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Expedição no coração da Amazônia e na Mata Atlântica investiga as interações socioecológicas do açaí
Por Liana Chesini e Carine Emer, pesquisadoras do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, bolsistas FAPERJ
De significativa relevância na dieta e na cultura de povos tradicionais e indígenas, o açaí é hoje um dos produtos com maior expressão no mercado mundial dos ‘super alimentos’. O aumento exponencial na demanda pelos frutos do açaí (estimada em 14.000% na última década) tem gerado uma pressão igualmente exponencial sobre os ambientes naturais onde este recurso é explorado, em um processo conhecido como ‘Açaízação da Amazônia’.
Para entender o funcionamento desse sistema socioecológico em plena transformação, embarcamos em uma expedição científica no coração da maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. Utilizamos história natural, teorias ecológicas, tecnologias de captura de imagens, inteligência artificial e conhecimento tradicional local para testar como o extrativismo do açaí ( Euterpe precatoria ) em áreas de floresta, agroflorestas e quintais afeta e é afetado por interações de frugivoria - um processo ecológico no qual os animais se alimentam dos frutos e, em contrapartida, dispersam as sementes para locais seguros, mantendo o ciclo natural de regeneração da floresta.
Trabalhamos na região do médio Juruá, a 800 km de Manaus, capital do estado do Amazonas, quase na fronteira com o Peru. Aqui navega-se pelo rio mais sinuoso do mundo, o Rio Juruá, de grande importância para as comunidades locais. A principal cidade da região chama-se Carauari e possui cerca de 30.000 habitantes, cujo acesso é por via aérea (duas horas de Manaus - se tiver sorte e seu voo não for cancelado) ou fluvial, o que pode levar mais de uma semana de barco! Durante o primeiro semestre de 2023, nossa equipe de campo trabalhou em áreas urbanas e interioranas de Carauari e em comunidades próximas (para padrões amazônicos), como Pupuaí e São Raimundo, distantes três e 12 horas da cidade, respectivamente, novamente de barco e se tiver um bom motor de popa!
Percorremos estradas enlameadas, rios e igarapés (Figura 1) em busca das interações entre o açaí e os animais que se alimentam dos seus frutos. Além dos desafios da logística complexa das florestas tropicais, enfrentamos as intempéries do tempo, com dias de muita chuva durante o inverno amazônico! Ao final de 120 dias de campo, instalamos 90 armadilhas fotográficas e fizemos 90 horas de observações diretas, que somadas correspondem a mais de 600 dias e 15.000 horas de observações (Figura 2). Ressaltamos a importância da equipe do Instituto Juruá que colaborou com a organização de campo, hospedagem e transporte, fundamentais para que esse trabalho acontecesse nesse curto espaço de tempo.
Outro aspecto a ser destacado foi a interação com as comunidades locais. Como o açaí é o fruto mais consumido na região amazônica e é a base alimentar de diversas comunidades locais, consideramos importante que as pessoas que vivem do extrativismo estejam conscientes sobre as mudanças na demanda externa do produto e as formas de medir os impactos das mesmas. Através de práticas de ciência-cidadã, capacitamos algumas pessoas das comunidades para o uso das armadilhas fotográficas e foram estas mesmas pessoas que subiram nas plantas para instalação das câmeras no alto da floresta, cujo empenho foi fundamental para que este trabalho acontecesse. A proximidade das comunidades possibilitou grande aprendizado sobre as práticas de extrativismo tradicional do açaí, onde acompanhamos desde a coleta dos frutos com o uso de ‘peconha’ até a extração da polpa para o consumo final (Figura 3).
O extrativismo de ‘açaí’ tem expandido suas fronteiras e já não se restringe somente à Amazônia. Bastante conhecida da Mata Atlântica, a palmeira-juçara ( Euterpe edulis ), ameaçada de extinção e protegida por lei devido ao extrativismo predatório do palmito, tem frutos com alta qualidade nutricional e sabor suave, cuja polpa também pode ser utilizada para fabricar o ‘açaí da juçara’, ou ‘açaí da Mata Atlântica’. Em termos ecológicos, a palmeira-juçara é considerada uma espécie fundamental para a fauna em épocas de escassez de recursos na floresta, principalmente para aves de maior porte, como a jacutinga ( Pipile jacutinga ).
Para entender como o extrativismo dos frutos da palmeira-juçara afeta as interações ecológicas em um centro de biodiversidade como a Mata Atlântica, nós passamos 30 dias em campo na exuberante floresta de encosta do litoral fluminense, no município de Paraty - RJ. Entre inúmeras subidas e descidas em matas secundárias, áreas de agroflorestas e de restauração florestal, instalamos 30 armadilhas fotográficas em 30 indivíduos de juçara. Somadas às observações diretas, nossas horas de campo na Mata Atlântica correspondem a mais de 500 dias de amostragem e cerca de 12.000 horas de observação. Dentre as muitas interações registradas, destacamos os sabiás (vídeo 1) e bem-te-vis comendo frutos de açaí (vídeo 2) em áreas de agrofloresta e quintais e espécies como jacus se alimentando de frutos tanto de açaí quanto de palmeira-juçara (vídeo 3). O projeto está na fase de análise dos dados e o próximo passo é utilizar inteligência artificial para auxiliar na triagem dos mais de 100.000 vídeos.
A pesquisa está inserida no projeto ‘Ecologia de redes aplicada a sistemas socioecológicos: segurança alimentar, serviços ecossistêmicos e conservação da biodiversidade’ financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ (N Processo E-26/200.610/2022), com recursos oriundos do Edital FAPERJ 40/2021 – Programa de Apoio ao Jovem Pesquisador Fluminense sem vínculo em ICTS o Estado do Rio de Janeiro, concedidos à Dra. Carine Emer. Estes recursos incluem a bolsa de pós-doutorado da Dr. Liana Chesini Rossi, aprovada pelo projeto “Redes sócio-ecológicas de interações planta-frugívoro em um gradiente de extrativismo de produtos florestais não-madeireiros” (N processo E-26/206.120/2022) com a colaboração da aluna de doutorado Evelynne de Barros, da Universidade Federal de Alagoas.
O projeto está vinculado ao Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro em parceria com o Instituto Juruá e apoio da Fazenda Bananal/Grupo Z House.
Figura 1. Reconhecimento das áreas de pesquisa durante as atividades de campo na Amazônia. Os acessos às áreas de pesquisa foram realizados por: (a) trilhas em meio a floresta; (b) transporte fluvial, por bote; (c) a pé; e (d) via motocicleta
Figura 2. (a) Treinamento dos assistentes de campo para uso de equipamentos de segurança para escalar árvores e palmeiras para a instalação das armadilhas fotográfica; (b) programação da armadilha fotográfica pela doutoranda Evelynne Barros; (c) exemplo de armadilha fotográfica instalada; (d) anotações das características morfológicas de cada palmeira; instalação das armadilhas fotográficas com escalada (e) e/ou (f) com escada
Figura 3. Etapas do extrativismo da polpa de açaí: (a) coleta dos frutos pelo agricultor local Henrique Cunha, morador da comunidade São Raimundo no médio Juruá; (b) retirada dos frutos da penca; (c) extração da polpa feita de forma tradicional, com o auxílio de despolpadeira; e (d) polpa pronta para o consumo.
Vídeo 2. Bem-te-vi ( Pitangus sulphuratus ) se alimentando de frutos de açaí em área de quintal
Vídeo 3. Jacu ( Penelope obscura ) se alimentando de frutos de juçara em área florestal