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Artigo - Direitos humanos e jurisdição militar
Flávia Piovesan - *Com Silvio Albuquerque
Já aprovado pela Câmara dos Deputados e atualmente sob a apreciação do Senado Federal, o projeto de lei nº 44/2016 objetiva alterar o Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969), dispondo sobre a transferência para a Justiça Militar da União da competência para julgar, em contextos específicos, os crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis, considerando-os crimes militares em tempos de paz. Caso aprovada, a lei teria vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, a partir de janeiro do próximo ano, retornaria “a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada”.
Ampliar o alcance da jurisdição militar com a submissão de integrantes das Forças Armadas a tribunais militares por crimes dolosos contra a vida de civis em tempos de paz implica direta afronta aos parâmetros protetivos constitucionais e internacionais, em flagrante violação ao estado democrático de direito.
A independência judicial é fundamental ao estado de direito, que requer o estabelecimento de um complexo de instituições e procedimentos, destacando um Poder Judiciário independente e imparcial, pautado pelo princípio da igualdade de todos perante a lei. O estado de direito realça a importância das Cortes não apenas pela sua capacidade decisória (capaz de celebrar a prevalência da força do direito em detrimento do direito da força), mas por institucionalizar a cultura do argumento, como medida de respeito ao ser humano.
O direito a um julgamento justo por um tribunal competente, independente e imparcial, bem como a cláusula da igualdade e da proibição da discriminação, é consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificados pelo Estado brasileiro.
No mesmo sentido, a Constituição de 1988 enuncia o direito à igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Estabelece, ainda, o direito à proteção judicial e a um julgamento justo permeado por garantias constitucionais, entre as quais o princípio do juiz natural, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, a independência e a imparcialidade do Poder Judiciário.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cuja jurisdição o Brasil se submete, é enfática ao sustentar que no estado democrático de direito a jurisdição militar deve ter um alcance restritivo diretamente condicionado à proteção de interesses jurídicos característicos das forças militares. Para a Corte, apenas agentes militares da ativa podem ser julgados por Cortes militares, somente em crimes militares, sob pena de afronta ao direito ao devido processo legal e ao direito a um julgamento justo realizado por uma justiça imparcial e independente. Desde o primeiro julgamento sobre o tema — Loaiza Tamayo contra o Peru, em 1987 —, sete países já foram condenados por violação à Convenção Americana (Peru, México, Colômbia, Chile, Venezuela, Equador, Nicarágua e República Dominicana). A Corte ressalta que, por seu caráter especializado ou excepcional, a Justiça Militar deve ter uma competência restrita. Reconhece que a jurisdição militar representa um desafio quanto ao direito de toda pessoa a ser julgada por órgãos independentes, imparciais e competentes, bem como quanto à proteção das garantias da legalidade e da igualdade. Já no caso Lori Berenson Mejía contra o Peru, em 2004, a Corte havia sustentado que “deve estar excluído do âmbito da jurisdição militar o julgamento de civis, e somente deve julgar militares pela prática de delitos ou crimes que, por sua própria natureza, atentem contra bens jurídicos próprios da ordem militar”.
Também esta é a orientação da ONU e da Corte Europeia de Direitos Humanos. Gabriela Knaul, ex-relatora especial sobre a Independência de Juízes e Advogados das Nações Unidas, expressou, em maio de 2015, preocupação assemelhada ao apresentar relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre sua visita à Tunísia. Na oportunidade, manifestou sua grande preocupação pela prática de julgamento de civis por tribunais militares. Para a relatora, cortes militares deveriam possuir jurisdição apenas sobre pessoal militar que viole a disciplina militar ou que cometa crime de natureza militar.
Cabe ao Senado a responsabilidade de conferir a necessária observância à Constituição e às obrigações internacionalmente assumidas pelo Brasil em direitos humanos, no que se refere à submissão de civis à jurisdição militar e de militares a tribunais castrenses em crimes dolosos contra a vida de civis, preservando direitos e garantias fundamentais e endossando a razão de ser da Justiça Militar como foro especial de jurisdição especializada — como imperativo ético-jurídico-político da afirmação do estado democrático de direito.
Flavia Piovesan é professora de Direito da PUC-SP e secretária especial de Direitos Humanos;
Silvio Albuquerque é secretário-adjunto de Direitos Humanos
Publicado em 21/07 no Jornal O Globo