A feminização da Aids, por Nilcéa Freire - O Globo, 15/06/2006
A feminização da Aids
O Globo - 15/06/2006
Nestes 25 anos da pandemia da Aids, o desenvolvimento científico e tecnológico tem colocado à disposição da humanidade métodos diagnósticos e terapêuticos cada vez mais eficazes. Contudo, em muitos países, questões morais e financeiras ainda impedem acesso ao tratamento e à prevenção. Desde a descoberta da doença até hoje, 65 milhões de pessoas já foram infectadas com o HIV e mais de 25 milhões morreram.
As mulheres representam 50% das pessoas vivendo com o HIV no mundo e 60% da população infectada na África, conforme destacou o documento final da Sessão Especial sobre HIV/Aids das Nações Unidas, realizada em Nova York, no início de junho. A ONU reconhece que a desigualdade de gênero e todas as formas de violência contra as mulheres são fatores determinantes do crescimento da vulnerabilidade feminina à doença.
A situação da Aids no mundo, onde a incidência de pessoas infectadas é maior nos países em desenvolvimento, é um reflexo de outras tantas questões cruciais para a humanidade, como a fome, a miséria, a inexistência de mecanismos que efetivem os direitos humanos das mulheres, entre outras formas de desigualdades sociais.
Ouso afirmar que a crescente feminização da Aids era uma questão de tempo. Sabemos cada dia mais sobre a epidemiologia da infecção, mas não fomos capazes de eliminar as desigualdades de gênero que estruturam a discriminação e a violência contra as mulheres, sua precária autonomia econômica e conseqüente vulnerabilidade.
A partir da década de 90, vários fatores contribuíram para a chegada da epidemia ao segmento de mulheres: a falta de acesso a serviços de saúde específicos; a persistência de padrões culturais e religiosos que interferem negativamente na adoção de medidas preventivas como o uso do preservativo; o acesso limitado ao tratamento com anti-retrovirais; e a violência doméstica e sexual.
Aqui é importante fazer uma ressalva com relação ao grupo de mulheres casadas, no qual há grande dificuldade no controle da transmissão. A maioria não acredita na contaminação por se relacionar somente com um único parceiro. Portanto, é justamente neste segmento que a transmissão não se estabiliza e, quando detectada, a doença já se encontra avançada. O grande desafio é conscientizar mulheres casadas e monogâmicas da prevenção e, ao mesmo tempo, alertar a classe médica e a população.
Por tudo isso, é necessário ouvir as mulheres e garantir-lhes poder. Elas não podem mais ser as grandes ausentes na formulação das políticas públicas de combate à pandemia. Pelo contrário, a feminização da Aids e sua correlação com a violência baseada em gênero é uma realidade inaceitável.
Na reunião das Nações Unidas, os 18 países do Grupo do Rio - representantes das Américas do Sul, Central e Caribe - entre eles o Brasil, defenderam posições mais progressistas frente ao relatório final, que destacou como conduta internacional de prevenção o comportamento sexual responsável, incluindo a abstinência sexual e a fidelidade.
No nosso entendimento, abstinência e fidelidade são valores morais individuais, que não podem se transformar em pilares da política pública de enfrentamento à Aids. O uso de preservativos permanece como forma cientificamente comprovada de evitar a transmissão. O modelo adotado no Brasil de combate à Aids é reconhecido internacionalmente por trabalhar com concepções modernas de prevenção.
O financiamento e a flexibilização das patentes dos medicamentos também são centrais. É preciso mais investimentos do Fundo Global da ONU - não só para os países do continente africano, mas para a América do Sul. A ajuda internacional ainda é escassa, apesar de os indicadores em alguns destes países serem tão alarmantes quanto na África.
Portanto, assumir corajosamente o compromisso de enfrentar a crescente feminização do HIV/Aids implica também reconhecermos os determinantes não-biológicos da infecção, entre eles, a desigualdade de poder entre homens e mulheres.