PORTARIA Nº 60, DE 27 DE JANEIRO DE 2023
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO
Publicado em: 31/01/2023 | Edição: 22 | Seção: 1 | Página: 8
Órgão: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania/Gabinete do Ministro
PORTARIA Nº 60, DE 27 DE JANEIRO DE 2023
Publicação de resumo oficial de Sentença proferida pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O MINISTRO DE ESTADO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA, no uso de suas atribuições legais, e tendo em vista a Sentença de 30 de junho de 2022, proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Sales Pimenta vs. Brasil, resolve:
Publicar resumo oficial da Sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Sales Pimenta vs. Brasil, conforme anexo.
SILVIO LUIZ DE ALMEIDA
ANEXO
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS*
CASO SALES PIMENTA VS. BRASIL SENTENÇA DE 30 DE JUNHO DE 2022 (Exceções preliminares, Mérito, Reparações e Custas)
RESUMO OFICIAL EMITIDO PELA CORTE INTERAMERICANA
Em 30 de junho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante, "a Corte Interamericana", "a Corte" ou "o Tribunal") proferiu Sentença mediante a qual declarou a República Federativa do Brasil (doravante, "o Estado", "o Estado do Brasil", ou "o Brasil") internacionalmente responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial e ao direito à verdade, contidos nos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante, "a Convenção Americana" ou "a Convenção"), em relação à obrigação de respeito e garantia dos direitos, estabelecida no artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo a Geraldo Gomes Pimenta, Maria da Glória Sales Pimenta, Sérgio Sales Pimenta, Marcos Sales Pimenta, José Sales Pimenta, Rafael Sales Pimenta, André Sales Pimenta e Daniel Sales Pimenta. Isto, como consequência das graves falências do Estado na investigação sobre a morte violenta de Gabriel Sales Pimenta, as quais implicaram o descumprimento do dever de devida diligência reforçada para investigar crimes cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos, bem como a vulneração flagrante da garantia do prazo razoável e a situação de absoluta impunidade em que se encontra o referido homicídio até a atualidade.
Ademais, o Tribunal declarou o Estado responsável pela violação do direito à integridade pessoal, reconhecido pelo artigo 5.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo às vítimas supra referidas.
I. Fatos
A. Contexto de violência e impunidade relacionado à luta pela terra no Brasil
O Brasil possui um extenso território com grande capacidade produtiva e de assentamento social, que, desde o período colonial, vivenciou uma distribuição desequilibrada da propriedade.
Desde a década de 1960, há registros de distintos conflitos agrários que resultaram em mortes violentas de trabalhadores(as) rurais e seus defensores(as). Com efeito, de 1961 a 1988, foram mortos 75 sindicalistas, 14 advogadas/os, 7 pessoas religiosas, 463 líderes de lutas coletivas, entre outros, no Brasil. O Estado do Pará, durante o período de 1961 a 1988, foi o líder no ranking de mortes e desaparecimentos, com 772 entre 1971 e 2004, dos quais, respectivamente, 239 e 574 ocorreram no Sul daquele estado. O Pará foi destacado por alguns organismos e organizações internacionais pelos conflitos constantes e violentos relacionados à luta pela terra, que resultaram na morte de centenas de trabalhadores rurais, líderes sindicais, advogados e defensores de direitos humanos.
Entre 1964 e 1998, dos 703 casos de trabalhadores rurais vítimas de homicídio, 5,26% foram julgados. Por outro lado, entre 1985 e 2013, de 428 casos de homicídios relacionados a conflitos no campo, 21 casos foram levados a julgamento, resultando na condenação de 12 autores intelectuais e 17 autores materiais. Quanto ao município de Marabá, no Estado do Pará, onde ocorreu a morte de Gabriel Sales Pimenta, a taxa de impunidade foi de 100% entre 1975 e 2005.
B. Sobre Gabriel Sales Pimenta e seu trabalho como defensor de direitos humanos de trabalhadores rurais
Gabriel Sales Pimenta era um jovem de 27 anos ao momento de sua morte. Era oriundo do município de Juiz de Fora, no estado de Minas Gerais, e formou-se em Direito pela Universidade Federal desse município. Em 1980 se incorporou como advogado do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Marabá (doravante denominado "STR"), no Estado do Pará. O senhor Sales Pimenta foi um dos primeiros advogados a residir em Marabá. Além disso, foi representante da Comissão Pastoral da Terra, por meio da qual ofereceu assessoria jurídica a trabalhadores rurais, foi fundador da Associação Nacional de Advogados dos Trabalhadores na Agricultura e participou ativamente de movimentos sociais na região e em outras esferas. Em seu exercício como advogado da STR atuou na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais.
Desde ao menos 1973, partes de Pau Seco que haviam sido incorporadas ao patrimônio da União, eram habitadas e cultivadas por trabalhadores rurais "posseiros" e suas famílias. Em 1980, M.C.N. e J.P.N. alegaram ter adquirido o domínio útil de Pau Seco, onde começaram a explorar a madeira existente na região, o que gerou um conflito com os referidos trabalhadores rurais. Em outubro de 1981, em vista da ação de reintegração da posse iniciada por M.C.N. e J.P.N., foi expedida uma liminar de reintegração de posse, de modo que a polícia militar procedeu com o despejo dos trabalhadores rurais. Diante dessa ação, em 20 de novembro de 1981 Gabriel Sales Pimenta, como advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá, interpôs um mandado de segurança** perante o Tribunal de Justiça do Estado do Pará e solicitou a revogação da liminar de reintegração de posse que havia gerado o despejo. Esse mandado de segurança foi concedido, de modo que, em 21 de dezembro de 1981, ordenou-se ao oficial de justiça que se dirigisse à região do conflito "para garantir a permanência" dos trabalhadores rurais.
Segundo declarações, em 1982, Gabriel Sales Pimenta teria denunciado à Secretaria de Segurança Pública em Belém, na capital do Estado do Pará, ameaças e homicídios de trabalhadores rurais em Pau Seco em três ocasiões. A última denúncia foi realizada em junho de 1982. Por outro lado, as ameaças contra Gabriel Sales Pimenta tiveram início ao menos em dezembro de 1981, após o êxito em reverter o despejo dos trabalhadores rurais da região de Pau Seco.
C. A morte de Gabriel Sales Pimenta e a investigação policial
Em 18 de julho de 1982, Gabriel Sales Pimenta dirigiu-se ao bar conhecido como "Bacaba", na cidade de Marabá, na companhia de alguns conhecidos. Aproximadamente às 22:30 horas, Gabriel Sales Pimenta, Edson Rodrigues Guimarães e Neuzila Cerqueira Guimarães saíram juntos do bar. Quando os três haviam percorrido entre 30 a 35 metros em direção ao veículo de uma amiga, passaram ao lado de um automóvel marca Volkswagen, tipo Fusca, de cor bege, que se encontrava estacionado. Um homem saiu do veículo e disparou três vezes contra o senhor Sales Pimenta, que morreu de maneira instantânea. O homem posteriormente teria fugido no mesmo veículo. Segundo a declaração de uma testemunha, no veículo se encontravam outros dois homens.
A investigação policial teve início no dia seguinte. Em 22 de julho de 1982, o Delegado da Divisão de Delitos contra a Pessoa, que era responsável pela investigação policial, identificou a M.C.N. e J.P.N. como os supostos autores do homicídio de Gabriel Sales Pimenta. Posteriormente, em relatório de 8 de setembro de 1982, acrescentou C.O.S. à lista de acusados.
D. Fatos autônomos ocorridos no âmbito do processo penal com posterioridade a 10 de dezembro de 1998 (data de reconhecimento da competência contenciosa da Corte por parte do Brasil) e medidas adicionais realizadas pelos familiares do senhor Sales Pimenta
Em 19 de agosto de 1983, o Ministério Público apresentou denúncia penal contra M.C.N., J.P.N. e C.O.S. como autores do delito de homicídio qualificado, perante a Juíza de Direito da Comarca de Marabá. A denúncia foi recebida em 23 de agosto de 1983.
Em novembro de 1999, o Ministério Público solicitou a extinção da responsabilidade penal do acusado J.P.N. devido a sua morte, o que foi decretado pelo Juiz em exercício, juntamente com a improcedência da denúncia contra C.O.S., por falta de provas. Assim, declarou o senhor M.C.N. como o único acusado. Entre janeiro e maio de 2001, M.C.N. foi intimado três vezes para que tomasse conhecimento da sentença de pronúncia, a qual transitou em julgado em 7 de janeiro de 2002.
Programou-se o julgamento perante o Tribunal do Júri para 23 de maio de 2002. Duas testemunhas não foram localizadas, entre elas, a testemunha ocular Luzia Batista, quem, segundo manifestou seu vizinho, teria falecido. O julgamento programado não foi realizado pois o acusado M.C.N. não foi localizado. A esse respeito, sua ex-esposa informou que o senhor M.C.N. vivia em São Paulo. Nesse mesmo dia, foi expedida uma ordem de prisão preventiva, entretanto, não foi remetida às autoridades de São Paulo.
Em 20 de fevereiro de 2004, o caso foi remetido à Vara Agrária, uma vez que a Vara Criminal determinou que não tinha competência porque o delito teria uma motivação de natureza agrária. Em fevereiro de 2005, o Tribunal de Justiça do Pará determinou que a Vara Agrária não tinha competência no âmbito criminal. Em 28 de julho de 2005, os autos foram devolvidos à Vara Criminal. Quando o processo retornou à Vara Criminal, foi agendada nova sessão de julgamento; entretanto, não pode ser realizada porque o acusado não compareceu. O juiz, então, ordenou a suspensão da sessão até que fosse localizado e ordenou a emissão de ordens de prisão dirigidas a todos os estados do Brasil. Em 6 de março de 2006, M.C.N. comunicou seu domicílio em Brumado, Bahia. Em 3 de abril de 2006, a Polícia Federal conseguiu cumprir a ordem de prisão preventiva. Assim, foi fixado o dia 27 de abril de 2006 como a data para o julgamento. Em 10 de abril de 2006, os advogados do acusado impetraram um habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Pará, a fim de solicitar a decretação de prisão domiciliar ou a extinção da responsabilidade penal com base na prescrição. O Ministério Público também se manifestou a favor da decretação da prescrição. Em 2 de maio de 2006, o pedido de extinção da responsabilidade penal foi denegado pelo Juiz de primeira instância da Vara Criminal de Marabá. Em 8 de maio de 2006, as Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de Justiça do Pará proferiram uma decisão contrária e declararam extinta a punibilidade do crime.
Em junho de 2007, Rafael Sales Pimenta, irmão de Gabriel Sales Pimenta, apresentou uma reclamação por excesso de prazo no processo penal, perante o Conselho Nacional de Justiça, alegando a morosidade em sua tramitação. Em setembro de 2008, a reclamação foi arquivada por considerar-se que havia perdido o seu objeto, já que o processo penal havia sido extinto por prescrição.
Por outro lado, em novembro de 2007, a mãe de Gabriel Sales Pimenta, Maria da Glória Sales Pimenta, ajuizou uma demanda de indenização contra o Estado do Pará por danos morais resultantes do atraso na tramitação do processo penal e da conseguinte impunidade do homicídio de seu filho. Em outubro de 2011, a Terceira Vara Cível da Comarca de Marabá considerou que a demanda era procedente e condenou o Estado do Pará a pagar uma indenização de R$ 700.000,00 (setecentos mil reais) a favor de Maria da Glória Sales Pimenta. Em junho de 2016, ao examinar a apelação interposta pelo Estado do Pará, o Tribunal de Justiça admitiu o recurso e determinou a exclusão da responsabilidade estatal e denegou o pagamento da indenização. Após distintos recursos infrutíferos interpostos pelos familiares de Gabriel Sales Pimenta, em junho de 2021, a Primeira Câmara do Superior Tribunal de Justiça negou o último recurso.
II. Mérito
a. Direitos às garantias judiciais e à proteção judicial
A Corte recordou que, em casos de atentados contra pessoas defensoras de direitos humanos, os Estados têm o dever de investigar as violações cometidas contra essas pessoas de maneira séria e efetiva, combater a impunidade e assegurar uma justiça imparcial, oportuna e de ofício, que implique na busca exaustiva de qualquer informação para elaborar e levar a cabo uma investigação que conduza à devida análise das hipóteses de autoria, por ação ou por omissão, em diferentes níveis, explorando todas as linhas investigativas pertinentes para identificar os autores. Em consequência, diante de indícios ou alegações de que determinado fato contra uma pessoa defensora de direitos humanos pode ter como motivação justamente o seu trabalho de defesa e promoção dos direitos humanos, as autoridades investigadoras devem tomar em consideração o contexto dos fatos e suas atividades para identificar os interesses que poderiam ter sido afetados no exercício das mesmas, para estabelecer e esgotar as linhas de investigação que levem em consideração o seu trabalho, determinar a hipótese do delito e identificar os autores.
Em razão do papel fundamental que desempenham à luz do exercício cotidiano de suas atividades na promoção e proteção de direitos humanos, o Tribunal reiterou a existência de um dever reforçado de devida diligência quanto à investigação sobre a morte de pessoas defensoras.
Outrossim, a Corte destacou que o cumprimento do dever estatal de criar as condições necessárias para o gozo e desfrute efetivo dos direitos estabelecidos na Convenção está intrinsecamente vinculado à proteção e ao reconhecimento da importância do papel que cumprem as e os defensores de direitos humanos, cujo trabalho é fundamental para o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. O Tribunal recordou, ademais, que as atividades de vigilância, denúncia e educação que realizam contribuem de maneira essencial à observância dos direitos humanos, pois atuam como garantes contra a impunidade. Dessa forma, complementam o papel não apenas dos Estados, mas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em seu conjunto. Nesse sentido, a Corte enfatizou a necessidade de erradicar a impunidade relacionada a atos de violência cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos, pois consiste em um elemento fundamental para garantir que possam realizar livremente o seu trabalho em um ambiente seguro.
A Corte sublinhou que a violência contra pessoas defensoras de direitos humanos tem um efeito amedrontador (chilling effect), especialmente quando os delitos permanecem impunes. A esse respeito, o Tribunal reitera que as ameaças e os atentados à integridade e à vida dos defensores de direitos humanos e a impunidade dos responsáveis por estes fatos são particularmente graves porque têm um efeito não apenas individual, mas também coletivo, na medida em que a sociedade se vê impedida de conhecer a verdade sobre a situação de respeito ou de violação dos direitos das pessoas sob a jurisdição de um determinado Estado.
Ao examinar o caso concreto, a Corte considerou que os principais fatos ocorridos com posterioridade ao 10 de dezembro de 1998, que refletem a falta de devida diligência do Brasil em processar e sancionar a todos os responsáveis pelos homicídio de Gabriel Sales Pimenta são: (i) a ausência de identificação e de análise do contexto no qual o defensor realizava seu trabalho de defesa de direitos humanos de trabalhadores rurais; (ii) a falta de adoção de medidas de proteção a testemunhas oculares, máxime diante da existência de um contexto de violência e impunidade em relação à luta pela terra no Brasil; (iii) a ausência de investigação sobre as mortes do acusado J.P.N. e da testemunha ocular Luzia Batista da Silva durante a etapa da decisão de pronúncia e do exame do caso pelo Tribunal do Júri, respectivamente; (iv) a exclusão de C.O.S. como acusado na sentença de pronúncia por falta de provas, devido à omissão de alguns atos investigativos essenciais; (v) a falta de medidas suficientes para assegurar o comparecimento de M.C.N. aos atos processuais que requeriam sua presença e de diligências adequadas para sua apreensão quando havia ordens de prisão decretadas contra ele, e (vi) o envio do processo penal para a Vara Agrária quando a competência era claramente do Tribunal do Júri.
Adicionalmente, a Corte considerou que a aplicação da prescrição a favor do único acusado no processo penal, com o consequente arquivamento definitivo do processo, não foi resultado do trâmite normal e diligente do processo penal, mas foi fruto de uma série de ações e omissões estatais durante o curso desse processo.
Por outro lado, a Corte também considerou injustificável a demora excessiva na tramitação do processo penal e do processo civil de indemnização, atribuível diretamente à conduta das autoridades de administração de justiça, já que transcorreram quase 24 anos desde os fatos do presente caso até a decisão que extinguiu o processo penal, e mais de sete anos desde a data de reconhecimento da competência da Corte até a referida decisão definitiva no processo penal, bem como o transcurso de quase 14 anos na tramitação do processo cível.
Em virtude do exposto, o Tribunal considerou que o Estado não cumpriu sua obrigação de atuar com a devida diligência reforçada para investigar de forma séria e completa a morte violenta do defensor de direitos humanos Gabriel Sales Pimenta, assim como violou o prazo razoável na investigação e tramitação dos processos penal e civil relacionados com o homicídio do senhor Sales Pimenta. Portanto, estabeleceu que o Brasil vulnerou os artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 de tal tratado, em prejuízo aos familiares de Gabriel Sales Pimenta.
b. Direito à verdade
A Corte sublinhou que a morte violenta do senhor Sales Pimenta se enquadrou em um contexto de um nível exacerbado de homicídios contra trabalhadores rurais e defensores de seus direitos, acompanhado de uma situação generalizada de impunidade em relação a esse tipo de delitos e precedido de várias ameaças dirigidas contra a vítima. Nessa medida, a Corte assinalou que o esclarecimento do homicídio e das correspondentes responsabilidades não tinha apenas importância para a família de Gabriel Sales Pimenta, como também tinha uma dimensão coletiva, na medida em que a falta de esclarecimento sobre as circunstâncias da morte violenta do senhor Sales Pimenta geraria um efeito amedrontador para as pessoas defensoras de direitos humanos, para os trabalhadores rurais e para a sociedade em seu conjunto.
Somado ao anterior, o Tribunal verificou que, quase 40 anos após o homicídio de Gabriel Sales Pimenta, o caso se encontra em uma situação de absoluta impunidade até a atualidade, devido ao não esclarecimento das circunstâncias da morte de Gabriel Sales Pimenta, apesar da identificação de três suspeitos e da existência de duas testemunhas oculares e de outros meios de prova que se encontravam à disposição das autoridades estatais.
Portanto, a Corte entendeu que o Brasil violou o direito à verdade em detrimento dos familiares do senhor Sales Pimenta, com base na transgressão dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao seu artigo 1.1.
c. Direito à integridade pessoal
A Corte verificou que os familiares de Gabriel Sales Pimenta acompanharam e estiveram ativamente envolvidos, como assistentes de acusação, no processo penal iniciado para apurar o seu homicídio desde o princípio, e envidaram esforços para o seu avanço e conclusão. Apesar disso, esse processo, conforme já referido previamente, foi concluído após quase 24 anos dos fatos, unicamente com a declaração da extinção da responsabilidade penal a favor do único acusado sobrevivente. Adicionalmente, constatou que a duração das investigações e do processo penal sem que tenha havido a sanção de nenhum responsável pela morte violenta e a falta de devida diligência provocaram sofrimento e angústia nos referidos familiares, em detrimento de sua integridade psíquica e moral. O Tribunal indicou que a absoluta impunidade em que se encontra o homicídio de Gabriel Sales Pimenta constitui um fator chave na violação da integridade pessoal de cada membro de sua família. Assim, concluiu que o Estado violou o direito à integridade pessoal reconhecido no artigo 5.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo aos familiares do senhor Sales Pimenta.
III. Reparações
A Corte estabeleceu que sua Sentença constitui per se uma forma de reparação. Adicionalmente, ordenou ao Estado as seguintes medidas de reparação integral: (i) criar um grupo de trabalho com a finalidade de identificar as causas e circunstâncias geradoras da impunidade estrutural relacionada à violência contra as pessoas defensoras de direitos humanos dos trabalhadores rurais e elaborar linhas de ação que permitam superá-las; (ii) oferecer tratamento psicológico e/ou psiquiátrico gratuito aos irmãos do senhor Sales Pimenta que o requeiram; (iii) publicar o resumo oficial da Sentença no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado do Pará e em um jornal de grande circulação nacional, assim como a Sentença, na íntegra, no sítio web do Governo Federal, do Ministério Público e do Poder Judicial do Estado do Pará; (iv) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos do presente caso; (v) nomear uma praça pública no município de Marabá, no Estado do Pará, com o nome de Gabriel Sales Pimenta, onde seja instalada uma placa de bronze que indique o nome completo de Gabriel Sales Pimenta e explique brevemente sua vida; (vi) criar um espaço público de memória na cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, no qual seja valorizado, protegido e resguardado o ativismo das pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil, entre eles, o de Gabriel Sales Pimenta; (vii) criar e implementar, em âmbito nacional, um protocolo unificado e integral de investigação, dirigido especificamente aos crimes cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos, que leve em consideração os riscos inerentes ao seu trabalho; (viii) revisar e adequar seus mecanismos existentes, em particular o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, nos âmbitos federal e estadual, para que seja previsto e regulamentado através de uma lei ordinária e tenha em consideração os riscos inerentes à atividade de defesa dos direitos humanos; (ix) elaborar e implementar, através do órgão estatal correspondente, um sistema nacional de coleta de dados e cifras relacionados a casos de violência contra as pessoas defensoras de direitos humanos; (x) criar um mecanismo que permita a reabertura de investigações e processos judiciais, inclusive naqueles em que tenha ocorrido a prescrição, quando, em uma sentença da Corte Interamericana, se determine a responsabilidade internacional do Estado pelo descumprimento da obrigação de investigar violações de direitos humanos de forma diligente e imparcial, e (xi) pagar as quantias fixadas na Sentença a título de dano material, imaterial, custas e gastos.
A Corte supervisionará o cumprimento integral dessa Sentença, no exercício de suas atribuições e em observância a seus deveres conforme à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha cumprido de forma cabal o disposto na mesma.
O texto da Sentença na íntegra pode ser consultado no seguinte link: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_454_esp.pdf
* Integrada pelas seguintes juízas e juízes: Ricardo C. Pérez Manrique, Presidente; Humberto Antonio Sierra Porto, Vice-Presidente; Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, Juiz; Nancy López, Juíza; Verónica Gómez, Juíza; e Patricia Pérez Goldberg, Juíza. Presentes, ademais, o Secretário, Pablo Saavedra Alessandri, e a Secretária Adjunta, Romina I. Sijniensky. O Juiz Rodrigo Mudrovitsch, de nacionalidade brasileira, não participou da tramitação do presente caso e tampouco da deliberação e assinatura desta Sentença, conforme o disposto nos artigos 19.1 e 19.2 do Regulamento da Corte.
** Consiste em uma ação prevista na Constituição da República Federativa do Brasil, cujo objetivo é proteger um direito certo que foi violado por um ato ilegal ou abusivo de uma autoridade pública ou de um agente de uma pessoa jurídica em exercício de atribuições do Poder Público. Cf. Artigo 5, LXIX, da Constituição brasileira. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.