocupação das mulheres. No Brasil, hoje 16% de todas as mulheres que estão no mercado de trabalho são trabalhadoras domésticas. Se a gente pensa em todos os trabalhadores do cuidado remunerado, envolvendo aí trabalhadoras domésticas, cuidadores de idosos, de pessoas com deficiência, auxiliares de enfermagem, se a gente pega todo esse setor, as trabalhadoras domésticas são 25%.
É exatamente por não ser considerado um trabalho, por ser considerado algo que quase teria que ver com a suposta natureza feminina, esse trabalho é muito desvalorizado.
Desigualdades
Essa relação desigual da distribuição do trabalho de cuidado vai gerar para as mulheres essa barreira para, por exemplo, a inserção profissional. E se a gente for ver, essa carga é muito mais elevada entre as mulheres mais pobres, porque elas não têm como pagar por esses serviços.
Existe uma parcela das mulheres com nível de renda mais elevado que recorrem a outras mulheres para fazer esse trabalho, por exemplo, contratando uma trabalhadora doméstica. Isso libera o seu tempo para que elas possam entrar no mercado de trabalho. Então, temos um círculo vicioso que gera uma pobreza de tempo. Ou seja, as mulheres não têm tempo para se dedicar aos outros âmbitos da sua vida.
Se a gente pega o total das mulheres hoje no Brasil em idade de trabalhar, que não estão ocupadas no mercado de trabalho, que não tem um trabalho remunerado, nem estão procurando emprego, 30% dizem que a principal razão por não estar nem trabalhando com remuneração nem procurando um trabalho é justamente a responsabilidade com o cuidado de outras pessoas da família. Para os homens, essa cifra é de 2%. E se pegarmos o conjunto das mulheres com filhos de zero a três anos, os 30% sobem a 62%.
Realizando uma política pública que apoie as famílias nesse tipo de trabalho, você vai estar deixando de reproduzir essa desigualdade. É ter, por exemplo, serviços e equipamentos que possibilitem, auxiliem as famílias no cuidado das crianças.
Princípios da Política Nacional de Cuidados
Eu tenho uma frase que é um pouco simples, mas acho que sintetiza bastante: O objetivo principal dessa política é garantir o direito ao cuidado a todas as pessoas que dele necessitem e garantir o trabalho decente para as trabalhadoras e trabalhadores do cuidado. Então, a ideia é justamente contribuir para que esse trabalho de cuidado seja um elemento importante e distribuído mais igualitariamente dentro das famílias, entre homens e mulheres.
São políticas que a gente está chamando de transformadoras em termos culturais. É uma ideia de corresponsabilidade entre homens e mulheres no interior da família, mas também do que a gente chama de corresponsabilidade social, a comunidade, o Estado, o mercado e as empresas.
A ideia é construir ou fortalecer políticas públicas que possam garantir desde benefícios monetários, até tempos para o cuidado, como licença maternidade e paternidade, e serviços, que são as creches, os centros para pessoas idosas, a educação infantil integral. Enfim, uma série de políticas públicas que vão ter um sentido de garantir condições adequadas de vida e de desenvolvimento desses públicos que precisam de cuidados e, do mesmo modo liberar o tempo das famílias, principalmente das mulheres, para que elas possam também se dedicar a outras esferas da vida.
Tem algo chave que é enfrentar as desigualdades estruturais que configuram essa organização social dos cuidados. Até agora, eu estava falando muito mais da desigualdade de gênero, mas ela não é a única, porque ela se entrecruza com desigualdades raciais e étnicas.
Já dei aqui alguns exemplos de como são as mulheres negras, que têm uma carga maior de trabalho de cuidados, muitas vezes as mulheres mais pobres, são mulheres sozinhas, mães solo, elas têm que, ao mesmo tempo, ter esse papel de cuidadora e de provedora. E se elas não têm um apoio, isso vai resultar numa dupla, tripla jornada de trabalho, que é muito exaustiva. Ou elas vão se apoiar em outras mulheres da família, inclusive em crianças e adolescentes, para desenvolver esse trabalho de cuidado.
Essa questão de enfrentar as desigualdades estruturais, de classe, de gênero, de raça, de etnia, de território é muito importante. Tem certas regiões do país, ou certas áreas, onde você tem muito menos equipamentos de cuidado, como as periferias das grandes cidades ou a zona rural.
Grupo Interministerial de Trabalho
Tudo isso vai ser discutido pelo conjunto dos ministérios que está construindo essa política, pelos movimentos sociais. Essa Secretaria, junto ao Ministério das Mulheres, tem a função de coordenar essa elaboração, mas ela tem que ser necessariamente uma política intersetorial e interfederativa.
Não é que o tema do cuidado nunca tenha sido contemplado pelas políticas públicas brasileiras e pelo que a gente pode chamar aqui, num sentido amplo, do sistema de proteção social brasileiro. Existem as creches, a questão da licença maternidade, a questão dos equipamentos para as pessoas idosas, para as pessoas com deficiência, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Bolsa Família, tudo isso são políticas que existem em diversos sistemas, inclusive no Sistema Único de Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, na rede de educação.
O que tem de diferente é essa ideia de uma política integrada de cuidados, que a gente considera também que é uma parte fundamental das políticas de proteção que estão na base do Estado de Bem-estar social. Ao longo dos últimos dez, 15 anos, diversos países da América Latina vêm construindo essa ideia de políticas e sistemas integrados de cuidado.
Esse tema também entrou em discussão no Brasil. Existe uma produção acadêmica importantíssima, existem organizações internacionais, o sistema ONU, que vem discutindo esse tema, instâncias das quais o Brasil faz parte, como a Conferência da Mulher da América Latina e do Caribe, organizada pela Cepal, que tem colocado o tema do cuidado em diversos documentos, como um direito.
Então, no próprio governo de transição do presidente Lula, esse tema dos cuidados foi discutido em vários grupos, como o que tratava das políticas das mulheres, do trabalho, do desenvolvimento social. E foi criada a Secretaria Nacional de Cuidados e Família, que é inédita no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social, e foi criada também uma Secretaria de Autonomia Econômica e Políticas de Cuidados no Ministério da Mulher.
Então, o primeiro passo foi a construção de um Grupo de Trabalho Interministerial para que a discussão da Política Nacional de Cuidados fosse feita desde o começo com esse caráter intersetorial que a gente acha que é o caminho mais correto de construção. O decreto constituindo o grupo foi assinado pelo presidente Lula em 30 de março e o grupo foi instalado em 22 de maio.
A gente está com uma visão muito otimista a respeito disso, porque é claro que para constituir o grupo, nós conversamos com todos esses ministérios e a gente sente que existe uma grande disposição para trabalhar conjuntamente na condução dessa política. A gente sente que isso veio atender a uma demanda que já existia.
Etapas de trabalho
A gente está pensando que, em primeiro lugar, nós temos que fazer uma análise conjunta de quais são as necessidades de cuidado que existem hoje na sociedade brasileira. Por exemplo, nós sabemos que estamos passando por um processo de envelhecimento demográfico acelerado, um envelhecimento que se feminiza. A diferença de expectativa de vida, em média entre homens e mulheres, é de sete anos. As mulheres vivem sete anos a mais que os homens.
Muitas vezes, são mulheres que cuidaram a vida inteira, mesmo estando idosas, de outros idosos. De repente, podem ficar sozinhas e quem cuida delas? Muitas vezes mulheres que não puderam se inserir no mercado de trabalho, ou que se inseriram de forma precária e não têm aposentadoria.
Então, a primeira questão é fazer um levantamento das necessidades de cuidado, fazer um levantamento também do que já existe de políticas, equipamentos, serviços de cuidado nessas diversas áreas que estão na competência do Ministério da Saúde, da Educação, Ministério do Trabalho, da Previdência e identificar aquelas necessidades que não estão cobertas.
O que falta na política pública brasileira, seja em termos de extensão da cobertura? Por exemplo, a gente sabe que hoje existe a política de creches para crianças de zero a três anos, está no Plano Nacional de Educação, mas que ainda existe um problema de cobertura.
Então, por exemplo, você pode ir desde um equipamento que a gente acha que é necessário, mas não existe, a outro que existe, mas que tem um problema de cobertura. Então, é tentar identificar isso, ver como a gente pode avançar na integração também do que hoje existe. Entre o SUS e o SUAS têm muitas áreas em que já existem uma integração, mas que poderia ser melhorada.
A primeira tarefa é ter esse diagnóstico para, a partir daí e ao mesmo tempo também, discutir os princípios, as diretrizes, etc. Eu falei o que a gente tem discutido no âmbito do MDS, mas que tem conversado também com os outros ministérios. Mas tem que haver um consenso dentro do GIT do que a gente está entendendo como cuidado, os princípios e a universalidade e quais são os públicos prioritários.
Mas a gente também está prevendo a necessidade de fazer, concomitantemente, um diálogo muito intenso com o Congresso e com as organizações da sociedade civil, seja pelos conselhos que existem, o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, dos Direitos da Pessoa Idosa, da Previdência Social, enfim, o diálogo com os conselhos, onde há uma representação importante da sociedade civil, com organizações sindicais, como a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, a Associação de Cuidadoras e Cuidadores.
Quer dizer, tem que ter um processo de consulta e de diálogo com a sociedade civil. E tudo isso a gente está tentando organizar no âmbito do GIT, com câmaras técnicas para temas específicos, audiências públicas, seminários. Também é muito importante o compartilhamento de experiências com outros países que estão mais avançados na construção dessa política.
A gente evidentemente olha para uma experiência internacional não para importar a experiência em si, como uma receita, mas ela pode ser inspiradora de processos que podem ajudar na construção de toda essa nossa política. Da mesma maneira que o Brasil também pode ter muito a oferecer a outros países.
Assessoria de Comunicação - MDS