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ARTIGO
Tortura: uma realidade indigesta dentro de casa?
A cada 26 de junho, a sociedade é relembrada e mobilizada diante de uma realidade indigesta que convoca todos para a ação em prol da dignidade humana. Trata-se do “Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura”, aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas, de 12 de dezembro de 1997.
Essa data recorda que a dor da vítima é uma dor no presente e não uma narrativa de passado. É uma marca danosa que afeta o indivíduo vitimado e macula nosso senso de humanidade e nossa dignidade coletiva. Precisamos, hoje, de ações de aproximação, amparo e escuta a quem sofre e, também, a quem precisa descobrir caminhos diferentes para lidar com conflitos pessoais e profissionais.
A tortura é um ápice de crise na interação humana que tem seu lugar, em especial, nas situações em que se deseja obter do outro um determinado comportamento de colaboração. Essa colaboração pode ser a satisfação de desejos pessoais ou de uma ordem normativa. A opção da tortura é uma tragédia, pois, seja em nome de aspirações pessoais, seja em nome de uma ordem instituída, o agente busca um determinado objetivo, isto é, uma colaboração, utilizando-se de um meio que frustra a possibilidade de uma satisfação mútua e compartilhada ao longo do tempo. Após o ato de tortura, as dores da vítima, assim como a falta de credibilidade imposta à vítima pelo seu agressor, inviabilizam a acomodação pacífica e até voluntária dos conflitos.
A tortura emana, também, do desprezo à condição de pessoa humana da vítima, pelo não reconhecimento de se estar lidando com alguém em condição de igualdade, pelo prazer sórdido e pelo desejo de punir para além dos limites da razoabilidade e da legalidade. E, ainda, volta-se ao próprio agressor, ferindo sua própria humanidade ao sucumbir aos desejos e instintos mais perversos que não são vistos nem mesmo nas relações entre animais.
Esse processo frustra não apenas a harmonia das relações humanas. Frustra, também, o projeto de nação que preserva o direito à vida dentro de um Estado de Direito. Tal projeto pede a colaboração de cada cidadão em abrir mão da violência para resolver seus conflitos em nome do compromisso de preservar a integridade física e moral do outro, sempre que possível, mesmo diante de um comportamento indesejado ou criminoso. Para situações em que a força é necessária, órgãos convencionalmente autorizados a utilizá-la o fazem dentro do objetivo de conter ameaças à própria vida. O estado de preservação do direito à integridade física e psíquica deve prevalecer contra um estado de “execuções sumárias”.
A definição legal do crime da tortura, prevista na Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, descreve esse modo trágico de fazer o outro se curvar a uma vontade de ordem pessoal ou institucional. Trata-se da ação de constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para, conforme disposto na supramencionada norma: obter informação, declaração ou confissão; para provocar uma ação ou omissão criminosa; em razão da discriminação racial ou religiosa; ou para submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo ou medida de caráter preventivo.
Os dados extraídos do Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, dão respostas preocupantes. No ano de 2020, a tortura física ou psíquica foi citada em 32,7% do total denúncias, desse percentual, 87,5% das denúncias de tortura teriam ocorrido em ambiente doméstico (casa da vítima, casa de terceiro, casa do suspeito, casa de familiar e/ou casa onde reside a vítima e o suspeito). Em 2021, aproximadamente 36% das denúncias citaram alegações de tortura física ou psíquica, em que 89% das vezes as denúncias de tortura foram em contexto de ambiente doméstico. Até o início de junho de 2022, os dados parciais trazem um aumento preocupante, pois a tortura física ou psíquica foi citada em 48% das denúncias recebidas pelo Disque 100, e, dentro desse percentual, em 85% das vezes, as denúncias de tortura tiveram como local o ambiente doméstico.
Se a tipificação legal da tortura está realmente presente em todos os casos denunciados, trata-se de um dado complexo de obter, pois seria necessário investigar o tratamento de cada denúncia, depois cada inquérito e, por fim, cada processo judicial, sem contar os inúmeros casos não apurados devido às dificuldades de obtenção de provas concretas.
O que podemos afirmar pelas denúncias enviadas ao Disque 100 é que, em 2020 e 2021, a prática da tortura foi denunciada em uma de cada três denúncias enviadas ao Canal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Já, em 2022, até o início deste mês de junho, quase metade das denúncias registraram que o fato envolveu o cometimento de tortura física ou psíquica.
Além disso, pode ser afirmado, também, que de 2020 a 2022, mais de 85% das vezes em que a tortura foi denunciada, a violação teria ocorrido em ambiente doméstico.
Assim, se a real tipificação da tortura é uma afirmação ainda difícil de apurar, por outro lado, é fato que a tortura está presente na percepção popular como forma de violência presente nos espaços domésticos.
Esse cenário permite dizer, por fim, que a atenção à vítima da tortura nunca esteve tão necessária e carente deum olhar amplo e transversal. Ao mesmo tempo, indica que prevenir e coibir esse tipo de prática dentro das residências, constitui desafio inescapável das políticas públicas. Os dados do Disque 100 mostram que, além dos casos noticiados nos locais tradicionais de privação de liberdade – que contribuíram para que, há sete anos, o sistema penitenciário fosse declarado com “estado de coisas inconstitucional” –, a tortura também é um tema doméstico e que faz vítimas escondidas e vulneráveis no foro íntimo das relações privadas. Mulheres, crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência são alvos comuns desse crime pouco punido em nosso país.
É tempo de um resgate de nossos lares como espaços de acolhimento, proteção e desenvolvimento de relações harmoniosas e capazes de solucionar conflitos sem o recurso da violência. É hora de voltarmos aos valores basilares que levaram à Declaração Universal dos Direitos Humanos e a nossa Constituição de 1988 a considerem a família como “elemento natural e fundamental”, “base da sociedade” e merecedora de especial proteção da própria sociedade e do Estado.
Serviço
Casos de tortura podem ser denunciados à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos:
- Disque 100 – violações sobre tortura em geral
- Disque 180 - violações contra a mulher
- WhatsApp - 61 99656-5008
- Videochamada em Libras
- Telegram – pelo canal Direitoshumanosbrasil
- Pelo Aplicativo da Ouvidoria
- Atendimento Internacional - (61) 3535-8333 – Acesse as instruções por país.
- Pelo Fala.Br
Secretaria Nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, da Família e do Direitos Humanos