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Artigo - O DIREITO DE SER
Por Flávia Piovesan
No início do ano, a designer transexual Neon Cunha ajuizou ação judicial de retificação de registro civil. Pretende que seu nome de batismo, Neumir, e o sexo masculino, que lhe foi atribuído, sejam alterados. Ela se recusa a ser diagnosticada com “disforia de gênero”, condição descrita pela medicina como uma incongruência entre o sexo anatômico do indivíduo e o gênero ao qual se sente pertencer, somada à angústia e ao desconforto desta incongruência. Decidiu não mais suportar viver representando um papel social imposto, com tanto sofrimento. Afirma: “O que é morte? É a não existência; é a ausência de vida. Do que adianta eu ser documentada? Sou uma morta-viva? A negação de direito à vida eu já tenho. A condição posta é essa: eu preciso ficar mendigando que os outros permitam que eu seja quem eu sou”. Pede à Justiça “o direito a uma morte assistida”, caso seu pleito não seja acolhido. (“Minha história: Neon Cunha, 44 — Mulher ou a Morte”, Folha de S.Paulo, 30 de julho de 2016).
A “disforia de gênero” está catalogada na lista dos transtornos mentais. Recente pesquisa publicada pela respeitável “The Lancet Psychiatry” conclui que as dificuldades dos indivíduos transgêneros deveriam ser excluídas da lista dos transtornos mentais e de comportamento, não devendo mais ser caracterizadas como psicopatológicas. Em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu a homossexualidade do capítulo de “Desvios e Transtornos Sexuais” do Código Internacional de Doenças, passando-a para o capítulo de “Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais”. A eliminação definitiva do comportamento homossexual do código de doenças só ocorreu em 1995.
Catalogar transexuais como portadores de uma patologia decorrente de tra! nstornos mentais implica lançá-los no universo das chamadas “enfermidades”, o que carrega a violenta simbologia a alimentar a dor dos estigmas, preconceitos e padrões discriminatórios, que, por sua vez, implicam a negação a direitos básicos. A equação passa a ser: “enfermidade”-estigma-exclusão com a violação a direitos-sofrimento humano.
Na ordem contemporânea, fundamental é a despatologização da vivência de identidade de gênero, mediante avanços relativos ao direito à saúde e à retificação do registro civil. O processo de redesignação do sexo — realizado no campo saúde — há de contemplar a previsão de retificação automática de documentos relativos ao registro civil, a fim de evitar que, após a realização da cirurgia, ainda seja necessário o ajuizamento de medida judicial para efetivar a troca do nome e designativo do sexo nos documentos pessoais.
Ao julgar os primeiros casos envolvendo direitos de transexuais, em 2002, reconheceu a Corte Europeia de Direitos Humanos ser o respeito à dignidade humana e à liberdade a própria essência da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o que abrangeria no século XXI o direito de transexuais ao desenvolvimento pessoal e à segurança física e moral de forma plena, inexistindo qualquer interesse público a justificar a restrição a estes direitos. Em nome do direito à intimidade, da proteção à vida privada e da proibição à discriminação, direitos de transexuais têm sido acolhidos por esta Corte, mediante interpretação dinâmica e evolutiva.
O direito à diversidade sexual e a cláusula da proibição da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero integram o Direito dos Direitos Humanos, sua principiologia, racionalidade e jurisprudência. Daí a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação, baseadas na orientação sexual e identidade de gênero, com a garantia do pleno exercício dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e cul! turais.
Há que se repudiar a equação “enfermidade”-estigma-exclusão com a violação a direitos-sofrimento humano. Há que se fortalecer a emergência de um novo paradigma emancipatório pautado no “reconhecimento de identidades-respeito-inclusão com a proteção a direitos-dignidade humana”.
Faz-se emergencial avançar no processo de luta por direitos e por justiça, que remete ao mais básico direito: o direito de ser. Como lembram povos indígenas: “Não queremos ser mais. Não queremos ser menos. Queremos ser.”
O direito ao livre exercício da personalidade humana clama por igualdade, dignidade e respeito, com a eliminação do preconceito e da discriminação, no marco de uma sociedade aberta, pluralista, democrática, radicada na prevalência da dignidade humana.
Flavia Piovesan é professora de Direito da PUC-SP e secretária especial de Direitos Humanos
GRANDE IMPRENSA | O GLOBO - RJ | 18/08/2016 06:01:00