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Autoridades se comprometem com maior proteção de comunicadores vítimas de violência
Diversas autoridades públicas afirmaram seu compromisso com a garantia da liberdade de expressão e a proteção dos comunicadores durante a audiência pública “Estratégias de enfrentamento à violência contra comunicadores no Brasil”, realizada no dia 8 de maio de 2018, em Brasília, pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Na audiência foram ouvidos comunicadores vítimas de violência, organizações da sociedade civil que se debruçam sobre o tema no país e representantes da Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
A Procuradora Geral da República (PGR), Raquel Dodge, defendeu a criação de um marco regulatório mais protetivo a comunicadores que sofrem ameaças ou são vítimas de violência em decorrência da atividade profissional no Brasil. Da mesma forma, o Secretário Nacional de Justiça, Luiz Pontel de Souza, também se comprometeu em avançar com a agenda do combate a violência contra os jornalistas.
Entre as autoridades públicas presentes, estavam a procuradora da República, Ana Carolina Roman, a secretária de Direitos Humanos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ivana Farina, a defensora pública federal e presidente do CNDH, Fabiana Severo, a juíza federal e representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Jaiza Fraxe, e o assessor especial do Ministério de Direitos Humanos (MDH), Paulo Gustavo.
O Relatório Final do Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil”, publicado em 2014, foi citado em diversos momentos como sendo uma referência para o debate. Criado em 2012 pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), o GT identificou 321 casos de violência entre 2009 e 2014, dos quais 18 homicídios e 13 tentativas de homicídios, além de propor uma série de recomendações para reverter esse quadro.
A jornalista do conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, Gizele Martins, relatou durante a audiência mais de dez casos de ameaças e intimidações que sofreu ao longo dos últimos 15 anos cobrindo pautas sobre segurança pública e direitos humanos na capital fluminense. O radialista e blogueiro Claudio André, do município de Bom Conselho, no interior de Pernambuco, testemunhou sobre o violento ataque do qual foi vítima em 2017, quando foi chicoteado por um de seus agressores enquanto outro apontava uma arma na sua direção. Ele vinha denunciando com frequência em seu programa descasos por parte do poder público local.
O advogado Valério Luiz Filho, também apresentou durante a audiência as investigações e o processo em torno do assassinato de seu pai, o jornalista esportivo Valério Luiz de Oliveira, morto em julho de 2012 em Goiânia. Passados quase seis anos, o caso continua em aberto e ainda não há condenações.
A coordenadora do Programa de Proteção da organização Artigo 19 Brasil, Júlia Lima, traçou um panorama da situação atual do Brasil no que se refere a violência “concreta e sistemática” contra comunicadores.
“Na maioria dos casos apurados, os comunicadores cobriam questões políticas e realizavam denúncias de irregularidades na gestão pública e o que motiva esses ataques é a tentativa de interromper a circulação dessas informações. Por isso mesmo, os suspeitos autores em cerca de 70% dos casos são agentes do Estado, como políticos e outros agentes públicos, como policiais”, explica Júlia Lima. Ela acrescentou ainda que, na maioria dos casos, as investigações sobre os crimes não avançam e, quando isso acontece, só se chega aos executores, e não aos mandantes, que seguem impunes. Grande parte dos crimes ocorrem em cidades pequenas, com menos de 100 mil habitantes, nas regiões Nordeste e Sudeste, que concentra mais da metade das violações apuradas.
O Brasil ocupa a 102a posição entre 180 países, no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa elaborado pela Repórteres sem Fronteiras (RSF).
“Vale lembrar que toda violência contra um comunicador no exercício de suas funções não viola apenas o seu direito individual à liberdade de expressão e a sua integridade física, mas também o direito coletivo à liberdade de expressão da sociedade como um todo, de receber e buscar informações”, afirmou Artur Romeu, coordenador do Escritório para a América Latina da organização
“Apesar da dimensão que a violência contra comunicadores ganhou nos últimos anos, com ao menos 27 assassinatos no país desde 2010, este segue sendo um problema com pouca visibilidade no Brasil, marcado por uma ausência quase absoluta de políticas públicas que possam ajudar o país a reverter esse quadro”, completa Artur.
Uma das expositoras da audiência, Gizele Martins, comunicadora popular e moradora do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, fundadora do jornal comunitário "O Cidadão", foi ameaçada diversas vezes pela sua atuação como comunicadora na favela. “Nesses 15 anos de atuação, foram 11 ameaças de morte. A primeira foi em 2007, ao denunciar a remoção de 40 casas em uma das favelas que compõem o complexo da Maré. Eu não sabia que aquele poder local estava envolvido com as milícias e com a Prefeitura do Rio de Janeiro”, relata Gizele, que afirma ter sido ameaçada de morte pela milícia após a cobertura da remoção.
“Me trancaram dentro de uma associação, colocaram uma pistola na minha cara, e falaram que se eu não parasse iriam me matar. Que nem eu e que nenhum outro comunicador poderia entrar ali naquela favela”, conta Gizele, que não se intimidou e continuou atuando. “Continuei fazendo aquilo que nasci pra fazer, que é denunciar as violações do Estado que ocorrem dentro da minha própria localidade”, completa Gizele.
Ela continuou a relatar uma sequência de ameaças, a maioria feita por agentes do próprio Estado, como policiais civis e militares, e destaca que depois de 2013, com a favela da Maré ocupada pelas Forças Armadas por conta dos megaeventos, como Copa e Olimpíadas, as ameaças se intensificaram. “Tivemos soldados do Exército entrando na casa de comunicadores comunitários, revistando comunicadores de 15 a 20 vezes por dia, revistando celulares, computadores, bolsas, o que tínhamos na mochila, conta.
Ela descreve, ainda, aquela que considera a pior ameaça que sofreu na vida: a clonagem de uma página que comunicadores da Maré fizeram para denunciar as violações do Exército, a partir de vídeos, fotografias e depoimentos que recebiam dos moradores pedindo pra denunciar. “Clonaram a nossa página, ao que tudo indica, o próprio Exército ou a polícia, e começaram denunciar o poder local. Isso fez com que fez as próprias facções da localidade se voltassem contra nós. Se eu não tivesse saído da Maré naquele minuto, sem nenhuma mochila, só com a minha identidade, eu teria sido assassinada, com certeza.as quando o Exército saiu da Maré.
O alagoano Cláudio André, blogueiro e radialista com 27 anos de atuação, também expôs relatos de graves ameaças e violências que sofreu no exercício da atividade jornalística. Natural de Olho d'Água das Flores, no sertão de Alagoas, e fundador da única rádio da cidade, Cláudio recebeu a primeira ameaça ainda em 1999, após denunciar a morte de uma criança cuja família sem-teto foi abrigada pela prefeitura em casas de madeira cobertas com plástico preto. “As pessoas estavam morando nessas casas improvisadas. Uma criança veio a óbito por causa da temperatura, o alto calor, numa região que frequentemente faz 40 graus, e eu denunciei esse descaso público”, relata. Ele conta que, após ter feito a denúncia no seu programa de rádio, os principais jornais do estado de Alagoas também deram visibilidade ao fato. “Depois disso, descobriram o telefone da minha casa e eu comecei a receber ameaças por telefone. Diziam que eu ia receber um tiro de 12, que ia ser metralhado, que iriam cortar a minha língua, e assim por diante”, relata o jornalista, que teve que acabar com o programa e mudou de cidade.
Morando há 10 anos em Bom Conselho, fronteira de Alagoas e Pernambuco, onde mantém um blog e dois programas de denúncias na rádio comunitária local, Cláudio sofreu, no ano passado, mais uma grave violência em decorrência da sua atuação como comunicador: teve sua casa invadida por homens armados, que o agrediram com chicote e proferiram ameaças sem roubar nenhum pertence. Claudio suspeita da implicação de agentes ligadas à políticos locais, já que seu trabalho como jornalista afetava diversos interesses de grupos ligados ao poder na região. Ele diz que levantou as informações sobre mandantes e executores da ameaça, e repassou à Polícia, mas reclama da impunidade.
“O que faz crescer a violência contra comunicadores é a impunidade. A polícia colocou na minha ocorrência ‘lesão corporal dolosa consumada’, mas foi uma tentativa de homicídio que eu sofri”, reclama o jornalista, afirmando que a ameaça, feita para lhe dar um “cala a boca”, continua impune. “Na delegacia, se insinuou que eu fui o culpado da agressão que eu sofri porque tomei partido. Mas eu estava defendendo uma causa justa, em defesa dos professores em greve”, completa.
Valério Luiz Filho, advogado, presidente do conselho estadual de direitos humanos de Goiás, e filho do jornalista e cronista esportivo Valério Luiz, assassinado em Goiânia em 5 de julho de 2012 aos 49 anos, também participou da audiência. Ele conta que o pai, que atuava há mais de 30 anos como jornalista esportivo, foi alvejado com seis disparos na porta da rádio em que trabalhava. “Na época, primeiro semestre de 2012, ele criticava muito um clube da capital, o Atlético Clube Goianiense, e as críticas envolviam questões relacionadas à composição da diretoria do clube”, explica o advogado
Valério que lembra que toda a diretoria do clube era formada por pessoas influentes da elite local, que utilizavam o clube para questões que extrapolavam o futebol. “Esse tipo de circunstância que meu pai comentava nos programas esportivos. Falava que os patrocinadores eram tenebrosos, que o clube teve uma ascendência meteórica por causa da injeção de dinheiro, que existia lavagem de dinheiro dentro do clube além de outras denúncias”, lembra Valério, que menciona também que os patrocinadores do clube na época eram empresas envolvidas em escândalos de corrupção.
Em fevereiro de 2013, investigações da Polícia Civil goiana concluíram que Maurício Borges Sampaio, à época vice-presidente do Atlético Clube Goianiense, foi o mandante do assassinato de Valério Luiz. A Polícia Civil de Goiás também indiciou Marcus Vinícius Pereira Xavier, Urbano de Carvalho Malta e Djalma Gomes da Silva como articuladores do homicídio, e o policial militar Ademá Figuerêdo Aguiar Filho como autor dos disparos.
O advogado conta que, no meio de 2014, uma decisão judicial mandou todos os réus a júri-popular, no entanto, “o processo se arrastou em tribunais superiores, que têm muitas possibilidades de recursos internos”. Atualmente, o processo está em fase de júri-popular, mas ainda não haverá o julgamento porque um dos réus entrou com incidente de insanidade. “Como a junta médica do Tribunal de Justiça marcou exame para daqui a seis meses, outubro. Vai ser mais um mês para emitir o laudo, então, o júri deve ser só no primeiro semestre do ano que vem”, lembra Valério, mencionando a apreensão que isso gera na família. “Já são fazer quase seis anos e é importante destacar a quantidade de empecilhos.
Taís Ladeira, da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), também classificou como atentados à liberdade de expressão a burocracia no processo de concessão das rádios comunitárias e a perseguição pela qual essas emissoras passam. “A nossa liberdade de expressão é tolhida na burocracia para ter acesso à concessão das rádios, na perseguição, na falta de política pública”, expõe a jornalista, que também reclama da invisibilidade desses comunicadores dentre os ameaçados, sobretudo as mulheres, por não estarem categorizados em organizações profissionais e por estarem em áreas remotas.
Obrigações do Estado e encaminhamentos
Na segunda mesa da audiência, a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) apresentou uma série de recomendações ao poder público.
Tatiana Guasti, advogada da Relatoria para a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos relatou que a Relatoria tem ressaltado, com base na doutrina e jurisprudência interamericana, a importância de três obrigações positivas, que emanam dos direitos à vida, à integridade pessoal, e à liberdade de expressão. “São elas a obrigação de prevenir, a obrigação de proteger e a obrigação de investigar, julgar e punir penalmente os responsáveis por tais crimes. Essas três obrigações se complementam reciprocamente”, completa.
Ivana Farina, Secretária de Direitos Humanos e Ação Coletiva do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), informa que o Conselho está concluindo um mapeamento dos casos pendentes de julgamento de crimes graves relacionados à liberdade de expressão. “Agora nós vamos trabalhar para acompanhar as ações penais e os inquéritos em andamento”, afirma Ivana, destacando que são cerca de 50 casos.
Para Iara Moura, conselheira do CNDH e integrante do Coletivo Intervozes, que coordena a Comissão Permanente de Direito à Comunicação e à Liberdade de Expressão do CNDH, a audiência deixou explícito que algumas tendências trazidas pelo GT do Conselho há quatro anos foram atualizadas no contexto atual, mas seguem traçando um retrato fiel do problema. “Agora é momento de se debruçar sobre o percurso já trilhado, sobre as recomendações dispostas no Relatório e aqui reforçadas, justamente por serem atuais. Elas pouco avançaram, e para que avancem, é preciso esforço conjunto de diversos órgãos do Estado, por isso estamos aqui”, afirma Iara.
A conselheira destaca a preocupação com o aumento da violência em ano eleitoral, “em que não são incomuns tentativas de silenciamento de comunicadores no exercício de sua profissão” e lembra que a criação de um observatório sobre o tema, que chegou a ser objeto de portaria, seria uma das medidas mais centrais neste enfrentamento. “O Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional inclusive aprovou recomendação sobre a criação deste dispositivo”, reforça a conselheira do CNDH.
A audiência foi transmitida integralmente ao vivo. Confira o vídeo da mesa 1: https://bit.ly/2I1nrrC | Mesa 2: https://bit.ly/2KNepw7