Geral
Aula inaugural da ENBT abordou integridade científica
Na aula realizada em 30 de março, o paleontólogo Alexander Kellner (Museu Nacional/UFRJ) levantou diversas questões éticas referentes à atividade científica no mundo de hoje.
A Aula Inaugural 2016 da Escola Nacional de Botânica Tropical ENBT, ministrada por Alexander Kellner, fez alunos e pesquisadores se depararem com uma série de situações e questões complexas no que diz respeito à realidade do trabalho científico em sua configuração atual. Com irreverência e bom humor, mais do que respostas, Kellner trouxe ao seu público provocações que demandam reflexão.
Quem deve avaliar questões ligadas à integridade das pesquisas? Como e o que deve ser feito? O que você faz se descobre que o seu orientador, seu colega ou seu aluno falsificou dados? Quem são seus coautores? Como orientar os alunos diante dos desafios éticos com os quais podem ter que vir a lidar na vida profissional?
Efeito padaria
No contexto atual, lembrou o professor, o pesquisador é avaliado por suas publicações. Ele tem que publicar para se manter cientificamente ativo, criando o que Kellner chama de efeito padaria. Se isso é positivo ou negativo é um ponto que permanece em aberto. Como editor-chefe dos Anais da Academia Brasileira de Ciências, Kellner viu o número de manuscritos submetidos à revista passar de 200 em 2008 para mais de 1000 em 2016.
Publicar é fundamental porque é o principal modo como o cientista entrega à sociedade o resultado do trabalho pelo qual ela o remunera. Por outro lado, a pressão para publicar tem trazido uma série de situações e condutas discutíveis do ponto de vista ético. Atitudes que podem ter sido aceitas em algum momento, hoje são criticadas ou consideradas inaceitáveis.
Integridade científica é um conjunto de valores relativos às ações tomadas pelos pesquisadores no desenvolvimento de seu trabalho que são avaliados, aferidos, pela comunidade científica. Portanto, é um conceito que muda de acordo com o tempo e o lugar, definiu o palestrante.
Problemas
Alguns dos problemas mais comuns com que os editores de periódicos científicos precisam lidar são plágio, autoplágio, manipulação de dados, coautorias suspeitas. Na China, por exemplo, foi descoberta uma indústria de compra de coautorias há empresas para as quais o pesquisador paga para ser incluído como autor de um artigo junto com outros e, em muitos casos, os artigos já estão submetidos!
Do lado dos periódicos, a situação não é muito melhor. Podem surgir conflitos de interesse no processo de revisão dos papers e questiona-se o grau de interferência que o revisor deve ter sobre o artigo. Kellner relatou situações em que o pesquisador é pressionado pelo revisor para citar determinado artigo ou autor, ou também para retirar uma citação, para não colocar azeitona na empada dos outros. E isso acontece mesmo em periódicos altamente conceituados. Há inclusive casos de periódicos punidos por terem falseado o Fator de Impacto com o uso de autocitações.
Revisores
É comum que as revistas peçam aos pesquisadores para que sugiram revisores para seus artigos. Kellner apontou duas vantagens para essa prática. Primeiro, porque a revista já começa a avaliar o paper a partir dos revisores indicados se o autor sugere, por exemplo, algum aluno seu ou outras pessoas que possam ter conflito de interesse na publicação, o artigo pode ser imediatamente descartado. Mas a principal razão é o fato de que é difícil encontrar bons revisores eles são o que há de mais caro para um periódico, revelou. Mas essa solução tem seus perigos: há casos de pesquisadores que criaram endereços de e-mail falsos para revisarem seus próprios artigos.
Controle
O fato é que, quanto mais os cientistas passarem a cometer erros éticos, mais vão aparecer aqueles especialistas em expô-los, e ser pego numa fraude pode significar o fim de uma carreira. Quem paga a sua pesquisa é a sociedade, e ela olha cada vez mais para isso, alertou Kellner. Cresce o número de artigos retratados (despublicados), e alguns estudos sobre o assunto mostram que, entre estes, os casos de fraude podem chegar a dois terços. Entre as iniciativas para conter atitudes antiéticas estão a criação de políticas e medidas como o retraction transparency index e a Reproducibility Iniciative.
A pressão para publicar vem acompanhada pela exigência de que o pesquisador publique em revistas com alto Fator de Impacto (FI), com critérios definidos no Brasil pela Capes. Além disso, os programas de pós-graduação são avaliados, entre outras coisas, pelo Índice H* de seu corpo docente credenciado. Do ponto de vista do gestor como coordenador de um programa de pós-graduação, por exemplo, Kellner entende que não há como fugir às regras. Elas podem ser discutidas, mas enquanto valem, têm que ser cumpridas.
Desigualdade
Por outro lado, é preciso reconhecer que existe uma competição desigual no acesso à publicação entre os cientistas de países desenvolvidos e os outros. O palestrante citou o caso da Plos One, que tem a avaliação mais alta na Capes A1, em quase todas as áreas. Trata-se de uma publicação de acesso aberto (open access) ao leitor, mas o autor ou a instituição a que ele pertence precisa pagar para publicar. Os valores estão em torno de U$ 1300,00 a U$ 1500,00. Na Nature Communications, o valor chega a U$ 5000,00. Temos que publicar com FI alto, mas não temos dinheiro para pagar, reclamou Kellner.
No Brasil, temos publicações de acesso aberto e gratuitas para os autores, mas, ainda assim, todo cuidado é pouco na hora de submeter seus manuscritos. Os Anais da ABC, por exemplo, descobriram que estavam sendo vítimas de um site pirata que cobrava pelas publicações.
Carta
Uma última dica de Alexandre Kellner, do ponto de vista editorial: como o editor-chefe de uma revista multidisciplinar não pode ser especialista em todas as áreas, um bom começo para ter seu artigo publicado é escrever uma boa carta de encaminhamento, que explique por que você quer publicar nesse periódico e por que sua pesquisa é importante. Em segundo lugar, um bom resumo (abstract) ajuda muito para que o artigo não seja descartado imediatamente e tenha chance de chegar às mãos dos editores de área. No mais, trabalho duro e honestidade farão a diferença.
*O Índice H é calculado pelo número de artigos publicados em relação ao número de citações que eles receberam. Exemplo: um pesquisador terá Indice H 7 se os seus sete artigos mais citados tiverem recebido, cada um, pelo menos sete citações. (
http://www.fo.usp.br/sdo/wp-content/uploads/Indice_h2.pdf
)
Leituras sugeridas:
http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2013/07/quanto-mais-retratacao-melhor
http://retractionwatch.com/