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Artigo: Onde está Amarildo?
30 de agosto é o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. A data homenageia as pessoas das quais não se tem mais notícia após terem sido presas por agentes públicos e os seus familiares. Ela vem sendo comemorada a partir de 2011 e foi assim proclamada pela Organização das Nações Unidas – ONU, pela Resolução 65/209.
De acordo com a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, concluída em 20 de dezembro de 2006, aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 661, de 1º de setembro de 2010, e promulgada pelo Decreto presidencial de nº 8.767, de 11 de maio de 2016, “entende-se por 'desaparecimento forçado' a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei.”
A ONU, ao adotar a citada Resolução, admitiu que o desaparecimento forçado é usado por agentes estatais como uma estratégia para infundir medo nos cidadãos e é um problema mundial, já que não afeta apenas algumas regiões no mundo. Se, no passado, os desaparecimentos foram principalmente produto das ditaduras militares, no presente, acabaram por se converter em um método generalizado de repressão. A ONU reconheceu ainda que a luta dos Estados contra o terrorismo é muitas vezes utilizada como desculpa para a prática, que é incentivada pela impunidade generalizada dos agentes desse crime, quase sempre direcionado a pessoas mais vulneráveis.
No Brasil, o desaparecimento forçado foi amplamente utilizado pela ditadura militar, mas seus autores não foram punidos pela interpretação dada à Lei de Anistia, que abrangeria tais crimes. Entretanto, o Brasil não é exceção ao cenário detectado pela ONU e os órgãos policiais continuam praticando o desaparecimento forçado de cidadãos, como no caso de Amarildo Dias de Souza, que tornou-se emblemático no país, dada a sua ampla divulgação, mas está longe de ser um caso isolado.
Como forma de atender aos reclamos dos familiares de desaparecidos políticos produzidos pela ditadura, foi aprovada a Lei 9.140, em 1995, que instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP. Entre suas atribuições está a obrigação de empreender esforços para a localização dos corpos das vítimas de desaparecimento. O cumprimento dessa missão envolve providências que vão desde a constituição de banco de DNA, iniciado em 2006 e em fase de complementação e validação para atender a protocolos internacionais; diligências para exumações; entrevistas com familiares para coleta do maior número possível de dados sobre as vítimas; bem como medidas de reparação, memória e verdade.
Algumas das principais frentes de trabalho, hoje em andamento na CEMDP, são: 1) o Grupo de Trabalho Perus, que retomou a análise das ossadas da vala do Cemitério de Perus e que é fruto da cooperação entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH, a prefeitura municipal de São Paulo e a UNIFESP; 2) o Grupo de Trabalho Araguaia, constituído em atendimento a ordem judicial para a realização de expedições àquela região, composto por representantes da SEDH, do Ministério da Justiça e do Ministério da Defesa; 3) a produção de protocolo de abordagem de vítimas de violência de Estado, em fase de elaboração por representantes do Conselho Federal de Psicologia, inspirado em protocolos de outros países da América Latina e da Cruz Vermelha Internacional.
A CEMDP sempre atuou no tema com imensa dificuldade, por falta de orçamento e estrutura. Mas desde 2014 passou a receber maior apoio da SEDH e, assim, vem avançando na árdua tarefa. Todavia, o maior legado da CEDMP e da SEDH será contribuir para o combate ao desaparecimento forçado: - para que não se esqueça, para que não se repita.
Para tanto, é preciso que sua experiência contribua para a adoção das medidas acima também para os desaparecidos do presente, às quais devem ser acrescentadas a separação dos setores periciais e policiais; e a constituição de uma rede jurídica e psicológica de apoio imediato aos familiares das vítimas de desaparecimento forçado.
O Estado deve proteger a vida, o direito de ir e vir e ao devido processo legal de todos os seus cidadãos, não deixando que seus agentes convertam-se em sequestradores de quem quer que seja. Que o dia 30 de agosto sirva como marco e importante momento de reflexão para os países rumo à erradicação dessa prática nefasta.
* Presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e Procuradora Regional da República.
* Secretária Especial de Direitos Humanos e Professora de Direito da PUC-SP.