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O descompasso cruel
O governo abriu para debate público ao longo do último mês uma proposta de aprimoramento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que altera os procedimentos para adoção – e busca, sobretudo, reduzir o tempo de espera do processo. Atualmente, os trâmites podem se estender por nada menos que seis anos. Mas o tempo da criança é precioso demais. A proposta do Ministério da Justiça e Cidadania é estabelecer o prazo máximo de oito meses para a conclusão de um processo de adoção. Os magistrados trouxeram em uníssono a demanda por mais estrutura, mais varas, equipe técnica e juízes especializados na infância e novas regras para contagem dos prazos processuais, mantendo-se o rigor técnico necessário, sem a morosidade atual. O diálogo segue para que encontremos uma solução possível.
Mais de 46000 crianças e adolescentes brasileiros vivem hoje afastados da família de origem em serviços de acolhimento, a maioria em abrigos. Essa situação carrega em si um paradoxo: se por um lado é uma medida necessária de proteção, por outro pode significar o afastamento de um direito fundamental – o de viver em comunidade. Crianças e adolescentes não devem crescer em instituições. O lugar deles é na família.
Como prevê a lei, o acolhimento não deve durar mais de dois anos. Espera-se que, nesse período, as famílias em crise sejam apoiadas. As mães e os pais devem ser incluídos em políticas sociais, inseridos em tratamentos para alcoolismo e uso de drogas, auxiliados a encontrar soluções para moradia e caminhos para a permanência de seus filhos na família junto ao núcleo extenso (avós, tios). O objetivo é que a situação de vulnerabilidade seja superada e os pais retomem o direito de cuidar de seus filhos. Em muitos casos isso é possível, a criança ou o adolescente festeja o retorno para sua casa, onde reencontra suas figuras de afeto e sua origem.
No entanto, para cerca de 7000 crianças e adolescentes, esse não é o desfecho da história. Quando a família não se reorganiza, inicia-se um processo de destituição do poder familiar e o encaminhamento dos filhos para adoção. São meninos e meninas que passam a sonhar com uma família, e, dependendo da idade, cor da pele e condição de saúde, isso não passa de um sonho distante.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, seus direitos fundamentais, como garante a Constituição. Por isso, a inovação legislativa proposta valida a participação da sociedade civil, de ONGs e grupos de apoio à adoção como atores fundamentais nesse cenário. Eles não substituem os necessários técnicos nas varas para agilizar os processos, mas podem e devem contribuir com suas ações de mobilização, formação e ampliação da visão de família e de cuidado.
No Cadastro Nacional de Adoção há 38000 pretendentes à espera de um filho ou uma filha, mas a incompatibilidade entre o perfil desejado e a realidade das crianças e dos adolescentes cadastrados está entre os motivos para que novas famílias não se formem. Crianças maiores, negras, grupos de irmãos ou crianças que tenham alguma deficiência têm menores chances de ser adotados. Acreditamos que a preparação coordenada dos pretendentes possa conciliar o ideal com o real, viabilizando muitos encontros afetivos entre pais e filhos. Outras famílias podem perceber que não desejam adotar, mas apadrinhar uma criança.
O apadrinhamento afetivo é uma alternativa de convivência familiar e comunitária para os grupos que, ao contrário dos bebês, têm poucas chances de adoção. Nesse caso, pessoas ou famílias são formadas para se tornar referências afetivas importantes na vida das crianças e dos adolescentes acolhidos, dentro de uma base legal clara e bem estabelecida. Trata-se de uma oportunidade de a sociedade responsabilizar-se, com o Estado, pelo bem-cuidar de seus meninos e meninas mais vulneráveis, convivendo com eles e apoiando-os enquanto crescem, para prepará-los para a saída da instituição.
Há ainda a família acolhedora, modalidade presente no Brasil e em muitos países, que é vista como prioritária em relação aos abrigos. A proposta é priorizar nessa modalidade o atendimento de crianças de zero a 6 anos. Na esteira do movimento internacional pela não institucionalização de bebês, queremos nossos pequenos em famílias, sempre. É preciso ampliar os programas de famílias acolhedoras, nos quais famílias são formadas, preparadas afetiva e tecnicamente para cuidar de um bebê até que ele volte para sua família de origem ou seja adotado. A família acolhedora proporciona aos bebês a essência reparadora de um encontro afetivo, amoroso, singular nesse momento de gigantesca importância para sua formação enquanto sujeito.
A adoção internacional também vem como alternativa. A Convenção de Haia de 1993, assinada por diversos países, entre eles o Brasil, traz segurança para a adoção internacional, que ainda é pouco implementada no nosso país. Menos de 250 casos foram concluídos pelos tribunais brasileiros nos dois últimos anos. A ideia é definir o prazo de um ano para a busca por uma família cadastrada no Brasil; após esse período, o registro será automático no cadastro internacional. Essa medida promoverá novas e diversas famílias, sempre a partir da escuta ativa e sensível dos desejos das crianças e adolescentes.
Há demasiada tolerância ao fato de crianças e jovens viverem em situações provisórias e incertas, privadas da convivência familiar e comunitária. Sabemos que essa proposta não resolve tudo, é apenas um passo possível. E, na busca de caminhos, contamos com a participação da sociedade.
Lugar de criança é na família. Encontremos novas formas para que isso ocorra.
Claudia Vidigal
Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça e Cidadania