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MEMÓRIA E VERDADE
A anistia a Zé Celso Martinez Corrêa: o pedido de desculpas do Estado brasileiro que ecoa na alma dos defensores de direitos humanos do Brasil
(Foto: Paulino Menezes / Comissão de Anistia, 2010)
Há 13 anos, o Estado brasileiro realizou uma das mais emblemáticas e inusitadas sessões de julgamento da Comissão de Anistia. Na pauta, o requerimento de anistia política do ator e dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023). O artista foi perseguido, preso e torturado pela ditadura militar. Assim como muitos brasileiros que lutaram e sobreviveram ao regime, o ator teve de deixar o país para viver no exílio.
Nesta sexta-feira (6), data em que se completam três meses da morte do dramaturgo, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) conversou com personagens que participaram da sessão da Comissão de Anistia à época com intuito de resgatar a memória deste episódio histórico.
A sessão da anistia de Zé Celso aconteceu durante a 35ª Caravana da Anistia, no Teatro Oficina em São Paulo, no dia 7 de abril de 2010. A cerimônia foi organizada pelo próprio dramaturgo. Naquele dia, os ritos formais aconteceram em meio a um espetáculo teatral inspirado no “Banquete de Platão” como uma celebração ao amor. O hino nacional foi entoado em ritmo de bossa nova e rock and roll. A Comissão reconheceu os danos físicos e morais pela repressão sofrida e por ter cerceado e prejudicado Zé Celso e seu grupo de teatro pelas censuras impostas. Em seu veredito, por unanimidade, foi concedida a anistia política com reparação econômica de caráter indenizatório.
Tentativa de assassinar a alma brasileira
Aos 73 anos, Zé Celso recebeu em vida o pedido de desculpas formal pelo Estado brasileiro. “Muitos achavam mesmo que eu tinha morrido, me apontavam como vítima que a ditadura tinha eliminado, consideravam que eu e o teatro não teríamos mais uma segunda vida. Foram 15 anos de luta para provar a mim mesmo que eu estava vivo. Reaberto o teatro, foram mais 10 anos para provar que nós tínhamos ressuscitado. Eu e o teatro fomos assassinados socialmente pela ditadura”, declarou Zé Celso à época.
Com lágrimas nos olhos, o dramaturgo recebeu o perdão do presidente da Comissão de Anistia à época, Paulo Abrão, que na fala de abertura da sessão reconheceu os danos do Estado. “Nós compreendemos que as autoridades públicas brasileiras têm mais que a obrigação de expressar publicamente o dever de reparação a todos aqueles que o Estado autoritário prejudicou, perseguiu, causou danos materiais, morais, danos psicológicos, interrompeu projetos de vida, interrompeu o direito à vida, à saúde, ao trabalho”, elencou.
“Os brasileiros no passado sofreram essas perseguições, porque resistiram, porque não baixaram a guarda, porque não aceitaram que se imperasse no nosso país um regime autoritário, a ausência de liberdades. É mais do que dever do Estado brasileiro prestar essa homenagem pública. A reparação econômica é apenas um aspecto dessa reparação moral e muito maior que esse dever de prestar homenagem e reconhecimento público, de prestar essa homenagem às pessoas que lutaram para que nós possamos hoje ter as liberdades que usufruímos. Dentre elas Zé Celso Martinez”, afirmou.
O voto do conselheiro relator
“...nenhuma reparação econômica pode suprir os erros do Estado, que violou a intimidade e o corpo de seus cidadãos, alterou seu curso profissional ou os impeliu a abandonar a Pátria para garantir alguma parcela de sua liberdade individual. Entendo não haver indenização que repare o tolhimento dos direitos à liberdade, apague o sofrimento ou calcule o valor de sua luta particular pela democracia do país...”, destaca o trecho do voto do relator para o caso, o ator, advogado e conselheiro, Prudente José Silveira Mello.
“A memória que guardo desse dia que fizemos a anistia do Zé Celso?”, questiona o conselheiro. “Diria que é uma das mais intensas. Eu fiz teatro profissional e tive o privilégio, então, de fazer o voto condutor do Zé Celso Martinez. De certa forma, eu usei também no voto o recurso da dramaturgia, colocando como se fosse um espetáculo teatral com um epílogo e também dois atos que precediam esse epílogo, que era a narrativa da condição de perseguição que sofreu o Zé Celso”, relembra o conselheiro que fez o discurso para uma plateia de mais de 300 pessoas.
Na avaliação de Prudente, nos últimos 10 anos a Comissão sofreu “um duro baque e um retrocesso muito grande a partir do afastamento da ex-presidenta Dilma Rousseff”, o que deixou extremamente frustrados os anistiandos e as anistiandas. “Foi realmente um desserviço para a sociedade brasileira no que diz respeito à questão de justiça de transição, que trabalha com memória, verdade, reparação e não repetição. Agora, a retomada, obviamente, é mais difícil porque a Comissão de Anistia se desestruturou com a perda de profissionais que trabalhavam na busca de garantir o cumprimento da lei”. O conselheiro cita ainda os atos antidemocráticos do último 8 de janeiro e vê com certa preocupação o que aconteceu, principalmente quando se busca que jamais se repita o que já aconteceu na ditadura militar.
Para que não mais se repita
A integrante da Comissão de Anistia e uma das organizadoras da Caravana, Marleide Ferreira Rocha, que atualmente é coordenadora-geral de Administração e Produção Documental do MDHC, destaca a relevância do momento. “O Zé Celso foi muito importante para o movimento da anistia. Na época, muitas pessoas tinham receio de pedir reparação por várias razões, muitos não queriam entrar em contato com o Estado novamente, pelos traumas sofridos. Ele foi exemplo para encorajar as pessoas a também reivindicarem a anistia”, relata.
A atual presidenta da Comissão de Anistia e conselheira à época, Eneá de Stutz e Almeida, afirma que a Caravana representa a mesma coisa até hoje: o reconhecimento de que a cultura e a arte estão entre as maiores vítimas da repressão. “O processo do Zé Celso demonstrou isso com muita nitidez. A gente viu nesses últimos quatro anos o quanto que o setor cultural e artístico incomoda pretensos ditadores. O quanto a cultura ficou esvaziada, foi perseguida. Foram quatro anos de ensaio para um possível golpe que, ainda bem, não aconteceu, mas o ensaio geral foi feito. O processo do Zé Celso demonstra o quanto a arte e a cultura são revolucionárias, são instrumento de transformação da sociedade, instrumento para a nossa reflexão e a inquietação com as injustiças”, enfatiza.
Histórico
As Caravanas da Anistia começaram em 2008, percorrendo todo o Brasil com o objetivo de tornar mais transparente os trabalhos do colegiado e aproximar os cidadãos das situações vivenciadas pelos perseguidos pela ditadura e conhecer as atrocidades cometidas pelo regime autoritário. Elas contaram com a participação de governos, universidades, organizações da sociedade civil nacionais e internacionais.
Foram realizadas entre 2007 e 2016, quando também foi interrompido o pedido formal de desculpas formulado pelo Estado aos anistiados políticos no final das sessões. Com a reinstalação da Comissão de anistia em março de 2023 pelo MDHC, o Estado brasileiro voltou a se desculpar pelas atrocidades cometidas.
A Comissão de Anistia é um órgão do Estado brasileiro que na época era coordenado pelo Ministério da Justiça e hoje está sob o guarda-chuva do MDHC. Foi criada para reparar moral e economicamente as vítimas do Estado pelos atos de exceção, arbítrio e violações aos direitos humanos cometidos no período de regimes autoritários entre 1946 e 1988.
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Texto: R.L.
Edição: R.D.
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