Família e Capital Social
Natureza e características da família
Na estrutura jurídica brasileira há várias definições de família, conforme o objetivo ou foco da legislação, da decisão judicial e/ou da política pública que se debruça sobre o grupo familiar. Nesse sentido mais pragmático, a definição de família pode variar em função do objetivo da política pública que se quer executar: políticas de renda, políticas educacionais, saneamento básico etc. No entanto, é possível delimitar a natureza específica da família a partir dos tipos de vínculos ou relações que a constituem e se mantêm em diferentes contextos históricos e culturais.
Com efeito, conforme amplamente evidenciado por estudos antropológicos sobre várias sociedades humanas, na família se encontram relações de parentesco de três tipos: afinidade/aliança, parentalidade/filiação e consanguinidade. Nem toda família apresenta os três tipos de relação a todo momento, mas em geral a trajetória das famílias está relacionada a um ou mais deles. Dessas relações nascem vínculos, deveres, hábitos de cuidado e afeto etc., que manifestam as várias dimensões da relação familiar.
Nesse sentido, a família pode ser definida como uma estrutura social que vincula as pessoas, seus membros, em um projeto de vida comum no qual a relação horizontal entre o casal se entrecruza com a relação vertical entre as gerações, tanto descendentes quanto ascendentes.
Portanto, o que caracteriza a estrutura familiar não são simplesmente relações estabelecidas de modo arbitrário e facilmente descontinuadas, mas sim a existência de vínculos de reciprocidade e responsabilidade permanentes, baseados em um ethos de doação e compromisso mútuos, que dão origem a obrigações social e legalmente reconhecíveis e imputáveis.
Características importantes da estrutura familiar:
-
Natureza relacional: a família não é uma reunião de indivíduos isolados, mas é constituída por pessoas unidas por vínculos específicos. Tais vínculos as constituem reciprocamente como os membros específicos dessa comunidade: mãe-filho, avó-neto, irmão-irmã etc.
Os vínculos familiares têm características que os distinguem de outros tipos de relação, devido à sua origem na relação de parentalidade - filiação, que se encontra com os eixos da conjugalidade e da consanguinidade horizontal. Trata-se de vínculos únicos, sui generis, marcados pela permanência do compromisso mútuo e recíproco entre os membros, bem como na integralidade do vínculo (que envolve a pessoa como um todo). Pais e irmãos, por exemplo, não deixam de sê-lo por toda a sua vida, mantendo suas respectivas obrigações, ainda que seus laços afetivos se enfraqueçam.
-
Papéis: a família desempenha papéis que dificilmente se transferem, completamente e com resultados satisfatórios, a outros agrupamentos sociais. Além disso, o custo social da transferência de alguns desse papéis é excessivamente alto, em função da abrangência e da intensidade das relações de cuidado e responsabilidade neles implicadas.
Entre esses papéis, a título de exemplo, podem-se mencionar: o cuidado das crianças e dos idosos; a formação e educação da pessoa desde a primeira infância; e a promoção da identidade pessoal e da estabilidade psíquica.
Em particular, esses resultados não são simplesmente produtos de uma técnica ou de um fazer mecânicos ou externos, mas surgem do próprio tipo de vínculo que constitui a família. Como consequência, a família, quando funciona adequadamente, “entrega” à comunidade e à sociedade pessoas sociáveis, responsáveis e respeitosas etc.
-
Família, coabitação e afeto: famílias, normalmente, vivem juntas (coabitam), mas não basta coabitar para que um grupo possa ser considerado uma família. Por exemplo, repúblicas estudantis e colegas que dividem um apartamento não se transformam automaticamente em famílias.
A mera existência de relações afetivas intensas tampouco constitui uma família. A família é caracterizada, antes, pelos vínculos de obrigações e compensações mútuas, que tendem a contemplar os diferentes aspectos da vida e, em geral, são acompanhadas por um profundo afeto.
No entanto, mesmo que o afeto diminua de intensidade ou termine, as obrigações mútuas entre os membros da família permanecem em vigor. A Constituição Federal afirma, nesse sentido, no Art. 229, que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Também nos artigos 205, 226, 227 e 230 são estabelecidas obrigações (deveres) para a família, independentemente da existência e da intensidade do afeto entre os seus membros.
Capital Social e bens relacionais no âmbito da família
A vida familiar tem sido apontada como a fonte de um tipo de capital social. O conceito de capital social se refere a um conjunto de recursos (capacidades, atitudes, acesso a redes de relacionamento e suporte) originado de relações sociais marcadas pela existência de confiança mútua e normas de cooperação, solidariedade e reciprocidade (Donati, 2003; 2018).
Conforme definido de modo sintético pelo sociólogo Robert Putnam,
“por analogia com as noções de capital físico e capital humano – ferramentas e treinamento que elevam a produtividade individual – o ‘capital social’ se refere a características da organização social, tais como redes, normas e confiança, que facilitam a coordenação e a cooperação para benefício mútuo.” (Putnam, 2001).
Por sua vez, vários estudos têm demonstrado que o capital social familiar favorece a formação de relações de confiança e cooperação em outras esferas da vida social, como as associações privadas, as empresas e a esfera pública democrática (Stone & Huges, 2003; Prandini, 2003; Donati, 2003; Cox, 1995). Em outras palavras, as relações familiares constituem a fonte de um recurso pessoal e comunitário importante, que pode ser utilizado para beneficiar a sociedade como um todo, nas dimensões da participação social e política, no trabalho, na confiança pré-existente entre os membros da sociedade – mesmo na ausência de relações próximas – etc.
No entanto, qual é o aspecto da relação familiar que a torna uma fonte singular de capital social para as pessoas e a comunidade?
Para responder a essa pergunta, é útil apontar que a vida familiar é o principal espaço social em que se cria um tipo de bem chamado na literatura sociológica de “relacional”: são bens intangíveis, não-materiais, que surgem da própria relação interpessoal na qual duas ou mais pessoas cultivam as dimensões dessa relação, como o cuidado, o afeto, a confiança, a cooperação etc. – em função do bem da própria relação (Donati, 2019). Assim entendido, o bem relacional é um bem comum, compartilhado entre os participantes da relação, no qual estes “investem” reciprocamente, a partir de seus papéis próprios, e em cujo fortalecimento podem encontrar crescimento, realização e sentido pessoal.
Dessa forma, o bem relacional se distingue de bens privados, que podem ser apropriados individualmente por meio do consumo, ou de bens públicos, que estão à disposição da coletividade e podem ser consumidos anonimamente. O bem relacional é recíproco, depende da manutenção da relação interpessoal, e é realizado entre pessoas singulares e insubstituíveis.
Os bens relacionais encontram na família uma ilustração muito apropriada, principalmente quando os pais, filhos, avós, irmãos etc. agem entre si, intencionalmente, de forma cuidadosa, amorosa e respeitosa, colaborando para a qualidade de vida dos demais membros e, finalmente, de si mesmos como membros dessa relação.
Como exemplo, examinamos a relação entre mãe e filho. A autorrealização da mãe provém do cuidado amoroso que dispensa ao filho, e que surge da própria natureza da relação de maternidade. O filho, por sua vez, cresce e floresce nessa relação, e encontra também a plenitude como filho na medida em que respeita e segue as orientações e o exemplo da mãe. A própria relação mãe-filho, assim vivida, é um bem para os dois, para o restante da família e, em última instância, para a sociedade ao redor. Em suma, a família é uma fonte potencial de vários bens relacionais.
Observa-se, assim, uma relação dialética entre o bem relacional e a geração do capital social, principalmente no contexto da família. É a partir das relações singulares existentes na família que um tipo potente de capital social pode se desenvolver. A permanência e a intensidade das obrigações, atitudes de cuidado mútuo e reciprocidade de dons que a relação familiar promove permitem que o ser humano aprenda a confiar no outro, respeitar as normas e autoridades familiares e colaborar em iniciativas comuns. Por sua vez, o capital social “acumulado” na família enriquece a qualidade das próprias relações familiares, levando, por sua vez, a um fortalecimento dos próprios vínculos entre os membros.
Do capital social gerado, por sua vez, podem surgir “externalidades” que favorecem o desenvolvimento social e humano como um todo e previnem a ocorrência de atitudes negativas e prejudiciais no âmbito da família, o que acaba “transbordando” para outras esferas sociais. Ou seja, o capital social familiar permite a definição e a apropriação de aspectos, critérios e atitudes básicas que poderão se repetir em outros contextos sociais, dando origem a um padrão positivo de cidadania e colaboração social.
Alguns aspectos do bem relacional familiar são descritos abaixo:
-
Confiança: a família é chamada “instituição de confiança” da sociedade não só porque a comunidade lhe confia a tarefa única e insubstituível do cuidado e da educação dos filhos, mas porque a família é o lugar primário no qual se forma a confiança interpessoal e comunitária;
-
Cooperação: a família habitua à cooperação no contexto das atividades cotidianas que são compartilhadas na medida da capacidade de cada membro. É parte da educação e da socialização familiar a assunção gradual de responsabilidades sobre o espaço de cada membro e sobre as tarefas comuns; e
-
Reciprocidade: as relações familiares não têm o caráter de trocas contratuais e/ou econômicas, nem o de serviços prestados em obediência a uma legislação externa, mas são antes marcadas pela obrigação moral e recíproca de respeito e cuidado próprias da filiação e da aliança conjugal.
Referências:
Cox, E. Truly Civil Society. Sidney: ABC Books, 1995.
Donati, P. Discovering the relational goods: their nature, genesis and effects. International Review of Sociology. 2019.
Donati, P. La famiglia come capitale sociale primário. In: Donati, P. Famiglia e capitale social nella società italiana. Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2003.
Prandini, R. Capitale sociale familiare e socialità: un’inagine sulla popolazione italiana. In: Donati, P. Famiglia e capitale social nella società italiana. Cinisello Balsamo: Edizioni San Paolo, 2003.
Putnam, R.D. The Prosperous Community: Social Capital and Public Life. The American Prospect. December 19, 2001. Disponível em: https://prospect.org/infrastructure/prosperous-community-social-capital-public-life/
Stone, W.; Gray, M.; Hughes, J. Social Capital at Work: How Family, Friends and Civic Ties Relate to Labour Market Outcome. Research Paper No. 31, April 2003. Melbourne, Australian Institute of Family Studies.