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Artigo: Empresas e direitos humanos
Testemunha-se no Brasil um especial momento, marcado pela desejável transformação ética na cultura corporativa no combate à corrupção sistêmica
De 17 a 19 de janeiro, foi realizada a “2ª Consulta Regional para a América Latina e Caribe a respeito da implementação dos Princípios da ONU referentes a empresas e direitos humanos no contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, no Chile. A responsabilidade das empresas no contexto global, bem como os desafios e as perspectivas para avançar em planos nacionais e políticas públicas para fortalecer a conduta empresarial no âmbito dos direitos humanos foram intensamente debatidos por representantes governamentais, empresariais e da sociedade civil.
Na ordem contemporânea, das cem maiores economias mundiais, 49 são estados e 51 são multinacionais, cujo faturamento anual excede o PIB de estados. Em 2010, o faturamento do Walmart correspondia ao PIB da Noruega (em torno de US$ 408 bilhões); o faturamento da General Electric superava o PIB do Peru (em torno de US$ 157 bilhões).
Se, tradicionalmente, o aparato protetivo dos direitos humanos ambicionava responder à relação entre estados e indivíduos — endossando os deveres dos estados de respeitar, proteger e implementar direitos —, na atualidade emergem relações mais complexas a envolver, de um lado, empresas; por outro, coletividades e grupos vulneráveis.
Daí a inédita adoção pela ONU dos princípios referentes a empresas e direitos humanos, estruturados em três pilares: proteger (apontando à responsabilidade dos estados em evitar abusos de atores não estatais); respeitar (apontando à responsabilidade das empresas relativamente à sua cadeia produtiva e entorno, com ênfase na devida diligência para prevenir os riscos e mitigar os impactos negativos da atividade empresarial); e remediar (apontando à necessidade de estabelecer mecanismos para as vítimas em caso de violação).
Relevantes instrumentos internacionais adotados pelo Estado brasileiro invocam parâmetros para a responsabilidade das empresas em direitos humanos, com destaque à Declaração Universal de Direitos Humanos, ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, às convenções específicas que proíbem a discriminação (contra as mulheres, grupos étnico-raciais, pessoas com deficiências e outros); aos princípios fundamentais da OIT acerca da agenda do trabalho decente (a proibir o trabalho forçado e infantil, bem como a discriminação no emprego, assegurando condições dignas de trabalho); bem como aos princípios da ONU referentes a empresas e direitos humanos; ao empoderamento de mulheres; ao Pacto Global na esfera empresarial; e à Agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável. Somam-se, ainda, os princípios constitucionais, o Programa Nacional de Direitos Humanos III (com suas metas e diretrizes) e compromissos empresariais relativos ao combate ao trabalho escravo; à promoção da igualdade de gênero; à promoção da diversidade étnico-racial; ao combate à homofobia; à promoção dos direitos das pessoas com deficiência; à sustentabilidade ambiental; e ao combate à corrupção. Gradativamente, empresas têm criado Comitês de Direitos Humanos, pela Diversidade e pela Promoção da Igualdade.
Neste contexto, importa identificar o alcance da responsabilidade empresarial em direitos humanos ao menos em cinco âmbitos: relativamente aos trabalhadores; à cadeia produtiva; ao entorno (envolvendo a proteção às comunidades e vítimas afetadas pela atividade empresarial); ao Estado; bem como à responsabilidade extraterritorial (envolvendo os riscos de violação em outros países).
Tal como o Estado, as empresas podem violar, mas também promover direitos. A conduta empresarial não se limita hoje apenas à produtividade econômica, mas requer o balanço social, de direitos humanos e de sustentabilidade ambiental. Violar direitos simboliza um alto custo para as empresas, não somente sob o prisma econômico-financeiro e penal (por vezes, levando os seus dirigentes às prisões), mas também sob o prisma da identidade e reputação empresarial. Da mesma forma, promover direitos simboliza não apenas um alto ganho empresarial (estudos apontam o quanto a diversidade é lucrativa), mas, sobretudo, um ganho na identidade e reputação empresarial.
Testemunha-se no Brasil um especial momento, marcado pela desejável transformação ética na cultura corporativa no combate à corrupção sistêmica — basta atentar ao pagamento da penalidade de R$ 3,5 bilhões pela Odebrecht e Braskem como o maior valor já registrado na história, em virtude de corrupção em contratos na América Latina e África. Ao pacto pela integridade e transparência no campo empresarial — no necessário combate à corrupção em todas as suas formas — faz-se fundamental somar o pacto pelos direitos humanos, fortalecendo a responsabilidade das empresas em matéria de direitos humanos na ordem contemporânea.
Flavia Piovesan é professora de Direito da PUC-SP e secretária Especial de Direitos Humanos
(Artigo Publicado no Jornal O Globo, de 02 de fevereiro de 2017)