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POLÍTICA NACIONAL DE CUIDADOS
Audiência pública na Câmara discute como tirar o trabalho de cuidado da invisibilidade
Audiência pública na Câmara discute como tirar o trabalho de cuidado da invisibilidade
O trabalho de cuidado, exercido na privacidade do lar, é frequentemente velado sob o manto da vocação feminina. Muitas vezes pintado com as cores do amor e da dedicação natural das mulheres, esse cuidado esconde uma verdade menos romântica: é um trabalho não remunerado, invisibilizado pelos indicadores da economia formal, e representa uma âncora para a vida de muitas mulheres, especialmente as negras, mantendo-as à margem da sociedade.
Reconhecendo que essa organização social desigual do trabalho de cuidado agrava e perpetua os ciclos de pobreza, audiência pública realizada nesta quarta-feira (13.12), na Câmara dos Deputados, apresentou a necessidade urgente de reconhecer o trabalho doméstico e de cuidado como uma contribuição valiosa para a economia do país, mesmo quando não recompensada financeiramente.
Realizada pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados, a audiência reuniu especialistas, políticos e representantes ministeriais para discutir a Economia do Cuidado, no âmbito do Projeto de Lei nº 638/2019.
Autora do projeto, a deputada Luizianne Lins (PT/CE) explicou que a proposta prevê incluir o cuidado no Sistema de Contas Nacionais. O objetivo é estimar o valor do trabalho doméstico e de cuidado que os membros dos domicílios fazem, sem receber nenhum tipo de remuneração, e que o Sistema de Contas Nacionais omite, por estar fora da fronteira de produção.
A inclusão no Produto Interno Bruto (PIB) significa reconhecer formalmente o valor das atividades de cuidado não remuneradas, como o trabalho com a casa, crianças, idosos e pessoas com deficiência, e medir a contribuição desse trabalho para a economia. Essas atividades são essenciais para o bem-estar e a sustentabilidade das sociedades, mas geralmente não são contabilizadas nas métricas econômicas tradicionais.
A secretária nacional de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Laís Abramo, explica como visibilizar o trabalho de cuidado: “Esse projeto fala exatamente da construção de uma pesquisa sobre o uso do tempo que possibilitaria a construção das contas satélites, aquelas que vão fazer justamente a equivalência monetária de todo esse trabalho invisibilizado. Na nossa sociedade, o que não se conta não existe”.
O presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Márcio Pochmann, reconheceu a importância de realizar uma pesquisa independente de uso do tempo e discutiu a viabilidade da realização desse levantamento pelo órgão federal: “Não temos hoje essa pesquisa, não por problema tecnológico ou de conhecimento. Há, de fato, insuficiência de recurso próprio. O IBGE está pronto para realizá-la, caso exista a possibilidade de acessar recursos orçamentários que permitam avançar nesse sentido”. Segundo as estimativas de Pochmann, seria possível iniciar os testes em 2024 e, em 2025, realizar uma pesquisa abrangente, que pudesse oferecer informações de qualidade, como as disponíveis na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).
Luizianne Lins destacou a importância de a lei tramitar em regime de urgência e reconheceu a necessidade de previsão de recursos: “Mais importante do que a lei e o debate é que a gente destine orçamento para a transformação da política em realidade. Para isso, esta comissão destinou, inclusive no PPA (Plano Plurianual), um valor significativo para que a economia do cuidado tome, de fato, envergadura de política pública”.
A secretária Laís Abramo ressaltou ainda que o Congresso aprovou, há pouco tempo, a lei de igualdade salarial entre homens e mulheres, pontuada como uma conquista enorme, “mas essa lei só vale para quem já está no mercado de trabalho, ou seja, não chega às milhões de mulheres que não têm condições de entrar no mercado de trabalho porque estão ocupadas em atividades de cuidado”.
Visibilizar para transformar
Há urgência de reorganizar a provisão de cuidados no Brasil. Laís Abramo afirmou que essas atividades são trabalhos cotidianos, recorrentes e exigentes. Sem eles, a sociedade e a economia não funcionam. Ela argumentou que “o cuidado deve ser um direito universal, já que é uma necessidade de todas as pessoas”.
O problema é que nem todos cuidam. Feminista, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DESSO/UFRN) e doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Verônica Ferreira deixou explícito o dilema público que enfrentamos: “Metade da humanidade cuida da humanidade inteira e, com isso, perde o tempo para cuidar de si mesma”.
Laís Abramo pontuou que essa forma tradicional e histórica de organizar os cuidados na sociedade, dependente do trabalho não remunerado, desvalorizado e invisibilizado das mulheres, está se tornando cada vez mais insuficiente para atender às necessidades de cuidado: “Atualmente, entre as mulheres em idade produtiva que não estão ocupadas no mercado de trabalho e não estão buscando emprego, a principal razão apontada para essa situação é a necessidade de se dedicarem ao trabalho de cuidado em suas casas, uma realidade que afeta apenas 2% dos homens”.
Segundo a secretária nacional de Cuidados e Família, “estamos vivendo em uma sociedade que envelhece rapidamente, um fenômeno que também reflete a feminização do envelhecimento, pois as mulheres tendem a viver, em média, sete anos a mais que os homens”. Com o avanço do envelhecimento populacional, a demanda por cuidados aumenta, enquanto diminui o número de pessoas disponíveis em cada família para fornecer esses cuidados.
Márcio Pochmann contextualizou essa mudança de época do Brasil, que aponta também para uma transição da sociedade agrária para a urbana e de serviços. Ele avaliou o impacto disso na necessidade de reorganização social dos cuidados: “Na sociedade de serviços, na sociedade em que predomina a era digital, o que nós estamos percebendo é que essa divisão (que separava o trabalho de produção, feito fora de casa, e o trabalho de cuidados, feito dentro de casa) está cada vez mais nebulosa, sobretudo a partir da pandemia, com o crescimento do trabalho remoto”.
Assessoria de Comunicação – MDS