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PARTE IV
Santos Dumont: o brasileiro que abriu as asas perto do sol
Santos Dumont: inventividade, pioneirismos e a indefectível moldura do chapéu panamá. Crédito: álbum de família
Na quarta e última parte do texto descritivo sobre a história empreendedora do brasileiro Alberto Santos Dumont, que alcançou o epíteto de "Pai da Aviação", o físico, pesquisador e ex-diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Henrique Lins de Barros, revela o grande salto do inventor em direção ao futuro - quebrou a barreira do "mais pesado do que o ar", e entregou ao mundo um aparelho cuja versão até hoje inspira novas aeronaves - mesmo as com tecnologia de ponta.
Embora o avião pioneiro, o 14-bis, tenha proporcionado o voo inaugural em Paris, em 23 de outubro de 1906, foi no seu invento mais complexo, o Demoiselle, que conseguiu empreender a formas que até hoje vimos nas aeronaves: o piloto segue à frente do aparelho enquanto as asas, instaladas no centro, garantem a estabilidade de uma navegação movida a motor. Neste último derradeiro relato, o leitor irá se deliciar com histórias sobre as pequenas e grandes conquistas, estudos, testes, quedas, apostas, troféus e finalmente o voo definitivo que inaugurou a nova história da aviação. Santos Dumont morreria aproximadamente duas décadas e meia depois, aos 59 anos, tragado por uma doença degenerativa e que causava depressão. O suicídio, por tantos anos escondido, o libertou de angústia e sofrimento, mas o elevou em definitivo ao panteão de Pai da Aviação.
PARTE IV
Por Henrique Lins de Barros*
No dia 23 de outubro, no Campo de Bagatelle, Paris, voou cerca de 60 metros diante de uma comissão do aeroclube e do público. Ganhou a Taça Archdeacon e provou que era possível um avião decolar por seus próprios meios, sem qualquer auxílio externo. Menos de um mês depois, no dia 12 de novembro, realiza quatro tentativas para ganhar o prêmio do Aeroclube da França. Santos Dumont fez a “adição de dois lemes pequenos laterais, cuja ação, unida à do grande leme da frente, combate as oscilações (roll). Esses dois lemes suplementares são manobrados com o auxílio de cordas, que terminam cada uma por um aro no qual o aviador passa cada braço – sistema um pouco rudimentar, não? ” (Visoni 1, 2016).
Na quarta tentativa obteve êxito. “Coloca-se de novo o motor em funcionamento, e vê-se quase imediatamente o avião alçar voo. Santo Dumont está a 3m do solo, talvez mesmo a 4m, e ganha, com ondulações laterais pequenas, mas muito nítidas, o centro do gramado; seu voo é muito belo. Mas vários curiosos estão na frente da máquina, que avança a 40 km/h! Vendo-os, o aviador tem receio de causar um acidente e vira o leme um tanto bruscamente.
Vê-se o leme grande se movimentar no ar, em seguida, o motor se cala, a hélice para e o aparelho toca a terra” (Visoni, 2016). Percorreu 220m no ar e realizou um voo de 21 s 2/5. “Consequentemente, Santos Dumont ganhou, ontem à tarde, os dois prêmios instituídos pela Comissão de Aviação do Aeroclube: o de 100 francos, destinado a quem cobrisse 60 m, e o de 1500 francos, destinado a quem fizesse 100 m”. ‘Estou contente’, disse Santos Dumont, ‘Estes 1600 francos, eu os dou aos meus mecânicos! ’” (Visoni 1, 2016)
Os voos do 14bis são os primeiros recordes da aviação reconhecidos pela Fédèration Aeronautique International (FAI). Mas Santos Dumont avançou buscando corrigir os erros conceituais de seu invento. Realizou outros voos com o 14 bis até o dia 4 de abril de 1907, quando o avião entrou em oscilação e caiu. Deixou de lado e já tinha um novo invento, totalmente diferente, o N-15.
Como escreveu Ferdinand Ferber (1862-1909), um dos importantes pioneiros da aviação: “Sob o ponto de vista da estabilidade, o senhor Santos Dumont fez uma volta completa, colocando o que estava atrás na frente e vice-versa. Isso é lógico, ele se conforma à natureza, e desta vez será estável no vento” (Lins de Barros, 2006). Acidentou-se na tentativa de decolar. Sem sucesso, ele tentou o N-16, um híbrido balão-avião. Novamente sem sucesso. Novos acidentes.Passou a um desenvolvimento do N-15, o N-17, mas abandonou antes de testá-lo.
Após um jantar, aceitou o desafio: Monsieur Fernand Charron (1866-1928), campeão de ciclismo, pioneiro e construtor de automóveis, vencedor do circuito Marseille-Nice em 1898, apostava com ele e com o seu amigo Louis Blériot, que não seria possível atingir 100 km/h na água. Uma aposta tentadora: se ganhasse, ganharia 50.000 francos. Se perdesse pagaria somente 5.000 francos. Assim nasceu o N-18, um hidroplanador com motor e hélice aeronáutica. Com asa e lemes submersos e um motor de 100CV e uma hélice tripá, o N-18 tinha uma forma de charuto alongado com dois flutuadores laterais. Construiu o aparelho, testou-o no rio Sena rebocado por uma lancha sem acionar o motor. A experiência foi filmada e no filme podemos ver que o N-18 se “levanta”, deslizando sobre a superfície.
E em menos de um mês Santos Dumont se apresenta com o N-19, o primeiro Demoiselle. Um avião minúsculo, o primeiro ultraleve da história. Procurando reduzir o peso ao máximo inventou o primeiro motor de cilindros opostos da história. Voa 200 metros em 17 de novembro. Mas numa de suas experiências sofre um novo acidente. O Demoiselle 19 é muito frágil. (Lins de Barros, 2003)
E Santos Dumont vê o trabalho dos outros inventores: Gabriel Voisin (1880-1973) voa 60 metros; Louis Blériot (1872-1936) ultrapassa 100 metros; Henri
Farman (1874-1958), em 26 de outubro, bate o recorde de distância voando 771 metros; Robert Esnault-Pelterie (1881-1957) voa 600 metros. Os Wright não só não se apresentam como haviam comunicado que não iriam fornecer as especificações do aparelho. Em 1908 a aviação começa a aparecer. Em 13 de janeiro Farman realiza o primeiro voo de 1 km em circuito fechado e ganha o Grand Prix de l’Aviaton de 50.000 francos. Em 4 de julho Glenn Curtiss (1878-1930) ganhou o troféu Scientific American no valor de US$ 2.000 ao voar 1.500 metros. (Chambe, 1958)
Somente em setembro de 1908 os Wrights se apresentam: Orville faz um voo com passageiro em um novo aparelho em Fort Myer. Cai. E Wilbur faz demonstrações em Le Mans. O novo avião, como os anteriores, depende da catapulta ou de vento forte para decolar. (Crouch, 1990; Combs, 1979) Enquanto isso, Santos Dumont desenvolvia o seu novo Demoiselle. Em 9 de março de 1909 faz o primeiro voo com o Demoiselle 20. Em maio o Demoiselle está no 1º Salão Aeronáutico no Grand Palais, em Paris. Em 25 de julho de 1909 Blériot atravessa o Canal da Mancha e as atenções ficam voltadas para ele. Santos Dumont parabeniza o colega e este responde: “Não fiz mais do que imitá-lo: você é o nosso líder” (Lins de Barros, 2006).
Em 16 de setembro Santos Dumont bate o recorde de velocidade em Saint Cyr. Em 17 de setembro perde-se no ar e pousa no castelo Wideville do conde de Galard (Nicolaou, 1997)
Em 1910 o plano detalhado do Demoiselle é publicado na revista “Popular Mechanics (junho-julho)” e Santos Dumont, seguindo orientação médica, vende o avião para Roland Garros que considerava o pequeno aparelho como “un bijou admirable, de bambou léger et soie blanche... A pleine puissance, l’appareil bondissait au ciel, comme un pour-sangue”. (Garros, 1966). Mas Garros cai em Versailles, próximo a Paris, e o Demoiselle de Santos Dumont é dado como perdido.
Santos Dumont, em 1910, decide abandonar o campo de provas e se dedicar à divulgação do voo humano. Seu papel é essencial para o desenvolvimento da aviação.
Sua trajetória mostra que ele evoluiu realizando inúmeros voos, mas sempre preocupado com a segurança. Por isso, foi passo a passo, voo a voo, conhecendo as limitações de seus aparelhos e analisando cada um dos vários acidentes que sofreu. Todos os seus mais de vinte inventos foram projetados, construídos e testados por ele. Somente em 1903 que ele permitiu que outra pessoa pilotasse um de seus dirigíveis. Aida d’Acosta realizou um curto voo no dirigível N-9 e tornou-se a primeira mulher a voar num dirigível.
Santos Dumont sabia que para ter segurança no voo era necessário conhecer em detalhe o projeto e saber analisar os limites do aparelho.
Referências bibliográficas
Chambe, René. 1958. Histoire de l’Aviation. Flamarion Editeur. Paris.
Combs, Harry. 1979. Kill Devil. TernStyle Press Ltda. Englewood.
Crouch, Tom. 1990. The bishops boys: a life of Wilbur and Orville
Wright. NY.WW Norton.
Garros, Roland. 1966. Mémoires. Paris. Librairie Hachette.
Lins de Barros, Henrique. 2003. Santos Dumont e a invenção do voo. RJ.
Jorge Zahar Editor. 2ª edição.
Lins de Barros, Henrique. 2006. Desafio de Voar. SP. Metalivros
Nicolaou, Stéphane. 1997. Santos-Dumont: dandy et genie de l’aéronautique.
Le Bourget: Musée de l’Air et de l’Espace.
Santos Dumont, Alberto. 1902. North American Review, v. CLXXIV, n. 547, junho de 1902, p.721-729. In Visoni, Rodrigo Moura 2010. Os balões de Santos Dumont. RJ. Capivara Ed.
Santos Dumont, Alberto. 1918. O que eu vi o que nós veremos. Ed. Autor. Petrópolis.
Santos Dumont, Alberto. 2000. O que eu vi o que nós veremos. SP. Hedra.
Santos Dumont, Alberto. 1973. Os Meus Balões. (Tradução do Dans l’Air). RJ.
Biblioteca do Exército editora.
Visoni 1, Rodrigo Moura. 2016. RJ. Ideias em Destaque, no 48. Jul/dez.
Visoni, Rodrigo Moura. 2016. Brasileiros à frente do tempo. RJ. INCAER.
* Henrique Lins de Barros é pesquisador titular do Centro Brasileiro de
Pesquisas Físicas - CBPF/MCTI