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ÓDIO OU OPINIÃO
Aporofobia: um preconceito motivado apenas por classe social?
A aporofobia é entrecruzada com outros tipos de preconceito (Foto: Divulgação)
“Eu falo para essas pessoas o seguinte: Se olhe no espelho e faça uma reflexão. Mas faça uma reflexão de forma profunda de alma e corpo. Você nunca errou? Nunca foi julgada? Que você possa se autoanalisar e se colocar no lugar da pessoa. Antes de você julgar alguém, se coloque no lugar dessa pessoa. Você gostaria que alguém te julgasse?”.
Essa seria a mensagem que Rogério Soares de Araújo, conhecido como Barba, gostaria de dirigir a quem já praticou aporofobia, termo criado pela filósofa espanhola Adela Cortina para definir o ódio aos pobres. Barba viveu por mais de 25 anos nas ruas. É presidente do Instituto Barba na Rua, que presta assistência a pessoas em situação de rua no Distrito Federal. Ele relata que já sofreu essa discriminação de várias formas, principalmente, ao entrar em mercados, lojas e até quando caminha pela rua.Para o ativista, o julgamento pelo olhar precede o julgamento verbal. “Você percebe que aquelas pessoas estão falando de você, estão te julgando pela aparência que você está ali. E isso é muito complicado para quem recebe esse olhar discriminatório, porque mexe com o psicológico da gente e acaba trazendo até uma doença. A pessoa fica com aquilo na cabeça e fica encucado com aquilo né!?”, lamenta.
Qual é a cara da pobreza no Brasil?
De acordo com Adela, a aporofobia, – originada de duas palavras gregas: "áporos", o pobre, o desamparado, e "fobéo", que significa temer, odiar, rejeitar – é entrecruzada com outros tipos de preconceito. Criado em um contexto europeu, o termo ganhou outros contornos e nuances no cenário brasileiro. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é formada de pessoas negras (pretas e pardas).
A Síntese de Indicadores Sociais do IBGE por Cor ou Raça aponta que, em 2022, as pessoas negras representavam mais de 70% das pessoas pobres e dos extremamente pobres no Brasil. Quando é observado o recorte por gênero em 2022, cerca de 32,3% das mulheres do país estavam abaixo da linha de pobreza e essa era a situação de 41,3% das mulheres negras e de 21,3% das mulheres brancas.
Para o Doutor James Moura Jr., professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará – que desenvolve pesquisas sobre grupos sociais em situação de pobreza, “é preciso entender a pobreza a partir de uma perspectiva interseccional, que identifica as pessoas em situação de pobreza, majoritariamente, negras e, apesar de as mulheres muitas vezes serem as que amparam economicamente as famílias, elas também estão mais inseridas em contextos de vulnerabilidade social”, explica.
Como é entendido o ‘jeito de pobre’ no Brasil?
Danda Bárbara, estudante do terceiro semestre do curso de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), havia acabado de sair da situação de rua, estava se recuperando de um período de depressão e encontrava no futebol feminino a motivação para continuar. Em um churrasco das aniversariantes do mês do grupo, aberto para familiares e convidados, ela foi abordada por uma mulher na fila do banheiro dizendo que ali não era o seu lugar.Nesse período, Danda, que é uma mulher negra, usava cabelo curto, estava de boné, bermuda e vestia um blusão. “Eu entendi, à primeira vista, que era porque, como eu estava de costas para essa mulher, ela pensou que eu fosse um menino, né? E aí, quando eu virei e perguntei se ela estava falando comigo, ela falou assim: – É, aqui não é seu lugar, não! Pessoas ‘desse jeito aí’ não podem ficar aqui!”
Depois de passar por isso, a mesma pessoa a acusou de ter roubado uma pochete de uma das participantes do evento. Danda percebeu que a reação discriminatória era em razão da sua aparência. “E ela me tratou dessa forma, entendeu? Ela me acusou de ter roubado essa pochete. E eu não roubei! Tanto que ela apareceu em um lugar onde eu não estava”, conta.
Após localizarem a pochete e avisarem no grupo de WhatsApp, Danda apontou a mulher que a acusou e não recebeu muito acolhimento das pessoas. “Tipo, a menina era filha de um cara que tem dinheiro e as pessoas não tomaram partido”. A situação acabou provocando a volta da depressão e prejudicou a vida de Danda em vários âmbitos, inclusive no trabalho. “Foi a situação que mais me machucou. Mas eu tentava, todo dia, levantar e tentar trabalhar e tentar ir e tentar fazer uma rota contrária”, narra.
Barba e Danda passaram por diversas situações de preconceito por terem vivenciado a situação de rua, em razão de características físicas ou pelas roupas usadas. “As pessoas olham para a gente e às vezes estamos ‘mal-vestidos’ e as pessoas discriminam muito. É tanta discriminação que às vezes não conseguimos acessar até alguns órgãos públicos”, conta Barba. Para ele, a sociedade discrimina o que ele entende como uma pobreza visual. “Porque às vezes você está numa situação naquele momento que pode ser passageira, né? Mas, mesmo assim, as pessoas te veem como uma poluição visual. Essa pobreza entra na mente dessas pessoas e elas começam a te julgar e te rotular”, analisa Barba.
“Por que um menino na periferia usando bermuda tactel e sandália kenner é lido como pobre? As pessoas acham chique usar um sobretudo sendo que o nosso país é um país tropical! Devia ser visto como lindo ver as pessoas usando bermuda e camisas de linho com botões abertos”, afirma Sávio Drew, pesquisador de cultura popular brasileira e designer multidisciplinar.
Nascido em Anhuma, um vilarejo no centro norte piauiense, Sávio busca em suas produções surpreender as passarelas ao vestir seus modelos com texturas, cores e cortes que subvertem a moda comumente associada ao Brasil. Para ele, o país é muito rico e plural e pode aproveitar de diversos aspectos, para além daqueles repetidos nos desfiles pelo mundo e acredita que a população precisa aprender, desde a escola, a valorizar aquilo que o país oferece como possibilidades estéticas, como uma forma de prevenir olhares discriminatórios.Sávio percebe que a leitura de pobreza das pessoas passa também por uma desvalorização da moda nacional. “Os brasileiros querem parecer com quem mora fora, enquanto muitos de fora buscam referências no Brasil”, constata. O designer relata que a obrigatoriedade de ter pessoas racializadas com cabelos trançados, com dreads e diferentes texturas na passarela da São Paulo Fashion Week, por exemplo, contribui para naturalizar na visão da sociedade essas características, nesses lugares onde esses corpos normalmente não são lidos como pertencentes.
Uma pobreza racializada
“Essa pobreza, ela tem uma cara, ela não é só uma pessoa em situação de pobreza em si, ela tem uma série de características e de uma realidade brasileira que se vinculam a essa”. Nessa fala, o professor James Moura propõe uma reflexão sobre os indicadores sociais que demonstram que a maioria das pessoas em situação de pobreza são negras. Além da desigualdade social motivadora da situação de vulnerabilidade intensificada numa parcela da população brasileira, existe um imaginário social relativo a pessoas pobres que desenha estereótipos de um tipo específico de gente considerada com “jeito de pobre”.
Relatos expõem que não tem a ver apenas com características físicas, mas também com estigmas relacionados à região onde a pessoa mora, a roupa que se veste e até a música que se ouve. Como explicado pelo pesquisador James Moura, a pobreza é atribuída para além da ausência de poder econômico. Outros marcadores identitários e culturais são vinculados e incidem no julgamento das pessoas sobre o que é ou não pobre. Joceline Gomes é dançarina, mestre em Dança pela UFBA e pesquisadora de danças negras. Ela analisa que, mesmo com a sanção do Dia Nacional do Funk, esta cultura ainda é discriminada e criminalizada.
“Assim como todas as manifestações culturais de origem negra, o Funk é visto por muitas pessoas como uma "cultura inferior", de menor valor, e que por isso não merece espaço, investimento ou política pública”, assinala. Joceline explica que, por ser uma cultura negra, criada e desenvolvida por pessoas que vivem nas favelas e periferias de diferentes estados, historicamente marginalizadas, a cultura criada por essas pessoas também acaba sendo marginalizada.
A dançarina avalia que quando se fala de "criminalização da pobreza" é preciso refletir que pessoas pretas e periféricas são criminalizadas, assim como suas produções culturais. Em sua leitura, o Funk tem sido associado à marginalidade, pobreza, analfabetismo, apologia ao crime e outras atribuições negativas mesmo quando suas letras e estéticas não abordam esses temas. “O motivo do Funk e suas linguagens serem associadas à "pobreza" é por ser uma produção cultural preta, e isso é, em última instância, apenas racismo”, reconhece.
A análise de Joceline vai ao encontro à percepção do sociólogo brasileiro Jessé de Souza, que prefacia o livro de Adela Cortina, “Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia”, quando analisa que o ódio aos pobres no contexto brasileiro está “atrelado ao profundo processo histórico escravocrata na qual se estruturou a sociedade brasileira sob as bases da escravidão, da violência sexual, racial e política e da desumanização dos pobres e dos negros”.
Mesmo com uma queda de 40% na proporção de pessoas em extrema pobreza entre 2022 e 2023, aferida pelo Observatório Brasileiro das Desigualdades, ainda há um longo caminho para reduzir a desigualdade social no Brasil. No entendimento do pesquisador James Moura, a solução passa pelo fortalecimento de políticas públicas já existentes, considerando o histórico de colonização no Brasil, com um olhar sensível para as especificidades dos grupos populacionais brasileiros e, em especial, para a população negra no país que, apesar de ser maioria, ainda é majoritária nos indicadores de violência e vulnerabilidade social.
Texto: R.M.
Edição: B.N.
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