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DEFESA DA DEMOCRACIA
Retalhos da memória que tecem o amanhã: conheça a história da Bandeira das Liberdades Democráticas, símbolo das Caravanas da Anistia
Imagem da Bandeira das Liberdades Democráticas construída ao longo de seis anos
Neste 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) – alinhado à defesa da democracia, reparação e não-repetição das violações de direitos ocorridas na ditadura militar – relembra um símbolo de memória e verdade construído país afora entre 2008 e 2014. Batizada de “Bandeira das Liberdades Democráticas”, a peça foi costurada ao longo das Caravanas da Anistia, iniciativa que percorreu o Brasil no âmbito da Comissão de Estado de Anistia até 2016, ano do golpe político sofrido pela então presidenta Dilma Rousseff.
Para recuperar essa história e com o intuito de preservar a memória desse período, o MDHC conversou com integrantes da Comissão de Anistia que vivenciaram as Caravanas da Anistia e fazem parte da atual estrutura do órgão. Lotadas no gabinete ministerial, as então coordenadoras de projeto educativo da Comissão, Marleide Rocha; e de julgamento, Natália Costa, contam em detalhes a história deste símbolo. O portal também conversou com a atual presidenta do colegiado, Eneá de Stutz e Almeida, que também integrou a Comissão entre 2009 e 2018.
Para não esquecer
Construída pela soma de retalhos de bandeiras e símbolos de instituições como universidades, sindicatos, associações, colegiados, igrejas e movimentos sociais, a “Bandeira das Liberdades Democráticas” foi costurada a cada sessão de memória da Comissão de Anistia entre 2008 e 2014, tendo passado por todas as regiões brasileiras ao longo das Caravanas da Anistia. Foram realizadas mais de 80 caravanas até 2016. Antes, porém, em 2014, um assalto a um transporte dos Correios impediu que a bandeira permanecesse “viva”.
Em paralelo com o sombrio período da ditadura militar e de ciclos políticos que flertavam com a repressão, a exemplo do período 2019-2022, a bandeira também conta a história do Brasil. Criada há 21 anos, a Comissão de Estado da Anistia passou por diversas fases. Em um primeiro momento, as reparações indenizatórias eram a única entrega, mas foi a partir de 2007, como relembra a então coordenadora, Marleide Rocha, que a Comissão passou a desempenhar uma função de participação social e pedagógica para além da reparação financeira.
“Em abril de 2007, sob gestão do ministro da Justiça Tarso Genro, Paulo Abrão assumiu a presidência da Comissão de Anistia. Ele apresentou uma proposta arrojada e inovadora para o colegiado. Os primeiros seis meses foram dedicados quase que exclusivamente para a classificação dos processos pendentes de apreciação, que foram organizados por temáticas”, relembra Marleide Rocha ao citar que, naquele tempo, todos os processos eram físicos e ainda não havia o trâmite contemporâneo de digitalização dos arquivos.
Hoje, Marleide integra a estrutura do MDHC como Coordenadora-Geral do Gabinete Ministerial. À época, ela atuou como coordenadora de projeto educativo na Comissão. Colega de trabalho também na atual gestão, Natalia Costa foi coordenadora de julgamento do colegiado. Juntas, elas relembram memórias de quando as Caravanas da Anistia percorreram diversas cidades do país.
Parte desse trabalho está registrada no livro “Caravanas da Anistia: o Brasil pede perdão”, editado pelo então Ministério da Justiça, em 2012, com detalhes das primeiras 50 caravanas. Nesse bate-papo, as coordenadoras nos contam o que significou o novo momento para as políticas de memória, reparação e justiça no Brasil.
“As caravanas, além de um ato oficial, público e de muita mobilização, eram um momento de formação política também. A Comissão de Anistia ia aos estados mediante articulação com parceiros locais, como movimentos sociais e instituições de ensino, e realizava sessões reais de julgamentos de requerimentos de anistia”, conta Marleide.
Diferenciando-se dos processos de julgamento afastados dos locais em que viveram as vítimas da ditadura, Natália Costa lembra que as caravanas permitiram a abertura da participação social, aproximando comunidades brasileiras da política de reparação, memória e não-repetição do ponto de vista pedagógico.
“Durante as Caravanas, eram apreciados os requerimentos de anistia de pessoas que sofreram perseguição naquelas localidades, nos mais diversos pontos do Brasil. Essa iniciativa também era um pedido de desculpas”, relembra Marleide, complementando que não era só a reparação financeira, mas a reparação histórica também, porque isso gerava um processo de reconhecimento da pessoa perseguida no seio da sua própria sociedade, pelos seus familiares, pelos seus pares, pelos seus vizinhos, pela sua comunidade”.
As fases da anistia no Brasil
Os pedidos de desculpas pelo Estado brasileiro não atravessaram toda a história da Comissão de Anistia. Marleide e Natália frisam que, entre 2019 e 2022, tal medida de reparação histórica foi apagada das sessões do colegiado. A adoção do pedido formal de desculpas foi retomada em 2023, pela atual gestão da Comissão de Estado, vinculada ao MDHC, voltando a se preocupar com temas associados a memória, verdade e justiça de transição.
Se antes de 2007, na Comissão de Anistia, havia maior prevalência da reparação indenizatória, foi a partir do surgimento das Caravanas da Anistia que a reparação histórica passou a se destacar na condução dos trabalhos. “Há casos de pessoas que abriam mão da indenização, mas queriam receber em vida o pedido de desculpas”, contam emocionadas.
“As caravanas eram importantes porque criavam um ambiente para o diálogo intergeracional em universidades, escolas, comunidades, sindicatos e praças públicas”, relembra Marleide.
Tecendo o tecido social
Neste contexto, a Bandeira das Liberdades Democráticas passou a ocupar lugar de protagonismo nas Caravanas da Anistia. “Às vezes, as pessoas que participavam do evento não era nem as pessoas que tinham sofrido a perseguição, mas era colega de um, de outro e passavam a se conhecer”, conta Natália.
Pano por pano, retalho por retalho a bandeira foi crescendo. “Ela foi ficando gigante e linda. Então, passamos a usá-la como toalha de mesa da solenidade. Ela demonstrava todas as forças políticas comprometidas com essa luta. Para nós, a soma de cada retalho era como fortalecer laços, reafirmar compromissos e alinhar o tecido social desgastado”, resume Marleide.
Elas contam que não costumavam despachar a bandeira junto à mala no aeroporto, preferindo levar no colo. “Era uma forma de cuidado, pois a bandeira era símbolo da construção coletiva, e os processos democráticos só se dão de maneira coletiva”, afirma Marleide. Entretanto, em um determinado momento, pesando quase 30 quilos e diante da impossibilidade de levar em mãos, a bandeira foi mandada previamente para o local onde se realizaria uma caravana. Porém, por uma fatalidade, ela não chegou ao seu destino.
“Recebemos a informação de que o carro dos Correios havia sido assaltado com toda a carga”, lamentam ao relembrar que todos queriam deixar sua marca na bandeira como se projetassem ao futuro. “A gente fez a formalização do processo e depois começamos uma tentativa de reconstituir a bandeira. Contamos a história, dissemos o que aconteceu e pedimos aos parceiros que enviassem novamente a sua contribuição, mas o projeto foi interrompido”, rememoram.
“Quem grita vive contigo”
Em documentário produzido pelo Ministério da Justiça à época dos 30 anos da Lei de Anistia, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, aparece ainda jovem em movimento que pedia anistia ampla, geral e restrita. “Com Lula ou sem Lula, com diretoria ou sem diretoria, sem comissão ou com comissão, vocês sairão vencedores dessa luta”, bradou o líder brasileiro diante de movimentos populares que sacudiram o alicerce da ditadura. Apesar de inconclusa, no sentido de não ter finalizado os trabalhos de memória, verdade e justiça de transição, a Lei de Anistia surgiu como marco legislativo nacional.
Contemporâneos desse período, os versos da canção Menino, composta por Ronaldo Bastos e Milton Nascimento, denunciam a repressão da época e ressaltam o papel de sujeitos coniventes e resistentes à repressão militar. “Quem cala consente na sua morte (...) quem grita vive contigo”, diz a letra.
Para a atual presidenta da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, a ideia da Bandeira das Liberdades Democráticas é o próprio fundamento do colegiado diante da sociedade civil. Ela explica que as Caravanas da Anistia tinham também o objetivo de potencializar a participação social junto à agenda de memória e verdade.
“Ao longo dos anos, as sessões de anistia eram feitas em caravanas exatamente para que houvesse uma maior participação da sociedade civil, da população local nos lugares onde os fatos aconteceram, de maneira didática, explicando e trazendo à tona a verdade dos fatos de toda a perseguição política ocorrida por parte do Estado contra os seus cidadãos no período da ditadura”, contextualiza.
“Nesse evento, havia toda essa cerimônia de entrega de um pedaço de pano com os símbolos das instituições locais que estavam ali participando daquela caravana, ou que tinham seus integrantes sendo anistiados naquelas sessões de julgamento. Eram momentos bastante emocionantes. Eram ritos de entrega desses retalhos que formavam essa enorme colcha, essa enorme bandeira da anistia” relembra.
Para Eneá, a bandeira também simbolizava o entrelaçamento de passado, presente e futuro. “Ao juntar essas memórias, ao costurar essas memórias locais e as transformando na memória social de defesa da democracia e de luta pela liberdade, nós construímos a memória brasileira da verdade histórica que foram essas vidas, essas experiências, esses atos de heroísmo de brasileiras e brasileiros ao longo dos anos de repressão, para brigar e lutar por democracia”, remonta Eneá de Stutz e Ameida.
Texto: R.D.
Edição: P.V.C.
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