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REPARAÇÃO HISTÓRICA
Depoimentos de violações e defesa dos direitos humanos marcam audiência do GT Memória e Verdade LGBTQIA+ no Ceará
As atividades de escuta contaram com a participação de 100 pessoas de nove estados (Fotos: Bruno Fantoni)
Na década de 1970, o jovem Marcos Jânio de Souza deixou o município de Bacabal, no interior do Maranhão, junto com outros três amigos LGBTQIA+, para trabalhar no garimpo. O preconceito, a discriminação e a falta de oportunidades dominavam a sociedade da época em um país tomado pela ditadura militar.
Em 1986, já com o processo de redemocratização em curso, Márcia Jane, como ficou conhecida na região, passa a trabalhar em prol de pessoas com HIV/Aids, prostitutas e usuárias de drogas. É nessa época que ela funda o grupo Flor de Bacaba, dando visibilidade à defesa dos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+ no interior do estado. Referência local, ela morreu em setembro deste ano, vítima de um câncer.
“Márcia Jane é um corpo de resistência”, lembra o fundador do grupo Identidade LGBT, Delfin José Ferreira Filho. “Quem a conhecia, sabe que ela não se calava: ela ia para cima. E isso, de alguma forma, contribuiu para esse processo de transformação da sociedade”, afirma. Hoje, o Maranhão possui 42 organizações filiadas ao Fórum Estadual LGBTQIA+ e um plano estadual de políticas públicas voltadas à população LGBTQIA+.
O depoimento foi um dos 30 relatos da audiência pública da Região Nordeste do Grupo de Trabalho Memória e Verdade LGBTQIA+, que ocorreu de quarta (30) a sexta-feira (1º), em Fortaleza (CE). Ao todo, as atividades de escuta contaram com a participação de 100 pessoas de nove estados. Essa é a quarta etapa regional do evento que já realizou audiências públicas nos municípios de Belo Horizonte (MG), Brasília (DF) e Florianópolis (SC). O encontro da Região Norte está previsto para ocorrer em novembro, em Belém (PA).
Caçada humana
Na Bahia, há relatos de prisões de pessoas LGBTQIA+ por violação das normas de “moral e bons costumes” – na maioria das vezes, as acusações eram vagas e abstratas. Homens considerados fora dos padrões de gênero eram detidos nas chamadas “Delegacias de Jogos e Costumes” e obrigados a realizar trabalhos forçados como limpar o chão. “A polícia abordava as pessoas na rua sob a acusação de vadiagem”, conta o presidente do Grupo Gay da Bahia, Marcelo Cerqueira. “Éramos detidos e submetidos a situações de abuso e desumanização”, conta.As violações eram defendidas abertamente, inclusive, na imprensa local. O jornal A Tarde, de Salvador, chegou a publicar texto defendendo: “mantenha a cidade limpa, mate uma bicha por dia”, afirmava o anúncio. Em artigo publicado na década de 1980, o jornalista José Augusto Berbet escreveu que “matar veados não é crime, é caçada”. “A gente enlouquecia, fazia protestos, mas não adiantava nada”, relata Marcelo.
Caso Renildo
Em 1993, em entrevista a uma rádio local, o vereador por Coqueiro Seco, em Alagoas, Renildo José dos Santos, de 35 anos, declarou-se bissexual. Dias depois, sofreu uma tentativa de assassinato, a tiros, mas sobreviveu. Os algozes do parlamentar, então, invadiram o hospital onde ele estava internado e o sequestraram. Renildo teve a cabeça amarrada a um carro e as pernas presas a árvores. Em seguida, eles deram a partida.
O crime brutal teve repercussão internacional. Dois policiais militares e o fazendeiro José Renato Fragoso chegaram a ser condenados em primeira instância, mas o caso só foi concluído 22 anos depois. O filho do fazendeiro, o prefeito Tadeu Fragoso, foi absolvido por falta de provas. “É um caso que chocou a opinião pública internacional. Na Austrália, foi criado um prêmio de direitos humanos com o nome de Renildo, além de toda uma campanha que foi feita pela Anistia Internacional no mundo todo”, lembra o ex-presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo (ABGLT), o advogado José Marcelo Nascimento.
Direito à memória
O GT Memória e Verdade LGBTQIA+ tem como missão esclarecer as violações de direitos humanos cometidas contra a população LGBTQIA+ ao longo da história brasileira. O objetivo é garantir e efetivar os direitos à memória, à verdade histórica e à dignidade das pessoas LGBTQIA+.
O presidente do Grupo de Trabalho, Renan Quinalha, afirmou que as audiências são um processo de reparação jurídica e histórica que visam interromper ciclos de violência e exclusão. “Um povo que não tem memória, não consegue ter compromisso democrático na efetivação dos direitos humanos e acaba repetindo erros reiteradamente do seu próprio passado”, enfatizou.
O grupo é composto por oito representantes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e 17 da sociedade civil. A partir dos levantamentos realizados nos encontros, serão desenvolvidas pesquisas que subsidiarão o relatório final com recomendações ao Estado brasileiro para a reparação das pessoas LGBTQIA+.
A iniciativa é uma parceria com a Fundação de Apoio à Universidade Federal de São Paulo (FapUnifesp). “Essa realidade de violência é um fenômeno que atinge as pessoas LGBTQIA+ ao longo da história brasileira e que traz esse peso sobre os nossos corpos e sobre as nossas vidas ao longo do tempo”, constatou o diretor de Promoção e Defesa das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Hiago Mendes. Ele representou a secretária Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, Symmy Larrat.
Homenagens
Durante o encontro, foram homenageadas pessoas pioneiras na defesa dos direitos LGBTQIA+ como a advogada Janaína Dutra, primeira trans a ter registro na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); a professora Luma Nogueira de Andrade, primeira travesti a ter o título de doutora no país; a ativista Thina Rodrigues, fundadora da Associação de Travestis do Ceará; e Dandara dos Santos, assassinada em 2017 vítima de transfobia.Estado pioneiro
O Ceará foi a primeira unidade da federação a adotar o uso do nome social e a criar uma secretaria voltada, exclusivamente, à promoção de direitos e defesa das pessoas LGBTQIA+. “As violações de ontem estão presentes ainda hoje. E a gente precisa, cada vez mais, fortalecer as políticas públicas para que essas violações não voltem a se repetir amanhã”, defendeu a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Ceará, Mariana Lobo.
A criação desse fórum demonstra o compromisso do Estado brasileiro em reconhecer e reparar as histórias de violências sofridas pela população LGBTQIA+ no Brasil. “A região Nordeste, com sua rica diversidade cultural, também carrega as marcas profundas da violência e da discriminação contra a população LGBTQIA+ que, em sua maioria, é negra, pobre e vive em áreas periféricas”, apontou a secretária da Diversidade do Ceará, Michelle Benevides Meira.
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Texto: D.V.
Edição: B.N.
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