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Pesquisadora do MAST é co-autora de livro sobre Amazônia
Com conteúdo científico de alta qualidade de informação e fotografias, o e-book revela-se sensível às causas ecológicas e culturais da região e demonstra uma preocupação comum com a história da Amazônia e sua gente, especialmente no que diz respeito ao futuro: "(...) em todos os capítulos encontramos os conflitos entre pequenos agricultores (indígenas ou não), pescadores e extrativistas, de um lado, e os interesses de grandes proprietários e companhias, de outro, o que produz danos imensos. Trata-se de uma catástrofe tanto social quanto ecológica, que conduz à resistência tanto cultural quanto política", diz o texto de apresentação do livro. A equipe de Comunicação do MAST entrevistou Priscila Faulhaber, pesquisadora do museu, antropóloga e doutora em Ciências Sociais, uma das co-autoras de "Encontros, Amazônia Ontem e Hoje":
P - Priscila Faulhaber, você destaca, no capítulo introdutório, as dificuldades de povos amazônicos no campo da sobrevivência e do respeito à sua cultura. As Serras, chamadas "encantadas", merecem diferentes interpretações dos grupos indígenas e quilombolas. Qual sua observação pessoal sobre estes lugares e a importância para a preservação da cultura local?
R - As elevações de terra foram locais de refúgio por serem de difícil acesso em meio à floresta. Trata-se de pontos estratégicos nos quais eles podem visualizar quem se aproxima e sendo assim são significativos para a constituição da autoimagem como povos diferenciados. Vivenciados como mágicos, as histórias tecidas sobre esses locais constituem um fator importante da reprodução cultural.
P - Você menciona um personagem extremamente relevante, João Clemente Gaspar, um jovem que após concluir o mestrado em línguas indígenas, na UFRJ, voltou à região dedicando-se ao ensino escolar indígena. Qual a importância da preservação da língua e cultura entre os jovens amazônicos? Por outro lado, você diz que os Tikunas do Médio Solimões já não falam a língua originária. Este fato representa um prejuízo dentro da perspectiva antropológica?
R - No Brasil a antropologia social se ocupa da etnicidade que não necessariamente resulta na manutenção da língua e da cultura. Sabe-se hoje que os povos indígenas do Médio Solimões são importantes para a preservação ambiental, tendo sido citado pelos meios de comunicação o protagonismo da mobilização indígena para traçar estratégias para lidar com a seca que foi grave em 2023 e calamitosa em 2024. Contudo, o esforço de professores bilíngues como João Clemente Gaspar, que também é um excelente desenhista e fez seu mestrado sobre grafismos Tikuna, são fundamentais para transmissão e manutenção da língua e da cultura como práticas concretas de organização social.
P - No seu capítulo introdutório, você revela que o "pesquisador sempre irá se identificar com um determinado grupo, de acordo com seus princípios intelectuais e morais". Qual o ponto ou pontos de identificação que você encontrou com a Cultura Tikuna e de que modo ela atrai? O que a diferencia das demais culturas?
R - Um dos papéis dos pesquisadores é reconhecer as formas de identificação dos povos que foram estigmatizados como inferiores aos agentes que representam a etnicidade europeia nos processos coloniais. Os meus bisavós maternos são alemães, mas meu avô se casou com uma descendente indígena que me incentivou a valorizar os povos originários, o que se traduz não somente uma prática deontológica relevante para a história da ciência – uma vez que reconhece a validade de diferentes formas de conhecimento – mas também uma prática de exercício da cidadania, esclarecendo sobre a relevância dos povos indígenas para a consciência nacional que tem se pautado pelo romantismo literário, com dificuldade de se dar conta que nas situações locais esses povos continuam sendo vítimas de diferentes formas de opressão.
P - A expansão religiosa branca (sobretudo cristã) entre os indígenas também é um tema abordado por você. De que maneira esta influência atrapalha o modo de vida dos povos originários? Como ela consegue penetrar em terras indígenas?
R - A emergência e fortalecimento do movimento indígena no Brasil a partir dos anos 1980 implicou críticas antropológicas das teorias do caboclismo, já que com o fortalecimento de sua mobilização os indígenas não aceitam mais ser chamados de caboclos, e passam a valorizar positivamente pertencimentos étnicos específicos, como os Tikuna no Alto e Médio Solimões e os Miranha, Cambeba, Cocama e Mayorúna no Médio Solimões. Hoje em dia temos pesquisadores indígenas com formação universitária e de pós-graduação que eles mesmos podem criticar essas teorias de um ponto de vista interno, êmico.
P - Quase dois séculos depois, a Cabanagem, conflito de terra do século XIX, ainda tem repercussão entre os povos amazônicos? Em que medida as motivações destes conflitos (exploração de mão de obra, desapropriações ou ocupações ilegais, por exemplo) mudaram?
R - A Cabanagem está muito viva na memória das populações do Pará. Isto vale para as elites que lembram esse movimento nativista como uma forma de se afirmar diante dos atores externos. Diversas pesquisas, que eu cito no trabalho, como a de Magda Ricci (UFPA) e Mark Harris (Universidade de St Andrews, Escócia) mostram que esses movimentos nativistas que analisam com base em documentos históricos são vivenciados também de baixo para cima, como um fator de mobilização étnica e territorial.
P - Fale sobre a reação a uma instalação religiosa que foi destruída pelo fogo? Ela, ao que parece, não foi condenada, mas compreendida como uma reação à tentativa de profanação de um solo sagrado e ancestral.
R- Os moradores da comunidade da Água Fria de Cima, próxima ao lago do Curuai, não viram com bons olhos a ocupação da serra do Aracuri como território tradicionalmente ocupado por seu grupo, que vivenciaram como uma invasão e intrusão que interpretaram como profanação do santuário ambiental e poluição dos lençóis freáticos e das fontes de água potável das quais dependem para sua subsistência.
P - O ambiente idílico, místico e rico da cultura indígena fazem crer que exista o mundo dos mortais e dos imortais. As serras altas e as planícies. Como você pode explicar para o público leigo o que vem a ser "Eware", os "encantados" e a história dos gêmeos Yoi’i e Ipi - que dariam início à existência dos homens e mulheres sobre a terra?
R - Eu diria que a presença dos heróis culturais leva a um tema faustiano, ou seja, da transcendência dos limites enquanto humanos de modo que possam dialogar com esses mediadores entre a terra e o céu. Lidam assim com a vivência da fugacidade da vida, do envelhecimento e da permanência dos conhecimentos comunitários transmitidos de geração em geração. Deste modo, os chamados territórios encantados são fator de regeneração e alimentação da autoimagem dos grupos comunitários que se veem como possuidores desses territórios etnicamente diferenciados diante dos invasores e usurpadores de suas terras e de seus bens culturais e socioambientais. Esse tema é importante para a história da ciência, como destaquei acima, já que implica a validade de formas de conhecimento diferente da mentalidade civilizatória baseada na literalidade de procedência europeia. E é relevante para a museologia, já que os Tikuna dirigem um museu que é de grande significação para o movimento indígena e sua territorialidade. E os moradores da comunidade da Água Fria de Cima vivenciam seus territórios como meios de valorização positiva de sua cultura e de seus patrimônios socioambientais.